Monografia vencedora (3º lugar)
do IV Concurso Nacional de Monografias
Jurídicas do tribunal Regional Federal
da 1ª região. Texto publicado na Revista do TRF 1ª Região, nº 1, ano 13,
janeiro de 2001, pp.72-108.
Introdução
Características do crime organizado e perspectiva culturalista
M
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uitos dos estudiosos do assunto, ora em questão,
confrontam-se diretamente com um
problema comum: a vaga e precária definição de crime organizado,
elaborada pelo legislador. Por causa
disto, todos os doutrinadores têm buscado
preencher esta lacuna tentando definir com precisão e rigor o que
significa crime organizado.
Em vista da perspectiva teórica assumida nesta pesquisa, o
autor não trará para si este esforço ingente, já realizado por tantos outros
investigadores, de tentar elaborar uma conceituação perfeita do problema ora
trabalhado. Afinal, muitos trabalhos de grande seriedade e rigor intelectual
foram redigidos nesta direção e ainda que haja diferenças entre as várias definições
possíveis, este texto tomará de outros pesquisadores seus resultados e
enumerará, logo abaixo, algumas características comuns às definições elaboradas
pela maioria dos estudiosos do assunto.
Portanto, segundo muitos dos autores
consultados as principais características da criminalidade organizada são as
seguintes: 1.hierarquia estrutural; 2.planejamento empresarial; 3.uso de meios
tecnológicos sofisticados; 4.conexão estrutural ou funcional com o poder
público ou com agentes do poder público; 5.ampla oferta de prestações sociais;
6.divisão territorial das atividades ilícitas;
7.alto poder de intimidação; 8.alta capacitação efetiva para a fraude
difusa; 9.conexão local, regional,
nacional ou internacional com outra organização criminosa; 10.uso de meios
tecnológicos avançados; 11.recrutamento
de pessoas; 12. oferta de prestações sociais (COrg. pp.
92-101).
“Além dos já tradicionais
traços característicos, talvez seja a ‘internacionalização’ (globalização) a
marca mais saliente do crime organizado nas duas últimas décadas. Já não é
correto apontar a conexão norte-americana-italiana (Máfia siciliana e Cosa Nostra) como uma singular
manifestação dessa modalidade criminosa. Inúmeras são as organizações criminais
já mundialmente conhecidas. Podemos citar, dentre tantas outras ainda não tão
destacadas, a camorra napolitana, a n’drangheta calabresa, a sacra corona pugliesa, a boryokudan
e a yakuza japonesas, as tríades chinesas, os jovens turcos de
Cingapura, os novos bandos no Leste europeu, os cartéis da droga, os
contrabandistas de armas etc.”[1].
Ainda que estas sejam as
características mais importantes deste fenômeno[2] é possível
analisar o problema sugerido pelo CNPCP, a partir de uma ótica pouco comum,
menos pragmática e não por isso menos valiosa, mas pelo contrário, bastante
profunda e perspicaz, a saber a perspectiva de cunho filosófico-culturalista.
Portanto, o autor buscará indicar um outro aspecto, bastante sutil, mas não
pouco notório, que se faz presente sobretudo no Brasil e que lhe pareceu ter escapado à reflexão dos
pesquisadores que trabalham em torno deste tema: a “institucionalização” do
crime. Tal afirmação não só parece contraditória. Ela é contraditória. Na
verdade, ela indica a presença de um elemento
profundamente contraditório no interior da cultura ocidental e mais
especificamente no âmago da cultura nacional. E a apresentação deste paradoxo,
ou desta contradição será o núcleo da reflexão elaborada por esta monografia.
Todavia, vale notar, que este trabalho não quer, de forma alguma, superar a
erudição de tantos preclaros doutores e pesquisadores do mundo jurídico que vêm
dedicando seus mais ingentes esforços intelectuais na pesquisa e na
investigação de um tema classificado como assunto de primeira grandeza e
prioridade máxima da agenda internacional, a saber, o crime organizado. Este
autor também não buscará realizar uma reflexão própria e exclusivamente
jurídica de tal fenômeno, em primeiro lugar porque as dimensões da problemática
em questão transbordam os lindes da abordagem jurídico-penal, como se verá logo
adiante, e em segundo lugar porque lhe
falta competência conceitual e intelectual para realizar tal aproximação.
Antes, o escopo deste texto, será
justamente tentar compreender o crime organizado como um problema, não apenas
de ordem jurídica, mas, mais propriamente, como um problema cultural, que tem
em seu seio uma contradição originária que se alimenta, ou ainda se
retro-alimenta de alguns outros fatores presentes na sociedade hodierna tais
como o acelerado processo de erosão do ethos tradicional das nações, o processo
de deterioração cultural, o profundo reducionismo antropológico, a patológica
idiotização da população jovem, bem como o terrível fenômeno da banalização da
morte e da reificação daquilo que Aristóteles designava como sendo o mundo
das coisas humanas (Qa' anqrw'pina - tà anthropina).
Portanto, será fácil detectar que a
opção epistemológica deste trabalho está marcada por uma matriz especulativa de
natureza estritamente filosófico-culturalista. Em vista disto vale notar que
esta reflexão não aprofundará aspectos
de caráter única e exclusivamente jurídicos, menos ainda de caráter
crinimológico-penalista. Mas construirá uma reflexão predominantemente
culturalista que compreenda o fenômeno do crime organizado a partir de um tipo
de visão mais abrangente, mas não menos profunda e menos séria, que
denuncie a magnitude, a envergadura, a largura e a altura deste
problema tão grave e complexo que, ao mesmo tempo apresenta-se como um problema
eminentemente jurídico, mas que também se apresenta como um epifenômeno cuja
grandeza corresponde à área do Planeta Terra e cuja profundidade também não é
menor que o raio do mesmo globo azul. E que
no Brasil, além de encontrar a sua forma específica de ser, consegue
instituir-se e com todos os seus tentáculos, atingir, marcar, e
determinar e
vitimar a vida de quase todos os cidadãos brasileiros. Pois, há um
certo tipo de crime organizado, destituído daquela
virulência característica
do tipo de criminalidade organizada veiculado pelos mass media
e pelos filmes norte-americanas de gângsteres. E a presença deste tipo de
problema, no interior de uma sociedade, tal como a brasileira, já marcada por
uma série de mazelas históricas, faz com que o aprofundamento dos problemas
nacionais se cristalizem e se tornem fendas através das quais outros interesses
escusos, às vezes internacionais, entrem,
se façam presentes no cenário nacional, e aproveitem mais e mais das
condições precárias das instituições democráticas brasileiras, reduzindo a noção
de cidadania a um luxo do qual apenas os chefes da criminalidade organizada
podem fruir. Pois ser cidadão vai deixando de ser um valor para ser um bem de
consumo acessível e restrito a poucos.
Portanto, com o intuito de
percorrer este itinerário, os passos a serem dados serão os seguintes: no
primeiro capítulo serão apresentadas e desenvolvidas as características
principais da criminalidade organizada,
tal como ela é compreendida pelos maiores estudiosos do assunto, bem como as
novas possibilidades de objetos de “valor criminal” a serem criados em função
dos avanços da biotecnologia e da tele-informática; e ainda serão
indicadas as características de uma
“certa versão brasileira do crime organizado” que infelizmente atinge a quase
totalidade dos cidadãos brasileiros; no segundo, capítulo serão indicados os
elementos geradores da constelação simbólico-conceitual do mundo ocidental, a
partir dos quais se fará a reflexão central contida no capítulo seguinte.
Partindo dos conceitos do momento anterior, no terceiro e último capítulo o
autor fará uma leitura culturalista do fenômeno ora estudado, para radicalizar
sua reflexão num espaço conceitual que transcende o perímetro da legiferação
penal, apontando as conseqüências erosivas da criminalidade organizada no seio
das sociedades instituições
democráticas. Finalmente, ao terceiro capítulo seguem-se as conclusões do autor
a respeito do itinerário percorrido por esta monografia.
Capítulo Primeiro
O crime organizado como um fenômeno
não-geometral,
mas uma trama e sua versão brasileira
Seções deste capítulo: 0.Introdução; 1.Os problemas planetários; 2.A ruptura entre Ética e Direito; 3.Reducionismo
Antropológico; 4.A idiotização: doença planetária; 5.A banalização da morte;
6.O aparato tecnológico; 7.As novas possibilidades de negócio; 8.A versão
light-tupiniquim da criminalidade organizada e instituída no Brasil e o cidadão
paranóico.
0.INTRODUÇÃO – O crime organizado não existe só no
Brasil. Nem só na Itália. Nem só nos EUA. Também não é um fenômeno brasileiro.
Bem como não é um “privilégio” dos italianos ou dos americanos. O fenômeno da
universalização do crime organizado é notório. Não se trata pois de uma
hipótese que deva ser comprovada a partir de pesquisas ou investigações sociais
mais profundas. Qual a família brasileira que
não teme ou até mesmo já não teve o caso de um drogatício na família?
Isto apenas para indicar uma das formas da criminalidade organizada que é a do
narcotráfico. Qual o computador doméstico (personal computer padrão IBM)
que não possui um software pirata ou um hardware que não tenha chegado ao
Brasil de forma irregular? E para complexificar tal situação é sabido que este
problema do crime organizado entretece-se com mais tantos outros problemas, que
deixam, neste entretecimento, o estudioso perplexo, pois as relações deste tipo
de criminalidade com outros fatores críticos apenas aguça e complexifica o
problema bem como aumenta o grau de intelecção
necessário para entendê-lo em todos os
seus termos possíveis. Portanto, tal como já foi indicado, uma das faces
mais claras da criminalidade organizada é a sua universalidade. O problema ora
em questão tem as dimensões do planeta e as características de um mega-negócio
de caráter multinacional. A economia planetária internacionalizou-se e provocou
o fenômeno da globalização, que
por sua vez se constitui como sendo um termo oriundo do vocabulário econômico,
e portanto, um fenômeno de matriz econômico-financeira. No entanto, a
universalização e a internacionalização dos capitais provocou e exigiu a
multinacionalização da tecnologia e, conseqüentemente, de seus avanços, bem
como de suas mazelas[3].
E toda a atividade criminal organizada existe única e exclusivamente em função
dos lucros que podem ser auferidos por ela.
E a vultosidade das somas envolvidas no crime organizado só pode fluir e
movimentar-se por todo o planeta através das tecnologias
informático-comunicacionais que sustentam o mercado financeiro mundial.
Portanto, a facilidade para se movimentar grandes somas de dinheiro, e a liberdade do fluxo de capitais são,
hoje, condições de possibilidade para a manutenção do pilar fundamental do
crime organizado: o escoamento fácil e iníquo do dinheiro através das
tecnologias de comunicação associadas, por sua vez, ao desenvolvimento tecno-informático.
1.OS PROBLEMAS PLANETÁRIOS -
Portanto, a magnitude das dimensões do problema faz com que tal questão seja
agravada por uma série de outros problemas também planetários e
universalizados. Também não há dúvida que na grande maioria dos casos a
organização do crime implica um tipo de procedimento bastante violento, pois os
interesses em questão são de ordem econômica e “política” tais como o domínio
de ação sobre uma determinada área do globo, ou sobre determinada área de uma
certa cidade. Tais questões não têm porque serem resolvidas
“democraticamente”. Em visto disto a violência se apresenta como um dos sinais mais
marcantes deste tipo de organização criminosa. Mas o problema se agrava em
decorrência da universalização da violência.
Mais. A disputa por uma certa área
de influência e ação coloca em batalha uma legião de pessoas, em sua maioria
pobres, pois, não obstante os altos índices de produção de bens e riqueza, o
planeta nunca esteve tão povoado por pessoas numa situação econômica tão precária.
A população mundial assistiu ao nascimento do sextobilionésimo ser humano no
limiar do século XXI; marca absolutamente espantosa se se considerar que há
apenas 100 anos a população mundial estava na marca do primeiro bilhão. Mais
aterradora é a perspectiva de se alcançar a primeira dezena da casa dos bilhões
ainda no ano de 2020. Há e haverá muita gente sobre o planeta.A pobreza também universalizou-se e se
constituiu como um problema planetário que se vê agravado sobretudo pelo
fenômeno da explosão demográfica
ocorrida nos países do hemisfério sul, no qual estão a maioria dos países
empobrecidos. Junto com a pobreza se encontra o conjugamento da díade esgotamento dos recursos naturais/deterioração do meio ambiente. Como conseqüência
da explosão demográfica o homem vê
diante de si a tarefa e o desafio
ingentes de descobrir em primeiro lugar, como alimentar tanta gente, e em
segundo lugar, o que fazer com tanto detrito, e com tanto lixo produzido
diuturnamente por toda a população humana[4].
E mais. O homem poluiu a água, envenenou o ar, e estragou o véu que o protege
dos raios ultravioletas. Está destruindo os pulmões do mundo ao contaminar os
mares e os oceanos e enfumaçando a atmosfera ao exterminar com gigantescas
áreas de vegetação natural. Enfim, muito em breve o ecossistema humano pode
entrar em colapso e não se sabe qual
será o grau das condições de reversibilidade deste quadro. O Planeta
está doente. E a precária saúde do
planeta, bem como o risco dos recursos planetários atingirem a exaustão são
reflexos do excesso populacional. Mas além disto vê-se que há um contingente
demográfico gigantesco vivendo numa situação abaixo da linha de pobreza e de
miséria absolutas. Ao mesmo tempo em que as três pessoas mais ricas do planeta
possuem a riqueza equivalente a toda a riqueza de 48 países em desenvolvimento.
A péssima distribuição de renda
e a miséria são uma das piores visões deste caleidoscópio humano, marcado por
tantas irracionalidades.
A substituição generalizada da
mão-de-obra escrava surge primeiramente como uma exigência da difusão da
cultura cristã, e na época do neocolonialismo (século XIX), como exigência da
Revolução Industrial e coação da Inglaterra. Para substituir o trabalho humano
inventam-se máquinas, que podem ser, a cada dia que passa, um pouco mais
incrementadas, pois a tecnologia possibilitou ao homem hodierno avanços
técnicos que pareciam frutos apenas de histórias de ficção científica.
Portanto, em função dos avanços tecnológicos, em função do peso dos encargos
trabalhistas e da necessidade de se produzir com mais eficiência, com mais
velocidade, etc... o trabalho humano vem sendo substituído, celeremente, por
máquinas, computadores e robôs que têm
transformado a chamada civilização do trabalho na civilização dos serviços e do desemprego[5].
Uma pequena síntese deste quadro
tremendo: muita gente, pobre, sem ocupação
e sem emprego, vivendo num planeta sujo e sem recursos. A mesma
tecnologia que lançou o primata hominóide na lua, que criou vacinas,
medicamentos, tecnologia de comunicação e de tratamento médico é a responsável
primeira pelo aumento do índice de natalidade pela redução do índice de
mortalidade infantil, pelo aumento da expectativa média de vida, bem como pelo
decréscimo do índice de mortalidade e pelo conseqüente envelhecimento
generalizado das sociedades contemporâneas. Há cálculos e estimativas indicando
que o homem, hoje com 30 anos, poderá alcançar a passagem do século XXI para
XXII. Quem tem 10 anos poderá viver cerca de 150 anos. Quem nascer daqui a 20
anos, poderá viver, na pior das hipóteses
até o ano 2200. É fabuloso, portanto, que se possa viver mais,
justamente, porque o homem possui técnicas que prolonguem sua vida por décadas a mais. No entanto, o quadro complica-se a cada novo avanço: tanta
gente pobre, mal alimentada, desocupada, vivendo tanto tempo, num planeta sem
recursos. A exígua população jovem, ocupada e produtiva não estará disposta a
cuidar de seus velhos, ainda que a velhice seja postergada para uns 20 ou 30
anos a mais (80 – 100 anos). E uma população
envelhecida implica uma baixa taxa de fecundação, de recuperação e de
versatilidade, o que implicará, por sua vez, maiores dificuldades para
ultrapassar os problemas oriundos do envelhecimento populacional.
Hoje, já há um relativo consenso a respeito da
impertinência da relação causa/efeito entre pobreza e violência e da
pertinência quase que absoluta na relação desemprego
e violência. A violência é diretamente proporcional aos índices de
desemprego e não de pobreza. Há países pobres com grande parte da população
empregada ainda que mal remunerada, e em tais países, com índices maiores de
gente empregada, a violência é menor.
Finalmente, ao tratar da questão governabilidade já se consegue retornar
ao objeto mesmo deste trabalho de pesquisa: o
crime organizado. Pois, diante destes quadros tão complexos e de problemas
tão agudos a pergunta que surge é a seguinte: como governar os países assolados
por tais problemas?
Como governar tanta gente pobre,
subnutrida, sem perspectivas, desocupada, vitimadas pela penúria numa sociedade
extremamente abundante que por sua vez é retro-alimentada por sonhos de consumo
inatingíveis pela grande maioria dos habitantes do planeta? E mais! Os países
cujos governantes não estão mancomunados com o crime organizado e mais especificamente
com o narcotráfico, correspondem a um número menor do que a quantidade de dedos
de uma mão!
As grandes, as médias e as pequenas
nações, todas elas, sem grandes exceções, vêem-se dirigidas por governantes anuentes ao narcotráfico e às
diversas formas de organização criminosa, bem como aos mais variados estilos de
espoliação institucionalizados que chegam a ocorrer à luz mais brilhante do
dia, protegidos que estão pelo descaso público e pelo estupor do cidadão
desiludido e desprotegido que sabe e conhece o custo[6],
o desgaste emocional e financeiro implicados num embate jurídico com poderosas
e gigantescas instituições, sejam elas públicas ou privadas, resguardadas no
interior das, muitas vezes, intransponíveis muralhas da burocracia construídas
com gigantescas pilhas de papel.
Tratando-se pois do problema da
governabilidade nacional e internacional, o pesquisador vê-se diante de um
quadro marcado por contradições profundas, afinal, os grandes governantes
consolidam inescrupulosamente suas carreiras e suas fortunas em negócios
ilícitos de magnitudes gigantescas.
Como se pode admitir que
governantes envolvidos com o mundo da criminalidade organizada e
institucionalizada sejam justamente as mesmas pessoas que possam estar à frente
de grandes países, grandes exércitos e até mesmo de certas potências nucleares?
“A criminalidade organizada
(...) contribui amplamente para as chamadas cifras obscuras da criminalidade e
se beneficia não menos amplamente da impunidade. Seu poder de infiltração é
imenso, especialmente onde a corrupção acha-se disseminada entre políticos e
policiais. Tanto a corrupção criminal como o crime organizado têm seu sustento
em atividades mais ou menos difundidas, que variam nos diversos países, e no
descrédito cada dia maior dos sistemas de justiça, conseqüência esta última de
leis antiquadas (ou mal elaboradas) e de estruturas profissionais persecutórias
inadequadas. Genericamente enfocadas, são “associações delinqüenciais
complexas, com programa permanente e infiltrações no Estado-legal. Contam com
agentes armados e algumas com código de honra. Atuam com o objetivo de o
estado-delinqüencial absorver o estado-constitucional. Mencionadas associações
caracterizam-se pela intimidação, interna e difusa, pelo indissolúvel vínculo
hierárquico e pelo silêncio solidário” [7].
Tal fato aponta, em seguida, para a problemática da segurança nacional e internacional. Tendo
pois, à frente da maioria absoluta das nações, dirigentes inidôneos e ao mesmo
tempo protagonistas da macro-delinqüência, como se pode pensar e refletir sobre
questões de segurança nacional e internacional, se as pessoas que ocupam certos
cargos institucionais de representação
nacional e internacional são a nata da criminalidade que campeia pelo mundo
afora?
2. A RUPTURA ENTRE ÉTICA E DIREITO - Além
destes aspectos indicados pelos grandes analistas internacionais há outros
problemas de caráter cultural que aprofundam a gravidade do problema ora em
questão.
A hipertrofia do
conhecimento lógico-matemático foi a responsável pela expulsão da
Ética do espaço da racionalidade humana. O saber ético foi expulso para o
espaço do irracional, pois a conduta humana, enquanto objeto de conhecimento
não consegue ser aprisionada pela camisa-de-força dos limites postos pelas
exigências epistemológicas e dos cânones do conhecimento hipotético-dedutivo. A
Ética não conseguiu submeter-se às exigências epistemológicas da racionalidade
instrumental, e o Direito alcançou uma aproximação maior deste novo tipo de
razão, alcançando pois o estatuto de um constructo destituído das prerrogativas
do divino, do sagrado, e até mesmo do moral e do ético, para aproximar-se o
máximo possível da objetividade e da precisão do cálculo matemático,
orientando-se sobretudo pela nova racionalidade
geométrica da lei, de matriz kantiana, mas sobretudo kelseniana.
Tendo sido expulsa para o espaço mínimo do foro íntimo dos
sujeitos, a Ética deixou no âmbito social um vácuo que não conseguiu ser
preenchido pelo tipo de constructo jurídico estabelecido e erigido nos dois
últimos séculos. Portanto, a primeira civilização universal, estabeleceu-se
paradoxalmente como sendo a primeira
civilização sem Ética. E tal fato, permitiu e facilitou não só o crescimento da
criminalidade organizada e localizada em certos países, mas possibilitou uma
difusão e um agigantamento planetário deste fenômeno. Afinal a fragilização da
consciência ética dos povos e sua conseqüente substituição por um Direito
extremamente precário e volátil, deixou um grande espaço da conduta humana
descoberto de valores e referenciais axiológicos que pudessem nortear o agir
humano no interior de um tipo de socialização que se complexifica em progressão
geométrica.
3. REDUCIONISMO ANTROPOLÓGICO - Estes três próximos tópicos (reducionismos
antropológicos, a idiotização como sociopatia e a banalização do mal e da
morte) são questões muito próximas umas das outras e alicerces do processo de
deterioração e de pulverização da consciência ética do homem ocidental. A
partir de uma perspectiva estritamente antropológica pode-se dizer que o homem
é um ser-com-os-outros-no-mundo. O ser humano relaciona-se com os outros
seres humanos no interior do mundo. Neste mundo existem objetos com os quais o homem estabelece
um tipo de relação não-recíproca (relação de objetividade). E neste mundo existem
sujeitos com os quais os seres
humanos estabelecem relações recíprocas (relação de intersubjetividade).
Entretanto há uma hipertrofia do primeiro tipo de relação antropológica. Os
critérios próprios da relação de objetividade (da relação do homem com as
coisas), estenderam-se para o campo da relação de intersubjetividade (da
relação do homem com os próprios homens) fazendo com que o próprio ser humano
seja reduzido à condição de uma coisa. A expressão reducionismo antropológico refere-se
ao fato de que os critérios de valoração da relação do homem com os objetos
(sejam estes critérios, a utilidade, a eficácia, a produtividade e a lucratividade),
estenderam-se para o espaço intersubjetivo. Por causa disto o homem deixa de
ser reconhecido como pessoa, para ser reificado, ou ainda coisificado.
A coisificação, ou a reificação humana, somada à banalização do
mal, da morte e à falta de consciência ética, permite que embriões humanos
remanescentes dos processos de reprodução assistida sejam vendidos para laboratórios,
que a partir da interferência nas chamadas células-troncos, poderão criar
bancos de órgãos, e fazer da produção de órgãos um dos negócios mais lucrativos
do planeta. E muito provavelmente mais
um objeto para ser comercializado através das multinacionais da criminalidade
organizada.
“O que as organizações
criminosas oferecem? O crime organizado oferece, em geral, o que é proibido ou
o que é moralmente rejeitado (por uma parcela da sociedade) ou o que é escasso
no mercado. Hoje é muito raro que alguma organização criminosa esteja
preocupada em comercializar paralelamente bebida alcoólica. Mas no tempo da Lei
Seca, nos Estados Unidos (de 1920 a 1933), em razão da irracional proibição do
comércio de bebida alcoólica, o crime organizado conseguiu um dos maiores
lucros de toda sua história. O exemplo da Lei Seca serve bem para ilustrar o
quanto a proibição legal muitas vezes, se torna uma grande aliada do crime
organizado. Isso acontece, particularmente, quando o que está proibido é
praticado ou consumido por grande parte da população ou tolerado (é o caso da
bebida alcoólica, do jogo, da pornografia, do uso de droga, do fumo, do sexo
etc.)”[8].
No entanto, será que se pode dizer ou mesmo compreender que o
tráfico de mulheres, crianças, meninas e adolescentes de ambos os sexos são
“coisas” escassas no mercado? Será que é irracional proibir o snuf? Será
que o abuso infantil e a pedofilia são práticas sexuais praticadas ou toleradas
por grande parte da população? A reprodução em grande escala de órgãos não dependerá
de um comércio ilegal de embriões, ou até mesmo de uma produção de embriões em
mulheres pagas, ou até mesmo escravizadas para ovular artificialmente, a partir
de medicamentos ministrados pelos gerentes deste futuro negócio?
4. IDIOTIZAÇÃO: DOENÇA PLANETÁRIA - É fácil
notar que as dimensões do problema transcende a área do espaço jurídico-penal e
atinge um grau de dificuldade, complexidade, seriedade e perplexidade que só
pode ser abordado com o auxílio de outras disciplinas que possibilitem uma visão
sinóptica, mais nítida e mais profunda do objeto aqui estudado.
A falta de parâmetros éticos e a educação mediática, a
força “pedagógica” dos meios de comunicação destituíram a criança, o jovem e os
futuros adultos, que a criança e o jovem serão, de uma estrutura subjetiva do
agir ético, vem a ser de estruturas e
categorias éticas constitutivas da consciência moral. As pessoas nascidas nos
últimos 30 anos padecem de uma síndrome de
idiotização muito profunda, já catalogada pela Organização Mundial
de Saúde como um tipo de sociopatia universal. As duas últimas gerações de
seres humanos foram gestadas e educadas no interior de um universo simbólico
paupérrimo e fragmentado, sem unidade e sem suporte ético. É causa de profunda
perplexidade a percepção da profunda incapacidade reflexiva presente na maioria
dos jovens que freqüentam, por exemplo, a universidade brasileira. Não lêem,
não sabem escrever, não sabem se exprimir. Em última análise, pode-se dizer que
não são livres. Do ponto de vista
jurídico lhes está assegurado o direito de se exprimirem sem censura.
Entretanto, os anos de ditadura, as disciplinas
“Educação Moral e Cívica” e
“Organização Social e Política do Brasil” – OSPB, a televisão, o sucateamento da escola pública,
e agora o sucateamento do ensino público universitário fizeram das duas últimas
gerações de brasileiros prisioneiros e
censores de si mesmos. Ditadores de si mesmos. Não há quem proíba nossos jovens
de falar e de se exprimir. Mas ele prefere ler Caras, ver televisão e os
programa dos senhores Carlos Massa (Ratinho), Fausto Silva e Gugu
Liberato. Veja-se por exemplo o quadro
das chamadas vídeo-cassetadas. A
graça encontrada ao ver um bebê ralando o rosto no asfalto denuncia o caráter
embrutecedor do programa. Como achar graça e riso ao assistir uma criança
machucando-se em cadeia nacional se já não estivermos beirando as raias da
idiotia ou do mais completo e absoluto grau de retardamento mental?!?
5.A BANALIZAÇÃO DA MORTE - Além de
se detectar que a média da população vive num estado de hipnose diuturna que a
conduz ao nível da idiotia, percebe-se ao mesmo tempo um profundo
embrutecimento antropológico e uma des-sensibilização do ser humano para com o
seu semelhante. Este embrutecimento, esta
idiotização, esta des-sensibilização profunda extirparam do universo simbólico
social as noções de solidariedade, gratuidade, bondade, caridade, etc... e
retirou do mal e da morte seu aspecto de negatividade profunda. O axioma
clássico do agir humano Bonum faciendum, malunque vitandum[9]
perdeu seu vigor. Portanto, a realização do mal e a causação da morte
perderam a negatividade, a reprochabilidade e a repreensibilidade inerentes ao
mal realizado e à morte provocada. Todos os povos primitivos trazem
comandamentos referentes à proibição do homicídio. O homem ocidental também
está submetido a ordenamentos que tratam do problema da provocação da morte.
Entretanto, hoje é muito mais fácil matar alguém. E, quando há culpa pelo ato cometido, porque
muitas vezes não há, ela é menor. Mas a culpa e a consciência moral não dão
conta da intenção do homicida. O problema é que o Direito também não dá. E esta
incapacidade do Direito chama-se impunidade.
Portanto, é muito fácil para um jovem pobre e para um jovem
de classe média que sonham com um carro, um tênis, uma roupa, uma namorada,
abrigar-se sob os auspícios da criminalidade organizada: no future, no hope,
but a lot of money[10].
Ele não possui a idéia do mal. A morte é
banalizada e espetacularizada na TV. Matar alguém por dinheiro “não
é algo muito maior do que dar-lhe um beliscão”.
6.O APARATO TECNOLÓGICO - A
organização criminosa não improvisa. Bem como não utiliza-se de sucata ou ferro-velho para defender-se do confronto com
a polícia ou com quem quer que se coloque como elemento impeditivo de sua ação.
A criminalidade organizada conta com a presença de um alto grau de tecnificação
e preparação para a realização de sua atividade[11]. A criminalidade organizada tem acesso a instrumentos
informáticos e de telecomunicação que muitos países não possuem. Estes
aparelhos parabólicos de escuta telefônica a distância, circuitos internos e
externos de televisão, aparatos de comunicação telefônica e radiofônica
intercontinentais, câmeras fotográficas auxiliadas por raios laser ,
teleobjetivas, gravadores capazes de captar sons a grande distância,
atravessando inclusive paredes, comunicação por microondas ou satélites são
exemplos de um grau de sofisticação tecnológica inalcançável para muitos órgãos
oficiais encarregados da persecução penal (COrg. p.96).
"Cuida-se de criminalidade praticada por meio de instrumentos de
alta tecnologia (microfones parabólicos de escuta à distância, TV privada,
foto-copiadoras em cores de alta resolução, laboratórios portáteis
sofisticados, recipientes para transporte de órgãos humanos etc.) ou por meio
dos mais avançados sistemas de computação, que exigem conhecimentos só
alcançáveis por poucos experts no mundo. Bem salientou Cervini[12]
que ‘a alta tecnologia permitiu o desenvolvimento de sofisticados aparatos,
cuja aplicação para fins delitivos causa um grande dano material e social, que
normalmente fica impune. Remarque-se o fato de que a existência da maioria de
novos aprestos técnicos, com que conta o delito organizado, não é conhecido
pelo grande público e, o que é mais inquietante, também as autoridades de
numerosos países do Terceiro Mundo ignoram como operam e o perigo que
representam para suas sociedades...”(COrg. p.86).
O autor deste texto não é um tecnoclasta. Ele não pretende de
forma alguma que o aparato tecnológico universal seja desativado (desligado das
tomadas) e que toda a humanidade comece a partir de então a abraçar árvores. Não. O que há de interessante neste tópico é o
simples fato de que toda a tecnologia que serve de suporte para a vida humana,
também serve de suporte para o exercício da criminalidade organizada. E em
países como o Brasil não há pessoal capacitado para reagir a grupos organizados
mais bem aparelhados do que as próprias instituições responsáveis pela
segurança pública.
É muito mais fácil correr atrás de ladrão na rua do que no
interior de uma infovia. O Dr. Mauro Marcelo está fazendo muito sucesso.
Mas o Brasil só tem ele. Fazer dele um vip ou um personagem de Caras
criará no brasileiro a idéia de que surgiu um novo herói, que protegerá a todos
que quiserem fazer compras via internet. Mas isto é um simulacro, uma fantasia.
E a inflação desta quimera só aprofunda a rachadura e o déficit que o país
apresenta nesta área[13].
E, no interior deste quadro deprimente da educação
brasileira, não se tem como reagir à capacitação tecnológica das organizações
criminosas que chegam a utilizar satélites e os equipamentos tecnológicos de
primeiríssima linha, para alcançarem os seus fins criminosos[14].
7. AS NOVAS POSSIBILIDADES DE NEGÓCIO - Drogas,
remédios, equipamentos eletrônicos, perfumes, animais silvestres, mulheres,
crianças (para serem adotadas, para serem sodomizadas, para serem mortas),
órgãos humanos, equipamentos bélicos, armas nucleares, roupas e tecidos de griffe
são todos “objetos” “tradicionais” comercializados pelas organizações
criminosas. Mas um novo “produto” estará entrando na rede do comércio ilícito: os resultados
das pesquisas da biotecnologia, cuja força irá compor o paradigma e a matrix operacional deste século que se inicia[15].
Num seminário sobre o Projeto Genôma do Câncer ocorrido há
algumas semanas atrás, o aluno que está produzindo este texto teve a
oportunidade de perguntar para o Prof. Andrew Simpson, o inglês responsável
pelo Projeto Genôma brasileiro se as informações veiculadas pelos hebdomadários
a respeito da patente de genes eram verossímeis. Sua resposta foi
categoricamente positiva. Sim. Há patentes de genes. No Brasil ainda não é
possível fazê-lo. Mas em outros países europeus bem como nos EUA isto já é
realizado. Portanto, muito em breve os códigos genômicos, sejam eles do ser
humano, de vegetais ou mesmo de espécies animais, geneticamente produzidas ou
não, terão uma grande procura em função de seu altíssimo valor econômico.
Também será “objeto” de comércio os embriões remanescentes de processos de
reprodução assistida. Pois, em função do valor
de suas células-troncos e da possibilidade de produção de órgãos para
serem vendidos estes embriões serão
produzidos clandestinamente bem como vendidos no mercado-negro da
biotecnologia[16].
Se as preocupações com os resultados dos transgênicos já são grandes, como não
serão as dimensões dos riscos que a humanidade estará correndo com seres
produzidos geneticamente em laboratórios clandestinos e talvez misturando-se e
reproduzindo-se com outros seres normais?[17]
8. A
versão light-tupiniquim da
criminalidade organizada e instituída no Brasil e o cidadão paranóico - Os
templos da sociedade contemporânea não são, desde há muito tempo, as belíssimas
e gigantescas catedrais. Os novos santuários chamam-se shoppings centers, ou muito bem traduzido, centros de compras,
ou ainda os grandes prédios dos grandes bancos, dos grandes provedores (veja-se
por exemplo o tamanho descomunal do prédio que está centro construído para ser
a sede do IG em São Paulo) ou ainda dos grandes centros empresariais.
Hiper-mercados, bancos, operadoras de telefonia, de serviços de teledifusão via
cabo, de internet via-cabo, são instituições ou corporações ou estabelecimentos
gigantescos, com uma estrutura organizacional descomunal. Isto e mais uma série
de outros fatores fazem da sociedade hodierna uma sociedade de consumo.
Portanto, a vida humana está marcada sobretudo pela organização do tempo humano
em torno daquilo que habilita e capacita o indivíduo a tornar-se, mais do que um
cidadão, um consumidor.
Estas características da sociedade moderna estão, como não
poderiam deixar de estar, presentes no Brasil. Isto faz com que a sociedade
brasileira tenha como um dos seus
elementos constitutivos e organizadores simbólicos a vida em torno do consumo,
o que vem a implicar comércio e
produção. E justamente por causa deste fator o cidadão brasileiro torna-se uma
das vítimas mais indefesas diante das tenalhas da criminalidade organizada
tupiniquim que protege-se sob a égide das grandes corporações diante das quais
o poder de reação do indivíduo é absolutamente inócuo.
E para explicar o que o autor está querendo indicar com esta
sua versão brasileira da criminalidade organizada ele irá contar alguns casos
bem como também irá comentá-los:
Caso 1 – O cidadão entra num estabelecimento de uma das
maiores redes de hiper-mercados do Brasil. Coloca em seu carrinho produtos.
Chega até o caixa e começa a retirá-los um por um. O funcionário do caixa toma
os produtos e dirige-os até o aparelho leitor do código de barras. Por pura
coincidência, no momento em que o comprador passa um outro produto do carrinho
para a esteira rolante do caixa, ele consegue detectar que o preço indicado na
tela do monitor não corresponde ao preço do cartaz de um determinado produto, a
saber,uma garrafa pet de refrigerante com 2000 ml de bebida. No cartaz,
o preço indicado era de R$1,40 e no sistema acusou R$1,70. A diferença é
simplesmente irrisória: R$0,30. O consumidor, aluno de Direito, consciente de
seus direitos e da pertinência de sua
indignação reclama e exige o estorno desta vultosa quantia. Por incrível que
pareça o funcionário do caixa ficou indignado com a posição do consumidor. Sem
contar com o descontentamento daqueles compradores que se encontram, na fila,
esperando a sua vez. Vale a pena “criar caso” por apenas R$0,30? Esperar o
gerente ser encontrado, comunicado, e autorizar
e realizar o estorno? O comprador era um
“chato” mesmo e decide esperar e
fazer valer o seu direito. Depois de tudo resolvido, no dia seguinte, ele
retorna ao supermercado para ver o que acontece se ele comprar novamente o
mesmo produto. Sua desconfiança é certeira. Ele teve o mesmo problema.
O procedimento realizado por este grande estabelecimento não
é fruto de um engano. O gerente já foi avisado, já teve reclamações, e
deliberadamente não trocou o preço da
mercadoria no sistema bem como manteve o preço mais baixo no cartaz. Uma cadeia
de supermercados atende a dezenas de milhares de consumidores diariamente,
mensalmente. Refrigerante é algo barato e comprado por muitos. E R$0,30
multiplicado por um número grande irá significar uma boa quantidade retirada da
população consumidora de forma absolutamente inidônea. Vale notar que tanto
este fato como o próximo talvez possam se enquadrar como crimes contra a
economia popular. No entanto, tal evento é deliberado, decidido e realizado com
a intenção pontual e precisa de auferir lucros. Ainda pois, que haja uma
tipificação muito precisa para este tipo
de procedimento não há dúvida que ele possui algumas características
fundamentais da atividade criminal organizada. Ou seja, ainda que tal
procedimento possa ser tipificado como crime contra a economia popular é
possível, por analogia perceber que há uma certa proporcionalidade entre este tipo de procedimento e a realidade conhecida como criminalidade
organizada. Mesmo porque tal proceder é consciente e intencional.
Vale notar que numa das melhores coletâneas nacionais sobre
crime organizado havia artigos sobre crimes contra a ordem econômica em geral[18].
E a inclusão de artigos sobre crimes contra a ordem econômica num livro sobre
criminalidade organizada indica a legitimidade da proporcionalidade e da
semelhança entre estas duas realidades aqui indicadas pelo autor deste texto..
Caso 2 – O cidadão fez uma assinatura de TV paga através de
contato telefônico. Adquiriu a antena e, segundo os vendedores, no pacote
adquirido, viria um certo número de canais, já de antemão apresentados ao
adquirente. Foi-lhe dito que ele poderia fazer a instalação do produto. Quando
o equipamento chega na casa do comprador ele descobre que ele não pode instalar
pois ele não tem bússola, e não tem como encontrar a visada do satélite. E se
fizesse a instalação ele perderia a garantia do produto. Portanto era
necessário que ele pagasse a visita de
um instalador habilitado e credenciado pela empresa. E mais. Além de ter
adquirido o produto ele precisaria pagar uma taxa de habilitação. E quando o
produto começa a funcionar ele percebe que alguns dos canais supostamente
adquiridos não fazem parte nem daquele pacote e nem de qualquer outro. Pois
alguns dos canais indicados não são transmitidos para aquela região.
Ao fazer a compra o consumidor contactou um telefonista cujo
nome ele nem sabe se é “nome de fantasia” ou não. Qual é a possibilidade do
consumidor ligar para um número 0800 e encontrar o mesmo atendente? Este é o
início de uma sucessão de ligações, discussões e aborrecimentos dos quais o
único prejudicado é o consumidor. Ainda que ele consiga ficar sem pagar as
taxas não indicadas, ele telefonou muitas vezes, gastou sem tempo, ficou
aborrecido e certamente não terá conseguido ver um dos canais esperados. E todo
este procedimento foi realizado no seu tempo “livre”, enquanto os atendentes,
supervisores e gerentes atendiam ao
reclamante enquanto trabalhavam.
Neste momento tem ocorrido um fato muito semelhante com a
disponibilização do serviço Speedy pela operadora Telefónica que
continua disponibilizando seu serviço, vendendo-o e recebendo dinheiro dos
consumidores, sem que o serviço esteja
em condições de usabilidade razoáveis. A questão é a seguinte: o lucro é maior
do que o custo das reclamações. De fato, reclamar adianta muito pouco num país
tomado pela impunidade e pela hegemonia de grandes grupos para os quais a cidadania
e o respeito aos cidadãos é “perfumaria”, é algo de desprezível, quando o que
conta é arrancar o dinheiro dos consumidores em troca de qualquer serviço
possível, ainda que sua precariedade seja intolerável. Como dizia Thomas
Hobbes...homo homini lupus[19].
A máxima “O crime não
compensa” não vale em muitos lugares do globo, sobretudo no Brasil,
pois num país onde 1 criminoso em 1000 é
punido, o crime é um grande negócio. Vale o risco!! Diante da força esmagadora
das grandes corporações e mesmo do Estado, o indivíduo sente-se impotente,
desprotegido e indefeso. Diante da fome, da miséria e da voracidade destas grandes instituições o
brasileiro sente que seu poder de defesa é ínfimo e caro.
Caso 3 – O cidadão teve seu carro, atingido na traseira por
uma viatura da Polícia Militar. E para complicar a situação os policiais (2
jovens de 20 e poucos anos) dirigiam a viatura fora da área de patrulhamento e
a batida ocorreu numa rodovia que passa por dentro de uma cidade o que
implicava chamar a polícia rodoviária estadual para fazer a ocorrência. O
cidadão que teve seu carro danificado não foi ressarcido do seu prejuízo. E nem
irá recorrer à Justiça, pois os policiais são responsáveis pela área onde ele
mora e ele tem medo da polícia. No Boletim de Ocorrência consta o endereço do
civil. No entanto, o endereço do policial que
dirigia a viatura é o endereço do quartel. Com isto o cidadão se sente exposto
e temeroso de qualquer tipo de represália direta ou indireta.
Caso 4 – Todos os dias, uma
grande parcela da população recebe cartas, cartões, propagandas, cartões de
crédito, promoções. Através dos gastos de um usuário, as companhias elétricas
sabem exatamente quase todos os bens eletro-eletrônicos que o cidadão possui e
com isto consegue esboçar o perfil do usuário. E pode disponibilizar tais dados
para administradoras de cartões de créditos. Há bancos que recolhem os dados de
todos os cheques depositados nas contas de seus correntistas: Nome, CPF, RG,
telefone (atrás do cheque) e às vezes até mesmo o endereço (também indicado
atrás do cheque), tempo de vínculo com a instituição que emitiu o cheque
depositado, o tipo do cheque (ouro, especial, universitário...) e conforme a
agência é possível até mesmo descobrir a cidade, o bairro e a partir de tudo
isto construir o perfil e o padrão de vida do depositante, que será atingido e
perturbado pelos serviços de telemarketing do banco no qual ele ainda não
possui conta, para que possa vir a
tornar-se um novo correntista.
O cidadão tem sua vida exposta e
sua privacidade diminuída, a proteção que a polícia lhe dá é precária, e às
vezes ela chega a ser uma ameaça ao próprio cidadão. As grandes instituições
que dão infra-estrutura ao país agem de forma inescrupulosa com o intuito de
arrancar do usuário o último centavo possível. O cidadão é ludibriado no
hipermercado, pelas companhias de luz, água
e telefone, pela polícia, pelas instituições financeiras que chegam a
cobrar 120% de juros ao ano, quando o previsto na constituição é 12% a.a. e
isto é permitido e o Presidente da República ainda assina uma medida provisória
que ratifica os interesses dos banqueiros legitimando “pelas tangentes” a
cobrança abusiva e extorsiva destas
instituições que além de cobrarem tais taxas, o fazem cobrando juros sobre
juros. O cidadão consciente da dimensão de toda esta realidade ainda não pode
estressar-se ou ficar doente, porque senão ele terá que fazer uso do seu plano
de saúde e infelizmente, neste instante se inicia uma outra guerra de gigante
contra formiguinhas. Afinal, saber de tudo isto pode fazer com que ele sinta-se
paranóico, no sentido mais estrito e preciso do termo. Todavia, o que ocorre
com grande parte dos cidadãos brasileiros é o que está acima indicado. E isto
faz do cidadão, que trabalha e paga seus impostos (muitas vezes sem receber
devidamente aquilo que também lhe é de direito por ser trabalhador e
contribuinte honesto) um prisioneiro de uma criminalidade ao mesmo tempo difusa
e muito bem estruturada, protegida de toda e qualquer possibilidade de
repressão, pois o risco do cometimento do crime vale a pena, para estes que
usurpam do cidadão comum centavo por centavo.
A criminalidade organizada é um não-geometral
A inter-relação de todos estes problemas supra indicados não permite que o
fenômeno do crime organizado seja compreendido como um geometral, no qual
simplesmente se possa identificar uma interseção ordenada de planos. Não. A
compreensão deste fenômeno talvez seja facilitada pela categoria, elaborada por
Paul Veyne, de tramas. Tal categoria dá mais profundidade ao problema e
denuncia sua complexidade, bem como fornece uma noção da dimensão e da
profundidade do problema.
Capítulo Segundo
A Matriz histórico-genética da cultura ocidental: a noção de
ORDEM e sua ruptura com o advento da Modernidade
Toda a cultura ocidental tem como sua matriz a tradição
greco-romana. Da Grécia o Ocidente herdou a Filosofia e de Roma, o Ocidente
herdou o Direito.
E o surgimento da reflexão sobre o
Direito é concomitante ao nascimento mesmo da Filosofia, que nasce a partir do
deslumbramento que o homem grego experiencia diante da regularidade da
natureza, vem a ser, diante da regularidade da physis (fuvsi"- physis)[20].
A contemplação (qeoriva- teoria) da ordem
(kovsmo"- cósmos) provocou
o espanto e a admiração (qavlma - talma) nos
gregos dos séculos VII e VI aC. E desta contemplação, surgiu o impulso para se
elaborar um discurso que buscasse explicar radical e racionalmente toda a
realidade através da pesquisa e da investigação dos princípios que regem toda
esta realidade, como, por exemplo, a Água
em Tales, o Ar em Anaxímenes, a Terra em Empédocles e o Fogo em Heráclito de Éfeso[21].
Todas as civilizações perceberam a constância
da natureza. Todos os povos mediterrâneos do século VI aC já têm conhecimentos
e habilidades técnicas suficientes para dominarem a agricultura e a
domesticação de vários tipos de animais. Muitos destes povos têm conhecimentos
técnicos de natureza matemática e geométrica, além de possuírem técnicas para a
mensuração das suas terras e das suas
propriedades. Também possuem conhecimentos astronômicos, que lhes permitem
fazer previsões astrológicas que possam dar-lhes segurança nas guerras, nas
batalhas e nas viagens (astrologia judiciária). Os mesmos povos também possuem,
sem exceção, algum tipo de ordenamento jurídico, ainda que tal ordenamento
possa estar profundamente ligado com a religião de suas comunidades e que
portanto, constituam-se como ordenamentos e/ou comandamentos jurídico-religiosos. Os povos todos desta
época possuem mitologias, artes
culinárias, religiões, música, ritos, técnicas de caça, técnicas agrícolas e de
mensuração.
Mas, apenas na Grécia ocorre o
surgimento de um tipo de conhecimento chamado FILOSOFIA, surgido da mesma
experiência de percepção da regularidade universal, mas com uma finalidade
diferente. O homem grego, que começa a se perguntar sobre o ser das coisas, não
está preocupado com a época certa e mais apropriada para se plantar esta ou
aquela cultura vegetal, nem com a descoberta da melhor época para pescar de
acordo com as fases da Lua ou conforme as estações do ano, etc... O homem grego está pensando no seguinte: “Por
que existe uma regularidade tal, no universo, que faz com que todas as coisas
sejam subordinadas a esta ordem, ou a esta regularidade?” “Por que de uma
determinada árvore sempre nasce o mesmo tipo de fruto?” ou ainda, “Por que em
todos os triângulos existentes a soma dos seus ângulos internos resulta em
180º?” “Por que a Lua repete um ciclo a cada um mês?”, “Por que uma reta que passe pelo centro de uma
circunferência, fornece o diâmetro da mesma figura?” Porque a diagonal do
quadrado é sempre o lado multiplicado pela raiz de dois (aÖ2)
Enfim, a pergunta decisiva para o
homem da Hélade é a seguinte: qual a natureza da regularidade?
Ao perceber que o conjunto de todas
as coisas que existem está organizado e está ordenado, o homem grego dará a
este mesmo conjunto o nome de Cosmo. Cosmo, em grego, é sinônimo de ordem (Kovsmo" - cósmos). Ou seja, este grande
conjunto de tudo que existe é designado pelo grego com o nome mesmo de ORDEM. Portanto,
o grego não só detectou a presença desta ordem no Cosmo[22]. Ele também fez desta ordem o objeto por
excelência de sua reflexão.
Desta reflexão surge a chamada Filosofia (Filosofvia- philosophía), que tematiza a existência de uma
ordem maiúscula que designa a Ordem,
por excelência, de todas as coisas que existem. O grego tematiza e explicita
racionalmente a existência de um macrocosmo e portanto de uma regularidade
maior, eterna e divina, ingênita e incorruptível. Mas também existe uma ordem
minúscula, uma regularidade menor e mais precária, se comparada com a ordem do
universo, mas não por isso, menos importante para o ser humano: a ordem divina
do macrocosmo existe no mundo humano, na sociedade, na cidade como reflexo,
como Dikaión (Dikaiovn), vem a ser, como Direito. Um dos exemplos mais conhecidos e clássicos
deste tipo de compreensão do Direito encontra-se em Ulpiano, recolhido e citado
pelo Digesto (Digesta - Pandhvkqai: Pandéktai ) de
Justiniano:
"O Direito natural é o
que a natureza ensina a todos os seres animados; com efeito, este Direito não é
próprio do gênero humano, mas ele é comum a todos os seres animados que nascem
sobre a terra, que estão no mar e também aos pássaros"[23].
Há, pois, uma ordem que rege e organiza o movimento dos
astros celestes, mas também gere e dirige a vida dos vegetais e dos animais. E,
para os gregos, esta mesma ordem também
orienta a vida da cidade e, portanto, a vida dos homens.
A exposição de todo este tema pode
parecer num primeiro momento algo um tanto abstrato e distante, todavia, a
apresentação sistemática deste modelo, tem como escopo indicar e explicitar
qual é a matriz reguladora do ordenamento jurídico, social e político que
organiza o ideário simbólico do homem ocidental enquanto homo politicus (zw'on politikon - zóon
politikón). Todas as noções políticas e
jusfilosóficas fundantes da sociedade ocidental têm, não apenas os seus
rudimentos, mas o delineamento completo, perfeito e mais bem acabado, na
reflexão primigênia de homens que viveram há cerca de 2400/2500 anos atrás, a
saber, Platão e Aristóteles, e que colocaram no centro de suas reflexões as
noções de ordem, mediania, harmonia e
Justiça.
Como já foi dito, este capítulo
visa unicamente aparelhar o leitor com o arcabouço conceitual originário
da reflexão sobre a cultura ocidental para que esta mesma reflexão sirva de fundamento não só para as teses de
fundo deste artigo, mas também para iluminar[24]
com mais profundidade a questão do crime
organizado cujas condições de possibilidade para a sua existência são mais de
fundo culturalista do que jurídico-penal, afinal é uma reflexão desta natureza
que poderá denunciar e indicar que a passagem daquele paradigma clássico acima
apresentado, para o paradigma inaugurado com a Idade Moderna provocou a
emergência de uma lógica hegemônica da satisfação das necessidades, do jogo de
forças e do consumo, que por sua vez, gerou um espaço simbólico “sem
referenciais axiológicos definidos”(EF III p.114). A saída
do universo conceitual da classicidade pôs o homem no seio da chamada cultura
pós-moderna, que por sua vez busca desconstruir os discursos que sejam
portadores de sentido e eleva o niilismo ético à forma do “espírito do tempo”.
Em vista disto e de forma inexorável
houve o surgimento de uma “ética hedonista na qual fins e meios se confundem,
pois o prazer buscado como ‘meio’ para um prazer maior, é, também ele, um fim”( EF III p.115).
“Afinal, essa é a ética que corresponde melhor à gigantesca acumulação
de objetos postos à disposição do homem da cultura moderna pela tecnociência, e
que parece pôr igualmente a seu alcance a fruição de todos os prazeres”( EF III p.115).
Os poderosos vetores
organizacionais da civilização ocidental são
de ordem material(EF III p.117). As
forças materiais produzem meios e multiplicam objetos. No entanto estes vetores
e estas forças não são “portadores de fins e valores, a não ser o fim de uma
produção sem fim e o valor inscrito na destinação dos objetos produzidos”(EF III p.117).
"A dialética do
produzir-usar é, na verdade, aquela que rege a corrente de fundo da cultura
moderna. Assim a crise do nosso tempo apresenta essa feição paradoxal de ser
uma crise em meio à abundância, ou ainda, de ser uma crise que tem talvez sua
raiz mais profunda no aumento prodigioso da capacidade humana de produzir e no definhar, até o quase
desaparecimento, da capacidade de contemplar.
A absolutização da práxis, essa no
seu conceito moderno, absorvendo a antiga distinção entre o fazer e o agir, é, sem dúvida, o núcleo dinâmico da cultura da modernidade.
Ela encontrou sua expressão teórica nas filosofias do sujeito e sua legitimação
ideológica na ética do individualismo, fazendo da história a obra por
excelência do seu ilimitado poder de produzir e, ao mesmo tempo, a matriz de
todos os seus valores e o campo sem fronteiras da sua ânsia de fruir.
“O advento da
pós-modernidade dá-se exatamente no hiato imenso aberto entre práxis como chave de inteligibilidade de
uma história que, neste século, ofereceu o espetáculo do desencadear-se das
mais devastadoras formas de irracionalismo. Nosso século termina, pois, fazendo
a experiência – uma experiência crítica
no sentido literal do termo – de que nem a práxis
histórica ou política, nem o retorno à Natureza, nem evidentemente, a
anomia generalizada apresentam-se como aptas para resolver o problema dos fins da cultura: esse problema que
afinal, envolve todos os outros problemas humanos, sendo uma interrogação em
torno do próprio sentido da presença do homem na natureza"( EF III p. 118).
A partir desta exposição
estritamente filosófica e com a posse dos elementos histórico-conceituais
encontrados no seio mais íntimo e profundo da crise civilizatória que o planeta
vive, é possível perceber o nascedouro da contradição supra anunciada: nesta
sociedade que gerou-se e organizou-se a partir da idéia de Razão que consegue e
pode detectar a ordem do universo, quando não, construí-la, EXISTE um paradoxo
extremo e radical – a possibilidade do assimétrico, do desordenador, do
desorganizador articular-se e alcançar níveis tais de complexificação e
organização que muitas vezes não consegue ser atingido por certos Estados
Nacionais.
A civilização ocidental, nascida da
idéia greco-romana de Justiça e de Ordem conseguiu internacionalizar, ou ainda
“multinacionalizar” o crime, o injusto, o excesso, a violência e permitir a
penetração deste irracionalismo multicultural e planetário no interior mesmo
dos grupos humanos cuja função, tarefa e missão é gerenciar, gerir, dirigir e
organizar as nações, pois tal como já foi dito, é ínfima a quantidade de países
nos quais os seus governantes não são anuentes aos mais variados tipos de crime
organizado, quando não, participantes e sócios dos mega-negócios realizados
pela chamada macro-delinqüência.
Capítulo Terceiro e Conclusão
A contradição: o
elemento desordenador ordenou-se!!
Seções
deste capítulo:
1.A contradição; 2. O crime organizado e
as instituições democráticas. 3. A
precariedade e a espetacularização da prática nacional e formas de ação
A CONTRADIÇÃO. – Para chegar ao termo deste
trabalho é importante salientar que o primeiro passo deste trabalho consistiu
em apresentar as características do crime organizado e sua inter-relação com
outros problemas de dimensões
planetárias. O segundo passo consistiu em delinear o caráter originário e
universalizante da primeira reflexão jurídica, mais propriamente, filosófica do
Ocidente, que tinha seu centro de gravidade sobre a categoria de ORDEM. E tais
passos foram dados com o escopo alcançar estofo e energia suficiente para dar
um passo ulterior no qual se tentou
explicitar a profunda contradição de uma civilização nascida da
contemplação da ordem e marcada pela repugnância do disforme, do assimétrico,
do excesso, do irracionalismo e da violência, que permite a “organização do
elemento gerador da desorganização”. A pergunta causadora da maior perplexidade
possível é a seguinte: “Como o elemento desordenador da sociedade conseguiu
ordenar-se?” A sociedade política nasce da exigência e do clamor pela isonomia
e pela Diké (Dikhv - Justiça). Como pôde
ocorrer a emergência organizada e ordenada, em dimensões planetárias, do adiké (adikhv - crime), do desordenado, do injusto, do criminoso?
Este capítulo apresentará o caráter contraditório da presença generalizada do
crime organizado no seio de uma civilização que nasceu, por um lado da
contemplação da ordem e, por outro lado,
da repugnância de elementos assimétricos que indicassem qualquer
dissonância na harmonia da ordenação geral do conjunto de todas as coisas.
É pois, naquele mundo da Antiguidade Clássica, marcado
indelevelmente pela possibilidade, ainda que remota, da generalização da
desordem, que o homem luta e esforça-se para alcançar um certo grau de
segurança para si e para a sua comunidade através da criação e da elaboração de
dispositivos ordenadores ou ainda pré-ordenadores da vida social. E cuja função
reveste-se das atribuições divinas, pois, a ordem e a organização não podem ser
frutos do acaso. Para os antigos é certo, absolutamente certo, que a
prerrogativa ordenadora dos ordenamentos jurídico tem seu sentido fundamentado
e inscrito na própria natureza, no próprio cosmo, o qual por sua vez, sempre
existiu, existe e existirá como ordem perfeita, eterna, ingênita e
incorruptível.
É muito provável que os mitos e as
histórias que tentam explicar a presença dos males e das mazelas humanas,
tenham nascido exatamente da percepção de que o homem pode conhecer a ordem, e
também o Bem. Entretanto, o homem faz e realiza o mal. Em vista disto, o ser
humano sente-se portador de um déficit originário e radical que obstaculiza seu
caminho em direção ao bem, e que o faz sentir-se menor e
culpado, o que em linguagem
religiosa é traduzido pelo termo pecado original. No texto bíblico, mais
precisamente na segunda descrição sobre a criação do homem, tem-se a narrativa
de um ato de desobediência que consistiu basicamente na transgressão de um
interdito cujo fim era impedir que o homem conhecesse o bem e o mal, ou ainda,
que ele possuísse essa capacidade de distinguir o bem do mal.O homem percebe
sua inserção num mundo regido por uma ordem maiúscula. E também percebe que a
manutenção de sua vida, sua segurança, estabilidade em sua vida, só é possível,
por causa desta primeira ordem de envergadura e amplitude cósmico-universais.
Mas sua vida, também depende de um ordenamento menor, reflexo daquela ordem
maior, e que seja o responsável para a manutenção da vida social, pois no
espaço da vida humana é possível detectar uma certa ordem. Todavia tal
regularidade é marcada por possíveis rupturas decorrentes de uma fissura, de
uma cisão de uma fenda antropológica à qual o ser humano designou como sendo
uma prerrogativa exclusiva do homem racional: a liberdade. O ser humano possui
consciência das coisas. Ele é capaz de detectar a existência da alteridade. Ele
percebe a intercorrência de um mundo autônomo, como um outro mundo, externo à
sua interioridade. Mas o homem não é só esta sua consciência. Ele também é
detentor de algo extremamente original no mundo do seres vivos. Ele é
autoconsciente. A prerrogativa da consciência-de-si é uma prerrogativa humana.
E esta consciência-de-si dá ao
homem a capacidade de perceber-se capaz de se autodeterminar, e ao perceber sua
capacidade de autodeterminação, ele também percebe que pode errar. E ao
detectar sua capacidade de errar, o homem
cria em seu íntimo a certeza de que tal fato decorre de um grave erro
original, cometido por algum ancestral rústico, cuja estultícia teria sido a
origem de todos os sofrimentos humanos. Esta experiência humana encontra-se registrada
no seio das grandes civilizações e sua origem perde-se no tempo, juntamente com
o surgimento das religiões. É então, em função de sua inteligência que o ser
humano pré-determina regras que hão de se chamarem jurídicas, com o fim de
manutenir a segurança, a paz e a estabilidade do meio em que vive.
Num momento muito preciso da evolução da civilização
ocidental, a saber, no momento mesmo de sua própria origem, o ser humano
compreende como sendo um ser pertencente à sua sociedade. Percebeu também que sua humanidade vai ser
medida pelo seu grau de inserção na mesma comunidade. E que a manutenção da
comunidade é condição de possibilidade para a manutenção e a segurança mesmas
da própria vida individual. Permitir pois, a desagregação da comunidade é suicídio.
E esta percepção da Antiguidade Clássica é muito fecunda para
o homem contemporâneo que se encontra à deriva de forças contraditórias e
autodestrutivas que paradoxalmente vêm
se organizando e se complexificando, ameaçando portanto a vida de uma civilização
que às portas do terceiro milênio vê-se perplexa diante de contradições geradas
no interior de seu próprio seio. Urge
portanto, o esforço universal e hercúleo de manutenir
a mesma ordem que gerou a civilização ocidental.
Todavia, após toda esta análise de um paradigma ideal que
serviu de parâmetro para analisar o caráter contraditório da presença de um
elemento que alcançou uma certa grandeza, no interior de um corpo social que
emergiu a partir da repulsa e da negação deste mesmo elemento, detecta-se a
ocorrência, num certo momento histórico da inauguração
de um novo modo de compreender a vida, a natureza, a razão e o próprio homem.
2. O crime
organizado e as instituições
democráticas - A Razão
hipotético-dedutiva, inaugurada com a modernidade, possibilitou à humanidade um
avanço fantástico na área do conhecimento e no campo das possibilidades de
intervenção na natureza. Todavia, a hipertrofia da razão instrumental gerou
contradições gigantescas que ameaçam a própria civilização. E esta mesma razão
não consegue resolver os problemas por ela criados. O homem criou uma pedra
maior do que ele mesmo. Portanto, as saídas para o enfrentamento de todos os
problemas que assolam o planeta devem ser estabelecidas como ações organizadas
internacionalmente e que tenham como ideal regulador máximo a manutenção do
equilíbrio social e do exercício da liberdade, vem a ser, a manutenção mesma da
democracia, pois é bastante fácil perceber que a grandeza e a magnitude
alcançadas pela criminalidade organizada, por um lado ameaça a solidez das
instituições democráticas ocidentais, fragilizando-as, ao mesmo tempo em que é
resultado de fissuras históricas no seio desta mesma civilização.
Os grandes analistas sugerem
soluções de caráter totalitário, seja no âmbito jurídico-nacional, seja no
âmbito jurídico internacional. Esta possibilidade, na verdade seria o fermento
para novas formas de organizações criminosas. A saída democrática ainda parece
ser a mais madura, ainda que mais demorada e difícil de ser conquistada e exercida.
“o crime organizado possui uma textura diversa: tem caráter
transnacional na medida em que não respeita as fronteiras de cada país e
apresenta características assemelhadas em várias nações; detém um imenso poder
com base numa estratégia global e numa estrutura organizativa que lhe permite
aproveitar as fraquezas estruturais do sistema penal; provoca danosidade social
de alto vulto; tem grande força de expansão, compreendendo uma gama de condutas
infracionais sem vítimas ou com vítimas difusas; dispõe de meios instrumentais
de moderna tecnologia; apresenta um intrincado esquema de conexões com outros
grupos delinqüenciais e uma rede subterrânea de ligações com quadros oficiais
da vida social, econômica e política da comunidade; origina atos de extrema
violência; exibe um poder de corrupção de difícil visibilidade; urde mil
disfarces e simulações e, em resumo, é capaz de inerciar ou fragilizar os
Poderes do próprio Estado”[25].
Considerando-se pois o poder do
crime organizado e sua estruturação complexa urge que as tentativas de
superação não sejam a da força x força, ou violência x
violência. Pois estas possibilidades geram apenas espetáculos para
serem assistidos na televisão e não gera um suporte simbólico capaz de extirpar
o excesso e o crime do universo conceitual do homem hodierno
O que há de mais urgente é
portanto, estabelecer bases sólidas e
firmes do regime democrático fazendo com que o Estado tenha sempre em vista a união das
vontades particulares numa vontade universal.
"Se os indivíduos chegassem ao ponto de não ver no Estado a figura
do bem universal, i.é, de retirar-lhe a sua confiança porque se põe a serviço
dos interesses particulares, ele se destruiria a si mesmo. O fato de que o
Estado não cesse de se referir ao bem comum, mesmo quando defende privilégios
de classe, é um detrimento da vontade universal. E os homens não podem
abandonar a idéia do bem sem se condenarem a si mesmos. Pois a eliminação do
Estado significaria o retorno de cada vontade particular a seus próprios
interesses, cujo resultado seria a anarquia e, em lugar de liberdade, imperaria
o terror. Não há pois liberdade sem um Estado racional, i.é, que vise ao bem
comum. [26]"
Corroborando pois, o que já foi
dito logo acima, o crime organizado ameaça
a solidez das sociedades democráticas a partir de dois aspectos bem
distintos. Primeiro aspecto: num
primeiro momento, a sociedade democrática é ameaçada pela poderosa força persuasiva que as vantagens financeiras
oriundas da criminalidade organizada possuem e pela sua capacidade
de corromper os governantes, responsáveis pela tutela, pela organização e pela
administração do Estado de Direito. Segundo aspecto: as tentativas de solução
do problema através do estabelecimento de medidas
penais excepcionais, ou ainda através do crescimento de medidas
próprias de um Direito de exceção são sinais de um sistema democrático
precário, quando não de um Estado de Direito totalitário e ditatorial, que na
busca de garantir a estabilidade do sistema, está na verdade impedindo o amadurecimento das instituições
democráticas, que são tremendamente precárias se se pensar nas situações de
países do terceiro mundo, tais como o Brasil.
3. A PRECARIEDADE E A ESPETACULARIZAÇÃO DA PRÁTICA
NACIONAL E FORMAS DE AÇÃO. As ações assistidas no Brasil e
que buscam desmantelar a criminalidade organizada tornam-se verdadeiros shows,
profundamente marcados pela espetacularização que os meios de
comunicação social conseguem gerar em torno
ao acontecido, sem conseguir no entanto, mostrar a raiz do seu problema
e suas causas e origens mais profundas. Todas as CPIs brasileiras, o
Impeachement de Fernando Collor de Melo, as ameaças de Impeachment contra o
Prefeito de São Paulo, as invasões do Exército Brasileiro nas favelas do Rio de Janeiro são espetáculos no mais das
vezes lúdicos, às vezes radicais e
eleitoreiros, mas sobretudo catárticos,
dirigidos, quando não produzidos pelos prestímanos “globais” que apenas
iludem o cidadão médio e às vezes até mesmo o cidadão mais intelectualizado,
que apesar de sua superioridade no confronto com o resto dos cidadãos, não
consegue perceber a profundidade e a gravidade do problema do crime organizado
e consegue deixar-se iludir pela persuasiva visão de que a solução para tais
problemas está única e exclusivamente no uso da força. Quando na verdade, um
esforço hercúleo que busque combater o problema do crime organizado deverá
constituir-se sobretudo como uma tarefa multilateral e interdisciplinar marcada
por um tipo de ação combinada e solidária de amplitude internacional e
planetária.
Em segundo lugar é absolutamente
necessária a formação de quadros de pessoal habilitado para pensar e refletir
sobre as questões relativas ao problema aqui apresentado. É necessário que
cientistas da comunicação, cientistas da computação, tecnólogos, juristas,
criminalistas, diplomatas, especialistas em Sociologia, Filosofia, Direito
Penal, Direito Ambiental, Direito Comercial,
em Direito Informático, Direito Autoral, Direito Internacional, Comércio
Exterior etc, discutam as questões pertinentes e relativas à criminalidade
organizada.
Esta medida
é duplamente importante, pois a partir dela serão abordadas tanto as
questões relativas à PREVENÇÃO, como aquelas relativas à REPRESSÃO do CRIME
ORGANIZADO. Trata-se pois de uma tarefa multidisciplinar e multifacetada para
abordar um fenômeno intrinsecamente multifacetado e extremamente complexo de
dimensões planetárias, pois tal fenômeno faz-se presente em todos os recônditos
do planeta Terra.
Em terceiro lugar, é necessário que as
instituições de fomento à pesquisa invistam em pessoal que possa investigar o
problema a partir do maior número de perspectivas possíveis, seja do ponto de
vista teórico, seja do ponto de vista tecnológico, criminológico, jurídico,
democrático...
Em quarto lugar, é necessário considerar que
a aplicação do Código Penal nunca dará conta de todos os casos possíveis
presentes na realidade e a reflexão dos juristas, dos promotores, dos
criminalistas por mais madura que seja, precisará de uma abordagem
multidisciplinar.
Em quinto lugar, é necessário que estas
reflexões de natureza jurídica sejam discutidas em conferências de alcance
internacional e global, bem como no interior das questões pertinentes ao âmbito
dos grandes blocos regionais de integração comercial, tais como o MERCOSUL (no caso do Brasil) e nestas rodadas de
negociações multilaterais, nas quais se encontram os membros do NAFTA, do
Mercado Comum Europeu, da APEC, bem como deve estar na agenda das discussões
dos grandes organismos internacionais, tais como a ONU, A OMC, a UNESCO
etc. Afinal as práticas econômicas profundamente avassaladoras e exploradoras do mercado
financeiro, cujo fluxo de capitais, num vai e vem sem fim, visita alguns
países, estimulando por curtos espaços
de tempo seus frágeis potenciais, para, em seguida, abandoná-los, deixando atrás de
si um rastro de destruição econômica, desemprego, recessão e pobreza, só
é possível, por um lado, por causa da
tecnologia supra apresentada que permite a realização de transações comerciais
em tempo real e por outro lado pela falta de regulação da infovia, através da
qual são facilitadas a entrada e a saída de
vultosas somas de valores que muitas vezes são procedentes do
narcotráfico ou de qualquer outra forma de criminalidade organizada.
As possibilidades de ação acima sugeridas,
caracterizam-se pelo exercício de um tipo de poder que é mais descendente do
que ascendente. Ou seja, tais ações deverão ser realizadas pelos governantes e
legisladores brasileiros, através de processos de discussão e legiferação que
por mais profícuos que sejam, não serão nunca imediatos e rápidos.
Mas também é necessário que políticas
públicas de natureza econômica e sócio-cultural apontem para uma melhoria da
qualidade de vida do homem e para a
qualidade mesma do próprio homem. E para tanto só há um negócio no qual se deva investir com a mais absoluta
urgência, e com a mais infinita seriedade: a escola e a universidade
brasileiras. Pois sem educação e sem
formação nunca haverá novas gerações que
possam desenvolver um arcabouço conceitual que possa servir de instância
crítica ao irracionalismo ilustrado da pós-modernidade bem como ao
totalitarismo tecnocrático desta civilização que se diz arauta da liberdade,
mas que, no entanto, é verdadeiramente o algoz e o carrasco da Liberdade.
Finalmente, com estas pistas que
sugerem caminhos para uma abordagem mais profunda
do problema, talvez o olhar do
homem deste novo milênio consiga dirigir-se para a experiência da classicidade
antiga e encontrar um novo fôlego para o
futuro caminho da civilização da Razão e da Ordem.
[1] V. O Estado de S. Paulo de 04.12.94, p. A22. Sobre as tríades chinesas, c. J. van SRATEN, “ Les triades chinoises”,
p. 133 et seq.
[2] . E quanto a isto o autor crê
ser suficiente o trabalho até então elaborado pelos operadores da área.
[3]. A rapidez e a eficácia da
tecnologia, da internet, da tele-informática sofisticaram também a atividade
criminosa e facilitaram o exercício da delinqüência através de um meio ainda
pouco dominado pelo governos, sobretudo porque o aparato tecno-eletrônico-informático
responsável pelo chamado fenômeno da cerebrização do planeta, através da interconexão de redes de informação, serve de suporte, sobretudo, para
a facilitação da atividade financeira mundial; e não há nada mais fácil de se
movimentar neste planeta do que o dinheiro. Afinal toda a ciência e todo o
desenvolvimento tecnológico estão hoje a serviço do mercado. Em outros termos, estão aí para potencializar
a produção de bens e serviços, bem como para dar escoamento e fluidez ao sistema financeiro
internacional.
[4] . Sem contar os novos
problemas surgidos da impossibilidade de se liminar os novos tipos de lixo
oriundos das novas criações e invenções humanas, cuja vida média poderá
ultrapassar a vida das próximas 10 ou 20
gerações humanas (lixo atômico, pilhas ou baterias de níquel, garrafas
“pet”, plásticos, etc..) Ainda no interior desta problemática é curioso notar o
seguinte paradoxo: o ser humano criou nos dois últimos séculos o conceito de
limpeza e higiene como exigências e prerrogativas básicas da vida racional e
saudável, entretanto estragou o planeta, contaminou e sujou seu ninho, seu
habitat. Não existe mais a noção de “quintal do vizinho”. Colocar os detritos
humanos em qualquer lugar do planeta, significa varrer a sujeira para “baixo do
tapete”. Segundo J. RIFKIN, no início da era industrial, a cada década uma
espécie animal desaparecia da face da Terra. Hoje, o planeta perde três
espécies por hora. (RIFKIN, J. O Século da Biotecnologia, SP: Makron
Books, 1999, p. 8).A partir da problemática ambiental o homem enfrenta
concomitantemente três grandes crises:“A diminuição das reservas
energéticas não renováveis, um perigoso acúmulo de gases que
aquecem o planeta e um declínio contínuo da diversidade biológica”
(RIFKIN, J. O Século da Biotecnologia, SP: Makron Books, 1999, p. 8.).
[5]. Desempregado é o sujeito
que já trabalhou e está procurando emprego. Quem
nunca trabalhou e procura emprego não é desempregado. Quem desistiu de procurar
emprego também não é desempregado. Muitas vezes, as notícias veiculadas a
respeito da diminuição do índice de desemprego, não explicam que tal diminuição
ocorreu não pela criação de novos postos de trabalho, mas pela desistência de
um certo contingente humano de procurar emprego.
[6] . E para complexificar mais ainda a situação do
cidadão brasileiro,veja-se toda esta crise do judiciário que só faz com que o
cidadão se sinta mais e mais desprotegido e desacreditado no poder judiciário e
nos seus auxiliares. Veja-se por exemplo a eloqüente descrição do editorial
de 8 de julho de 1999, do jornal "O
Estado de São Paulo", por ocasião da crise no sistema telefônico, a
respeito do estado de ânimo do brasileiro: "A
crise no sistema telefônico aprofundou no
brasileiro comum um estado de espírito do qual há muito não consegue
livrar-se - um misto de indignação, perplexidade e desalento diante das renitentes
atribulações que atormentam seu cotidiano, para as quais de modo algum
contribuiu, cujas causas apenas pode imaginar e cuja superação pouco tem a ver
com o que faça ou deixe de fazer. Esse estado de espírito se condensa na
convicção de estar à mercê de forças a um só tempo poderosas, incompetentes e.
sobretudo, empenhadas em despojá-lo de seus reais, sob a forma seja de
impostos, seja de tarifas. Pode ser um exagero, mas não é uma fantasia" Editoral
- Ligações não completadas, p. A3. O
brasileiro encontra-se sob o peso de uma "crescente massa de poderes
enfeixados pelas grandes burocracias ou tecnocracias públicas e privadas, não
raro em detrimento do exercício dos Direitos civis daqueles que em última
análise as sustentam". E caso se sintam prejudicados por qualquer
irresponsabilidade pública, que tenha
provocado um colapso de um serviço essencial público, os cidadãos são
exortados, "com burocrática indiferença" a recorrer aos tribunais,
"como se alguém desconhecesse o que tal iniciativa significa em nosso
país”. CEeA, p.65.
[7]. COrg, p.74. Ver também
Walter MAIEROVITCH, F. “A ética judicial
no trato funcional com as associações criminosas que seguem o modelo mafioso”’
in RT 694/445.
[8]. COrg. p.78 : Sabe-se,
nos Estados Unidos, que o crime organizado surgiu para satisfazer os desejos a
que os valores tradicionais americanos criavam obstáculos, porque foram
considerados imorais (jogo, vício, bebida). Depois vieram os processos de
corrupção e, por último, a ‘empresarialização’ (o crime organizado ganhou
colorido empresarial, desenvolvendo-se em empresas ‘legais ou semilegais’).
[9] . O bem deve ser feito e o
mal deve ser evitado.
[10] . Sem futuro e sem
esperança. Mas com muito dinheiro.
[11] . CERVINI, Raúl. “Análise
criminológica do fenômeno do delito organizado”, em Ciência e política criminal
em honra de Heleno Fragoso, org. por J. M. de Araújo Júnior, RJ: Forense, 1992,
p. 505. Há alguns meses começou a ser veiculada a notícia de que os líderes de
organizações de narcotraficantes
nacionais estariam incentivando o
alistamento militar de jovens das favelas do Rio de Janeiro para que o Estado
treinasse os jovens membros das “empresas” do crime organizado.
[12] . CERVINI, Raúl. “Análise
criminológica do fenômeno do delito organizado”, em Ciência e política criminal
em honra de Heleno Fragoso, org. por J. M. de Araújo Júnior, RJ: Forense, 1992,
p. 505.
[13] . Pode-se aprofundar tal
questão denunciando o sucateamento do ensino universitário e dos cursos de
mestrado e doutorado das universidades federais brasileiras. Um jovem que
queira dedicar-se a um projeto de pesquisa do tipo Iniciação Científica,
receberá da FAPESP, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo,
uma bolsa de R$ 330,00, por 12 meses. No entanto ele precisa dedicar-se integralmente à sua pesquisa, “não
deve receber vencimentos ou salários profissionais, bolsas ou auxílios de
outras entidades, bem como remuneração decorrente do exercício autônomo de
profissão liberal”. Será permitido
receber uma mesada dos avós??!! O CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa)
paga aos seus mestrandos algo em torno R$700,00 ou R$ 800,00. E a CAPES
(Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior) aos seus
doutorandos algo em torno de R$ 1400,00. O sujeito estuda uma vida inteira,
para receber como fomento à pesquisa quantias irrisórias, sob as condições de
não poder, sequer, receber uma mesada!! Como formar intelectuais? Como formar
cabeças pensantes? O jovem que deixa de
assistir Faustão no domingo, para ficar estudando, assim que puder tomará o
primeiro avião para o exterior. Vale a pena estudar no Brasil? Veja-se o
problema das faculdades de Direito brasileiras. Elas não têm nem mestres, nem
doutores, pois os bacharéis mais aplicados querem ser juízes, promotores e
procuradores. Há alunos que conseguem entrar numa faculdade sem ter lido um livro nos
últimos cinco anos. Há alunos que terão terminado o 5º ano de seu curso tendo
lido no máximo 3 ou 4 livros.
[15] . Os “objetos”
comercializados pelas organizações criminosas são das mais variadas espécies:
drogas, remédios, equipamentos eletrônicos, perfumes, animais silvestres,
mulheres, crianças (para serem adotadas, para serem sodomizadas, para serem
mortas), órgãos humanos, equipamentos bélicos, armas nucleares, roupas e
tecidos de griffe. Mas um novo “objeto” estará entrando na rede do comércio ilícito: os resultados
das pesquisas da biotecnologia, cuja força irá compor o paradigma e a matrix
operacional deste século que se
inicia. O século biotecnológico (como é designado por RIFKIN) será
estruturado a partir dos sete grandes componentes abaixo indicados: 1. a
capacidade de isolar, identificar e recombinar genes que disponibilizará o
reservatório de genes como o recurso primário bruto para a futura atividade
econômica. As técnicas de recombinação de DNA e outras biotecnologias
permitirão aos cientistas, aos laboratórios e às empresas biotecnológicas a localização,
manipulação e exploração de recursos genéticos para fins econômicos
específicos. Veja-se, por exemplo, o caso da empresa Human Genom Ciencies que
obteve a patente de um gene que codifica a proteína da superfície do linfócito
(glóbulo branco). Após alguns anos, descobriu-se que essa proteína é a porta de
entrada do HIV na célula. Com esta patente, qualquer cientista ou empresa que
desenvolva uma droga contra a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (SIDA – AIDS)
baseada em inibir a entrada do HIV por essa porta será obrigada a pagar
royalties à Human Genom Ciencies.
Pronto! Já há algo novo para ser contrabandeado e inserido no mercado
negro da criminalidade organizada; 2. a
concessão de patentes de genes, linhas de células, tecido geneticamente desenvolvido,
órgãos e organismos, bem como os processos usados para alterá-los, irá fornecer
ao mercado um incentivo comercial para explorar os novos recursos. Mais um novo
produto. Tecidos humanos alterados geneticamente. Que tal um ouvido mais
bem afinado ou uma pele menos enrugada para o rosto de uma senhora de 65 anos;
3. a globalização do comércio irá possibilitar recenseamento completo da
biosfera da Terra com uma Segunda Gênese realizada em laboratórios, uma
natureza bioindustrial artificialmente desenhada para substituir o próprio
procedimento da natureza. “Uma indústria global de ciência da vida já está
começando a dominar uma força sem precedente que atua sobre os vastos recursos
biológicos do planeta. Áreas de ciências da vida que vão da agricultura à
medicina estão sendo consolidadas sob a proteção de gigantescas empresas da
‘vida’ nos mercados biotecnológicos emergentes. (RIFKIN, J. O Século da
Biotecnologia, SP: Makron Books, 1999, p.10); 4. o mapeamento de
aproximadamente do genoma humano, as descobertas sobre seleção genética,
incluindo os chips de DNA, as novas terapias somática de genes e a engenharia
genética de ovos humanos, esperma e células embrionárias, está preparando o
terreno para uma enorme alteração da espécie humana e o nascimento de uma
civilização comercialmente eugênica. Com um pouco de saliva, sangue ou raspas
de pele o autor deste livro poderá ter em poucos minutos todo seu mapeamento
genético. Caso ele descubra em si mesmo alguma qualidade bastante valiosa, ele poderá patentear esta sua informação
genética e vendê-la na internet; 5. a grande quantidade de estudos sobre a base
genética do comportamento humano e a nova sociobiologia que favorece a natureza
em relação à alimentação estão provendo um contexto cultural favorável a uma
ampla aceitação de novas biotecnologias; 6. o computador está fornecendo a
comunicação e a organização para se administrar a informação genética que
compõe a economia biotecnológica. Pesquisadores estão usando a informática para
decifrar, trocar, catalogar e organizar a informação genética, criando um novo
estoque de capital genético para ser usado na era bioindustrial. A informática
e a genética estão se fundindo numa nova e poderosa realidade tecnológica; 7.
uma nova narrativa cosmológica sobre a evolução está começando a desafiar o
refúgio neodarwinista com uma visão da natureza compatível com as intenções
operacionais das novas tecnologias e da nova economia global. As novas idéias
sobre natureza fornecem uma estrutura autêntica para o século biotecnológico,
ao sugerir que o novo modo pelo qual estamos reorganizando nossa economia e
sociedade são amplificações dos próprios princípios e práticas da natureza,
portanto, justificáveis. Isto significa dizer que não há nada de artificial.
Tudo é natural. Pois a criação humana é obra da própria natureza. Por exemplo,
o controle de natalidade através de pílulas e outros métodos anti-concepcionais
chamados não-naturais ou artificiais, em verdade, seriam naturais, pois são
criações da natureza humana. E a intervenção do homem no processo de seleção
natural através da biotecnologia não é outra coisa senão a própria natureza
inventando e encontrando novas formas para continuar este processo de seleção
NATURAL. A pergunta do autor poderá ser
apreendida como algo absurdo, mas a tecnologia da clonagem irá valorizar muita
coisa que poderá vir a ser comercializada pelas organizações criminosas: Quanto
não valerá um fio de cabelo da Cláudia Schiffer, da Naomi Campbel, do Harrison
Ford ou do Robert Redford, da Xuxa, do Pelé, ou do Senna? Um homem rico que
queira dar ao seu filho um clone da
Cláudia Schiffer como presente de
aniversário, poderá comprar o mapeamento genético da modelo e solicitar uma
reprodução em laboratório. Espermas de boa qualidade poderão ser produzidos
e reproduzidos e até mesmo melhorados em
laboratórios e depois vendidos. A maior criação humana é a sua própria
perplexidade diante daquilo que criou: ele mesmo. Aquela máxima da lógica
medieval que se constitui como um paradoxo – Deus pode criar uma pedra tão
grande que ele mesmo não possa carregá-la? - aplica-se perfeitamente ao ser
humano.
[16] . Nestes processos de
reprodução assistida ocorre a provocação da ovulação. Muitos óvulos são
produzidos e retirados da mulher para serem fecundados in vitro. Após a
fecundação apenas alguns dos zigotos são implantados no útero para que haja a
nidação e o conseqüente e esperado desenvolvimento do embrião humano. O que
fazer com os embriões mantidos em freezers? E se o prazo de validade (5
anos) estiver por expirar? Por que não vendê-los para se fazer, a partir de
suas células-troncos outros muitos órgãos necessários para a manutenção da vida
de pessoas que aguardam uma eternidade
nestas filas de bancos de órgãos e cuja possibilidade de alcançar tal
possibilidade é tão remota? O autor não está se posicionando a respeito do
problema. Ele só está querendo indicar que a possibilidade de produção de
órgãos a partir das células-troncos irá criar uma demanda e esta demanda
certamente será suprida por um tipo de mercado clandestino. Ora, se já há
organizações que possuem submarinos para movimentar seu negócio, montar
pequenos laboratórios ou clínicas de fecundação in vitro não será nada
difícil.
[17] . Veja-se por exemplo o caso
veiculado pela mídia nacional a respeito da cabra que tem um gene de aranha
costurado em seu genôma. Esta cabra irá produzir no seu leite a proteína
através da qual se poderá sintetizar a teia de aranha, cuja resistência é
dezenas de vezes maior que a do aço. Imaginar que a transcrição genotípica de uma
cabra como esta possa ser comercializada de forma ilícita e irresponsável, traz
à imaginação humana, já bastante fértil, um sem número de possibilidades de
desequilíbrio do ecossistema. Afinal o que poderá nascer de um eventual
cruzamento no qual esta cabra possa gerar outros filhotes com suas
características? Este leite poderá ser bebido? E a carne destes animais? Qual
será a repercussão disto em seres humanos? O homem resolve alguns problemas e
cria outros.
[18] . VVAA. PENTEADO, J.C. (org)
O Crime Organizado (Itália e Brasil) – A modernização da Lei Penal. SP, Ed.
Revista dos Tribunais. Ver ARAÚJO JR., João Marcello, Os crimes contra a ordem
econômica no esboço da nova parte especial do Código Penal de 1994
(Características gerais), pp. 219 ss.
[19] . O homem é o lobo do homem.
[20]. fuvsi", ew" s.f. (fuvw) || natureza ou maneira de
se de uma coisa || forma do corpo,
natureza da alma || disposição natural, condição natural || força produtora ||
substância das coisas || ser animado. DGP - Neste
texto serão encontradas algumas palavras em grego. As únicas que terão sua
significação retirada do dicionário e aqui apresentada serão aquelas que
aparecerem pela primeira vez. As repetições estarão transcritas no grego que
utiliza o alfabeto latino, com a sua redação no alfabeto grego colocada entre
parênteses.
[21] . REALE, G. História da Filosofia Antiga, vol. 1,
SP: Loyola, 1994
[22] . Dizer que o grego percebeu
a ordem no cosmo, significa dizer que ele descobriu a ordem na ordem, o que
pareceria uma tautologia. Precisamente falando, o grego deu ao conjunto de
todas as coisas que existem o nome de
ORDEM, pois, para ele este conjunto de todas as coisas era muito bem ajustado,
muito preciso, em suma muito bem ordenado.
[23] . JAEGER, H. Les fondements du
droit, in Encyclopédie Philosophique Universelle, L'Univers Philosophique,
p.180. "Le droit naturel, c'est ce
que la nature a appris à tous les êtres animés ; en effet, ce droit n'est pas
propre au genre humain, mais il est commun à tous les être animés qui naissent
sur terre, et dans la mer, et aussi aux oiseaux".
[24] . “...lo que brilha com luz propia nadie lo puede apagar. Su brilho
puede alcanzar, la oscuridad de otras costas”. Pablo Milanes e Chico Buarque,
“Canción por la unidad de latino america”.
[25] No Boletim IBCCrim n. 21, Extra, p. 5.
[26] . HERRERO, X. Socialidade
Humana e Democracia, in SNF, n. 55. p.619-641.