“O
mesmo desenvolvimento do pensar, que é exposto na história da filosofia,
expõe-se na própria filosofia, mas liberto da exterioridade histórica – puramente no elemento do pensar. O pensamento livre e verdadeiro é em si concreto,
e assim é idéia, e em sua universalidade total é a idéia ou o absoluto. A ciência [que trata] dele é
essencialmente sistema, porque o verdadeiro, enquanto concreto, só é enquanto desdobrando-se em
si mesmo, e reconhecendo-se e mantendo-se junto na unidade – isto é, como totalidade; e só pela diferenciação e
determinação de suas diferenças pode existir a necessidade delas e a liberdade
do todo.
Um
filosofar sem sistema não pode ser
algo científico; além de que tal filosofar exprime para si, antes, uma
mentalidade subjetiva: é contingente segundo o seu conteúdo. Um conteúdo só tem
sua justificação como momento do todo; mas, fora dele, tem uma hipótese não
fundada e uma certeza subjetiva. Muitos escritos filosóficos se limitam a
exprimir desse modo somente maneiras de ver e opiniões. Por sistema entende-se
erroneamente uma filosofia que tem um
princípio limitado, distinto dos outros; ao contrário, é princípio da
verdadeira filosofia conter em si todos os outros princípios particulares”.
G.W.
F. Hegel
Enciclopédia das Ciências Filosóficas, §14
Apresentação
– p.
5
Resumo – p. 6
Introdução – p. 7.
Capítulo
Primeiro – A ruptura entre Ética e Direito – p. 9.
Capítulo
Segundo - O Sistema e a Teoria do Sistema – p. 23.
Capítulo
Terceiro – A via compositionis e a via
resolutionis:
direito positivo e direito natural. – p. 34.
Capítulo
Quarto – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. – p. 44.
Conclusão – p. 49.
Referências
bibliográficas – p. 60.
APRESENTAÇÃO
O autor deste trabalho,
defendeu em outubro de 2004 sua tese de doutorado intitulada: Metafísica e Modernidade – Método e
Estrutura, Temas e Sistema no pensamento filosófico de Henrique Cláudio de Lima
Vaz. Este trabalho permitiu o estudo aprofundado de temas de epistemologia
e de profunda relação com o tema do Direito.
Esta monografia
apresenta-se como um esboço de articulação explícita entre o tema defendido
naquela tese e dois temas atuais da reflexão jurídica: o tema do sistema e o
tema da dignidade da pessoa humana. Neste texto serão aproveitados trechos de
sua tese de doutorado, sobretudo para se apresentar o tema do sistema e suas
vias de compreensão (via compositionis e via
resolutionis).
RESUMO
Este texto pretende
apresentar o fluxo teórico que desencadeou a emergência do atual
pós-positivismo, por meio da tentativa de superação da ruptura entre Ética e
Direito ocorrida na modernidade, e da
assunção de conceitos oriundos da teoria dos sistemas e das antropologias
personalistas.
Num primeiro momento, serão
apresentadas as características e os principais aspectos da cisão entre Ética e
Direito ocorrida no seio da modernidade.
Na seqüência serão
apresentados os principais aspectos da teoria dos sistemas, que vêm em proveito
da tentativa do restabelecimento daquela relação originária entre Ética e
Direito .
Para finalmente, permitir a
adoção de pressupostos antropológicos de matriz personalista que vão permitir a
inserção da categoria de Pessoa, que em sua essência, e em sua elaboração mais
bem acabada se apresenta não só como categoria antropológica, mas também como
categoria moral, pois as filosofias do homem que adotam como clef de voûte a categoria de Pessoa,
entendem tal categoria como essencialmente moral.
Em função do tipo de
problema aqui tratado, o viés deste trabalho será profundamente marcado por uma
reflexão de caráter filosófico, pois seu escopo é justamente apresentar os
pressupostos filosóficos que nortearam e permitiram a superação do positivismo
jurídico contemporâneo em direção à tão festejada adoção do princípio da
dignidade da pessoa humana.
Introdução
O advento da modernidade
cartesiana rompeu com a unidade ontológica entre Ética e Direito , própria da Antiguidade
Clássica. Esta ruptura alcançou seu grau máximo de profundidade com o
positivismo kelseniano. Este trabalho enumerará os principais aspectos desta
ruptura ao apresentar as características de dois horizontes históricos
distintos e sucessivos, marcados respectivamente por duas universalidades
conceituais diferentes, a saber, a universalidade nomotética, presente no
horizonte cultural da classicidade de matriz grega, e a universalidade hipotético-dedutiva
presente no horizonte cultural da modernidade ocidental.
A demonstração quase
esquemática das diferenças entre as chamadas universalidades nomotética e
hipotético-dedutiva servirá de fundamento conceitual para que sejam denunciadas
as conseqüências da passagem de uma universalidade para a outra no campo das
relações entre Ética e Direito.
Tendo em vista que a
separação conceitual entre estas duas dimensões constitutivas da vida humana em
sociedade não foi profícua na busca de representações teóricas e científicas do
fenômeno da intersubjetividade, a filosofia do direito contemporânea buscou
trazer de volta para o espaço da reflexão jurídica o tema da Sitlichkeit, da
Eticidade.
O esforço jusfilosófico de
reconstituição desta relação exigiu a superação do viés geometrizante da
epistemologia moderna que contagiou todo o saber produzido ao longo dos séculos
XVIII e XIX, e que se fez presente no mundo do Direito até meados do século XX.
Tal superação fez com que
os teóricos do Direito dialogassem com as chamadas teorias do sistema e com as
antropologias personalistas.
Este trabalho apresentará
com mais detalhes as características daquela cisão. Para em seguida apresentar
uma espécie de resumo dos principais pressupostos das teorias do sistema, e em
particular do conceito de sistema aberto. Para finalmente apresentar pequenos
ecos do diálogo do Direito com a Antropologia Filosófica, de onde foi retirada
a noção de dignidade da pessoa humana.
Invertendo a direção do
discurso é possível dizer que o conceito
de dignidade humana (princípio da dignidade da pessoa humana), oriundo das
antropologias filosóficas de matriz cristã, só entrou no espaço da reflexão
jurídica porque na tentativa de superar os paroxismos de uma epistemologia de
matriz hipotético-dedutiva (própria da física-mecânica galileiano-newtoniana),
a reflexão jusfilosófica apropriou-se da noção de sistema aberto oriunda da
nova epistemologia elaborada pelas ciências biológicas, que por sua vez também
não alcançaram êxito suficiente para representar a complexidade de seus objetos
de investigação, quando apertadas e aprisionadas dentro de um sistema fechado
(quase tautológico) próprio da física-matemática.
Capítulo Primeiro - A
ruptura entre Ética e Direito
Este texto apresenta como o
Direito acompanhou os mesmos passos dados pela Filosofia na trajetória realizada
pelos séculos do medievo e da modernidade até a contemporaneidade. Ao se
percorrer a História da Filosofia sempre se pode entender o que acontece com o
mundo da ciência, das artes, da cultura em geral. Pois toda a cultura ocidental
sempre foi o reflexo daquilo que acontece no horizonte da filosofia, que por
sua vez tem por pretensão constituir-se como o fundamento do conhecimento, seja
ele o conhecimento científico, estético, técnico, jurídico.
A origem da Filosofia foi
marcada pelo paradigma do Ser. O filósofo do mundo antigo e do medievo
acreditava que era possível conhecer o Ser, conhecer aquilo que as coisas eram
em si mesmas. Tanto a Antiguidade Clássica quanto a Classicidade Medieval
Cristã foram marcadas pelo paradigma ontológico. Neste momento do
desenvolvimento da cultura ocidental a epistemologia hegemônica se constituía
em torno do Ser.
Com a modernidade, e o
advento do paradigma do Sujeito, houve no âmbito da Filosofia, a chamada
revolução copernicana do sujeito, inaugurada por Descartes e levada a cabo por
Emmanuel Kant. Na modernidade filosófica o objeto orbita em torno do sujeito, e
o sujeito como tal apresenta-se como o fator constituidor e criador do
conhecimento. Nesta fase da História da Filosofia, surge o paradigma do
Sujeito.
A superação deste paradigma
dá-se com a emergência do desenvolvimento da Filosofia da Linguagem, quando
então se impõe o paradigma lingüístico, apresentando o conhecimento como algo
que é construído a partir da linguagem. Agora a concepção que se tem do
conhecimento como tal, tem como premissa básica que a natureza do conhecimento
é lingüística: o paradigma da Linguagem.
É impossível resumir 2600
anos de filosofia em uma página, mas de forma muito sintética estes foram os três
grandes paradigmas que se sucederam no campo da epistemologia e que se fizeram
acompanhar por todos os outros campos do conhecimento. E como não poderia
deixar de ser, o Direito também foi manuduzido pela Filosofia e teve ao longo
da história um desenvolvimento que acompanhou a reflexão filosófica, espelhando
e refletindo em suas construções teóricas o paradigma filosófico vigente.
O paradigma que emerge, em
superação àquele da linguagem é o paradigma da Mente, da Filosofia da Mente, desenvolvido
nas regiões fronteiriças entra a Filosofia, a Psicologia, a Informática e a Neurofisiologia.
Mas o Direito ainda não foi alcançado
pelos problemas que este novo paradigma poderá colocar para ele.
Com a invenção da
modernidade, a grande conseqüência para o mundo jurídico, foi a seguinte: a
chegada da modernidade e o sucesso deslumbrante do casamento entre Física e
Matemática celebrado por Galileu
Galilei e Isaac Newton, todas as
outras ciências acharam que a melhor forma de se constituírem como conhecimento
exato e preciso era imitar aquilo que foi feito pela Física: matematizar-se. E
para que isso acontecesse seria necessário que o direito se separasse da Ética (ou
da Moral).
O Direito entrou nesta
“onda”. E o fautor deste projeto foi Hans Kelsen. Kelsen foi o intelectual que
levou tal projeto ao seu ponto máximo. E como ele foi o ápice desta empreitada,
ele não poderia deixar de ser o início do declínio deste projeto de
matematização da ordem jurídica.
Este projeto de geometrização
jurídica, de separação e de expurgo dos princípios éticos levou a uma profunda cisão
entre Ética e Direito e entre Ética e Política.
Tal ruptura se deu ao longo de toda a Idade Moderna e alcançou, como já foi
dito, seu ponto culminante nos meados do século XX. No início da modernidade o
clássico que inaugura esta forma política de pensar o Direito é Thomas Hobbes.
O estudo desta cisão
entre a ética e o direito é um caminho propício para a reconstituição da gênese
da modernidade e para a compreensão adequada das conseqüências geradas por esta
separação. Para tanto seguiremos o roteiro desenhado no livro Escritos
de Filosofia II - Ética e Cultura, do mais renomado filósofo
brasileiro, Henrique Cláudio de Lima Vaz, em seu capítulo Ética e Direito .
No livro Ética
e Cultura, designado de forma abreviada pela sigla EF II, e mais
especificamente num dos capítulos mais celebrados pelos juristas encontra-se uma visão do advento da
modernidade a partir de uma perspectiva ‘bi-focal’, a saber, a perspectiva da
Ética e a perspectiva do Direito no interior de duas universalidades distintas:
a universalidade nomotética e a universalidade hipotético-dedutiva. O primeiro
modelo denominado nomotético conheceu as variantes cosmonômica e teonômica, ou
seja, a ordem do universo e da sociedade eram ordens reflexas. Em outros
termos, o cosmo e o próprio Deus projetavam sua ordem (ordem cósmica) e sua
vontade (vontade divina) no mundo dos homens. O microcosmo humano, para
alcançar sua Areté (sua excelência),
deveria espelhar-se na perfeição cósmica (na Antiguidade grega) ou obedecer os
desígnios da Providência Divina (no
medievo cristão). O segundo modelo denominado hipotético é essencialmente
politonômico[4] uma vez que nele a lei se compreende no interior
da esfera política seja como lei natural (recebida do estado de natureza), seja
como lei positiva. Aqui a lei se impõe como resultado da ordem política
estabelecida pelos sujeitos. Esta ordem política é uma ordem imanente e não
transcendente. Por isto a expressão polito-nômica consegue exprimir esta
característica fundamental desta nova ordem fundada pelos filósofos modernos.
O processo genético
da modernidade ocorreu a partir das transformações ocorridas no seio do ethos vigente na Antiguidade Clássica e
no ethos emergente dos anos
inaugurais da modernidade.
É importante notar
que a transformação realizada na compreensão da Ética e do Direito tem suas
raízes mais profundas na evolução do conceito de natureza, que, por sua vez,
depende da noção de ‘eu’.
"A
evolução do conceito de Natureza, que oferece o fundamento para a definição da
universalidade do Direito, é que permite a passagem da universalidade nomotética à universalidade hipotético-dedutiva".
IDADE ANTIGA
|
|
IDADE MODERNA
|
Eu inteligível
|
→
|
Eu construtor
|
↓
|
|
↓
|
Mundo
|
→
|
Natureza técno-científica
|
↓
|
|
↓
|
Relação ontológica entre Ética e Direito
|
→
|
Ruptura da relação entre Ética e Direito
|
Agora, portanto, será
o momento de apresentar os termos desse passo decisivo na constituição da
modernidade a partir das perspectivas da Ética e do Direito.
O fenômeno que forjou
os pressupostos epistemológicos da passagem do horizonte clássico
(universalidade nomotética) para o horizonte da modernidade (universalidade
hipotético-dedutiva) foi a Revolução Científica, também responsável pela
matematização da física e pela pretensão matematizante de compreensão da
realidade. Um dos efeitos mais significativos desta revolução cultural foi a
emergência da técnica como fator determinante de abordagem da natureza.
Todavia, essa forma
de compreensão do mundo também foi transcrita para outras dimensões da
realidade. E uma das dimensões da vida humana mais determinadas por essa
mudança foi a dimensão da intersubjetividade ou do viver em comum dos homens. A
partir dessa influência determinante no espaço intersubjetivo da vida humana, o
problema clássico da melhor constituição passou a obedecer à inspiração
maquiavélica e formulou-se “cada vez mais como problema de técnica do poder e cada vez menos como discernimento sapiencial do
mais justo”. E o reflexo deste evento na reflexão
jurídica foi fundamental, pois o saber jurídico começou a ser compreendido mais
e mais como técnica e como arte (ars),
como saber operatório e prático. Daí a famosa expressão “operadores do
direito”, que na verdade vem mais em detrimento destes mesmos “operadores” do
que em seu proveito, vez que passam a ser compreendidos mais como técnicos,
detentores de saberes procedurais, do que pensadores, juristas e gestores da
vida social.
Ao mesmo tempo é
possível detectar uma oposição histórica marcada pelas diferenças entre a
antropologia política clássica e pela antropologia política moderna. Na
primeira, o direito tem a forma de uma universalidade nomotética. Na segunda, o
direito assume as características de uma universalidade hipotético-dedutiva.
Universalidade
nomotética
|
A universalidade que
determinava o horizonte da Antiguidade tinha como fundamento uma ordem do mundo que se supunha manifesta
e na qual o nómos ou a lei da cidade
era o modo de vida do homem que refletia a ordem do cosmo contemplada pela
razão. Na universalidade hipotético-dedutiva o fundamento se encontra oculto e
precisa de uma explicação oriunda de uma primeira hipótese, não verificada
empiricamente, que tem a necessidade de ser dedutivamente corroborada pelas
suas conseqüências. O primeiro caso pertence ao âmbito da
ontologia antiga. O segundo caso encontra-se sob a égide do pensamento
científico moderno. Naquele caso o Direito e a Política conservavam uma relação
intrínseca com a Ética, e tal relação ruiu com o advento da modernidade à
medida que o Direito e a Política constituíram-se como esferas autônomas e independentes da
normatividade ética. Freqüentemente o Direito e a Política passam a se opor a
qualquer tipo de normatividade ética. Tal fato tornou-se notório nas obras de
Hans Kelsen.
correspondência entre
o cosmo e a cidade
|
A relação entre Ética
e Direito no pensamento clássico estava
assentada sobre a correspondência existente entre a ordem do cosmo e a ordem da
cidade “sob a soberania de uma mesma lei universal que inspira as primeiras
tentativas de definição de uma esfera do direito e da justiça” à qual o homem
buscava se elevar para desvencilhar-se de um mundo marcado e determinado pela
violência e pelo caos.
O homem grego deu ao
postulado da ordem a forma do logos
(ou da razão jurídica) a partir da idéia fundamental de lei – nómos – que por sua vez tinha seu
significado na referência a uma ordem divina (cósmica ou transcendente) à qual
a lei humana devia se conformar.
O núcleo da
universalidade nomotética está configurado a partir de uma idéia de natureza
cujas prerrogativas são as da necessidade e da racionalidade. Com a alteração
dessa noção de natureza, a partir de todos os eventos da Revolução Astronômica,
não haverá possibilidade de se sustentar um mesmo tipo de universalidade quando
o seu núcleo está completamente corroído pela emergência de um tipo de
racionalidade marcada pelas características da contingência, da
não-necessidade, enfim de uma natureza literalmente construída ou compreendida
como um artefacto ou como um constructo.
Isto se dá porque na Antiguidade
havia uma constante homologia entre a racionalidade do pensamento científico e
a racionalidade do pensamento social e político. Todavia, com a chegada da
modernidade esta homologia não mais se sustenta.
Em síntese, na
Antiguidade, a idéia de natureza sempre esteve relacionada com a idéia de nómos, pois há uma correspondência de
natureza divina entre a ordem do cosmo e a ordem da cidade, estabelecida e manutenida
pela ordem jurídica. Tanto a ordem cósmica, quanto a ordem pública estão
subordinadas à soberania de uma lei universal[9]. O valor e
o significado da lei – nómos – são
decorrentes de uma ordem maiúscula, divina e transcendente, vem a ser a própria
ordem do cosmo, à qual a lei da cidade ou a lei humana deve se conformar. O
pensamento grego atribuiu o caráter formal da lei que normatiza o comportamento
humano a uma ordem divina que “poderia ser transcrita no registro racional da
idéia de natureza”[10].
Portanto esta ordem universal possui a prerrogativa da normatividade, de onde
emana a força prescritiva da lei e do ordenamento jurídico como tal.
O mundo humano está
submetido à ordem do universo. Em contraposição à noção de autonomia moderna,
há no horizonte grego a primazia da noção de cosmonomia.
Tal concepção
estabelece uma união inconsútil entre lei e natureza – entre physis e
nómos que será desalinhavada
quando a filosofia moderna elaborar um novo conceito de natureza, distinto do
conceito grego de physis.
A genialidade grega está em “dar ao postulado
da ordem, que torna possível a existência histórica, a forma do logos ou, no
nosso caso, da razão jurídica, a partir da idéia fundamental de lei (nómos)”.
A ruptura com a
tradição clássica e a passagem da universalidade nomotética para a
universalidade hipotético-dedutiva decorre da emergência de uma nova forma de
razão, por um lado, herdeira da razão grega, por outro lado, a ela oposta. A
razão moderna elaborou uma nova visão de homem e uma nova visão de natureza que
não comportavam os traços constitutivos da universalidade nomotética.
Conseqüentemente serão delineadas novas teorias jurídicas, morais e políticas[12].
Neste momento de sua
apresentação da mudança de universalidades, o filósofo que nos ajuda neste
trabalho, Lima Vaz indica a importância da transformação do
conceito de natureza.
"A linha de ruptura que assinala
a formação de uma nova idéia da Razão e o desenho de uma nova imagem do homem
inscreve-se justamente nesse terreno fundamental que é o conceito de Natureza e
significa o abandono definitivo das propriedades que caracterizam a antiga physis".
Mas a nova idéia de
Razão também se apresenta como um novo tipo de ciência fundada na relação
poiética ou na possibilidade do domínio do mundo pelo homem. Agora o mundo é um
novo campo de ação do homem. Essa ação é marcada pela pretensão do domínio
técnico e exploratório que assumirá uma importância cada vez maior com o correr
dos séculos.
Essa nova relação do
homem com o mundo será responsável pela formação de uma nova “constelação de
valores polarizados em torno do problema da satisfação das necessidades”. E a
organização sociopolítica será determinada exatamente por este problema.
"O direito ao trabalho universal
e livre e à sua adequada remuneração passa a ser o núcleo axiológico da
civilização. A luta pela dominação e exploração da natureza tendo em vista a
satisfação das necessidades que se desdobram segundo a lógica do que Hegel denominou
o ‘mau infinito’ (...) transforma profundamente a própria idéia de natureza na
sua relação com o agir do homem".
A
visão moderna de natureza, faz com que esta seja destituída das características
da physis clássica. A natureza não é mais o fundamento de
uma ordem imutável à qual se deva referir a práxis humana.
A
modernidade faz com que surja uma nova homologia entre natureza e sociedade, e
assim, a nova maneira de compreender a natureza também será aplicada à
sociedade, inaugurando uma nova forma de compreender a Política, a Ética, o Direito.
Essa
homologia moderna submete o pensamento social e político, ético e jurídico, à
epistemologia e aos parâmetros metodológicos da nova ciência da natureza que
tem como instrumento privilegiado de análise a matemática.
"Eis aí os pressupostos que, na
articulação da dialética indivíduo-sociedade, irão determinar a abertura de um
novo horizonte de universalidade, aquela que denominamos justamente
universalidade hipotética. Se a
questão fundamental da antiga filosofia prática no âmbito da vida social era a
determinação dos requisitos essenciais que asseguram ao homem, como cidadão,
exercer na sociedade política atos próprios da vida virtuosa (eu zen) ou da vida ordenada para o bem
da cidade – identificando com o bem do indivíduo ou com a sua autarquéia – o pensamento político moderno assume como sua
tarefa primordial propor a solução
analiticamente satisfatória do problema da associação dos indivíduos, tendo
como alvo assegurar a satisfação das necessidades vitais. A prioridade tanto
lógica quanto ontológica é aqui deferida ao indivíduo na sua particularidade
psicobiológica, que se apresenta como elemento simples que se supõe
inicialmente independente na sua suficiência de ser-para-si".
A
noção clássica de autarqueia
aristotélica sofre uma transposição filosófica que encontrará uma nova
expressão no Cogito cartesiano.
A
gênese da sociedade começa a ser explicada a partir da submissão do indivíduo à
necessidade extrínseca de integrar-se no pacto social e de submeter-se ao
constrangimento da vida social e política.
Nesse esquema, a universalidade hipotético-dedutiva é compreendida como
um modelo explicativo que ilustra a passagem do estado de natureza ao estado de
sociedade.
As
teorias modernas do Direito Natural são determinadas por um modelo hipotético.
Esse modelo tem sua validez ratificada e corroborada através de uma explicação
que consiga, satisfatoriamente, esclarecer o fato da existência social do
indivíduo como condição para a sua sobrevivência. E essa existência social
realiza-se através da passagem de um estado original para um estado organizado
pela sociedade que é, ao mesmo tempo, negação e continuação daquela situação
originária.
A
universalidade hipotético-dedutiva é modelada pela mecânica
galileano-newtoniana e se situa no “nível de inteligibilidade que Hegel
denominou nível do entendimento”.
Dessa
forma o Direito natural moderno tem em vista
fundamentar de forma racional e universal um sistema de normas jurídicas
que fosse compatível com o desenvolvimento de uma sociedade marcada pelo
trabalho e pela produção que alcançará escalas gigantescas. E nada melhor do
que a emergente ciência experimental para se constituir como o tipo
privilegiado e exemplar de racionalidade que conseguirá fornecer o instrumento
perfeito para a realização do gigantesco projeto de exploração, utilização,
domínio e senhorio da natureza.
Toda
essa apresentação sobre as universalidades tem como objetivo mostrar a cisão
entre Ética e Direito ocorrida por
ocasião da mudança de horizonte e de universalidades.
No
interior da universalidade nomotética havia uma relação de natureza ontológica
entre Ética e Política, ou entre Ética e Direito que não permitia pensar a Ética sem pensar a Política e o Direito.
Contudo,
a ruptura ocasionada pela mudança de horizontes provocou a separação entre Ética
e Direito ou entre Ética e Política fazendo,
sobretudo, com que o espaço da ética sofresse um refluxo para o campo do
subjetivo e do irracional, juntamente com a religião e com outras formas precárias
de conhecimento.
Isso
porque o modelo hipotético-dedutivo se apresenta como um
“suporte
teórico inadequado para sobre ele se edificar o edifício conceitual que abrigue
juntamente a Ética e o Direito ou no qual se integrem a universalidade
subjetiva da pessoa – a liberdade – e a universalidade objetiva do Direito – a
lei”.
Além
do mais, a estrutura de universal interdependência através da qual os
indivíduos se associam nesse sistema das necessidades é marcada por um caráter
não-finalístico e cuja racionalidade preside a sociedade civil. Isso faz com
que os mecanismo jurisdicionais se realizem segundo uma “relação de
exterioridade ou de coatividade entre a lei e o indivíduo”.
Ao mesmo tempo em que se realiza essa separação entre Ética e Direito acontece a fragmentação da imagem de homem na
pluralidade dos universos culturais, o que torna mais difícil a adequação das
convicções individuais e das liberdades individuais com uma constelação de
valores reconhecidos universalmente e que possam ser legitimados num sistema de
normas e fins posto pela sociedade.
A
lógica que norteia a modernidade procede segundo os cânones da análise que
isola os indivíduos como átomos completamente separados para ulteriormente
reintegrá-los num sistema que compatibilize os fins comuns da sociedade e o
movimento de satisfação das necessidades individuais. Essa lógica estabelece um
tipo de relação eminentemente técnica da qual são excluídos os princípios
éticos.
Eis
o resultado do desmoronamento da physis antiga por obra da ciência de matriz
galileana: uma inversão radical que imanentizou as categorias teológicas da
graça e da salvação e fez com que a ordem da liberdade começasse a ser pensada
na imanência mesma da história conforme a norma da epistemologia moderna, ou
ainda, segundo modelos de natureza hipotético-dedutiva.
Hegel
empreendeu o esforço de restaurar na “imanência histórica uma forma de
universalidade nomotética como universalidade do espírito que se objetiva e tem
na história a sua teodicéia”.
“Uma vez restituídas as intuições fundamentais
que estão nos fundamentos desses dois tipos de universalidade, será necessário interrogar-se
sobre o sentido da sua oposição histórica e sobre o destino dos direitos
humanos no desdobramento de uma lógica da universalidade hipotética levada às
últimas conseqüências. É na linha dessa interrogação que adquire especial
relevo a tentativa hegeliana de retomar a universalidade nomotética
integrando-a na perspectiva do estado moderno e derivando a ordem da Natureza
para a teleologia da História. Esse o quadro conceitual dentro do qual o
problema das relações entre Ética e Direito se coloca para nós".
No
horizonte de uma organização social regida pela universalidade
hipotético-dedutiva corre-se o risco de que a liberdade seja extirpada desses
grandes sistemas mecânicos que se regulam por modelos eficazes e racionais que
controlam o arbítrio dos indivíduos, já destituídos da sua “razão de ser como
homens ou como portadores do ethos”
.
No
quadro seguinte é possível visualizar de forma sinóptica o cotejo feito por
Lima Vaz entre as duas universalidades para indicar as características do
processo de passagem para o horizonte da modernidade.
Quadro comparativo das
universalidades nomotética e hipotético-dedutiva
NOMOTÉTICA
|
HIPOTÉTICO-DEDUTIVA
|
Correspondência
entre a ordem cósmica e a ordem da cidade sob a soberania de uma mesma lei
universal que inspira as primeiras
tentativas de definição de uma esfera do direito e da justiça à qual o homem deve elevar-se
para libertar-se do mundo da violência e do caos148
|
Pensamento
ético, social e político submetido aos princípios epistemológicos e às regras
metodológicas da nova ciência da natureza, ciência de tipo
hipotético-dedutivo, e tendo a análise matemática como seu instrumento
privilegiado – paradigma da mecânica galileiano-newtoniana163/165
|
Cosmonomia
|
Autonomia
|
Relação
INTRÍNSECA (fusão) entre Ética e Direito /Política
|
Relação
EXTRÍNSECA (cisão) entre Ética e Direito /Política
Direito/Política como esfera independente da normatividade ética e
freqüentemente oposta a ela147
|
Referência
constitutiva da ação política a uma tradição
|
|
Direito/Política
como arte e sabedoria
|
Direito/Política
como técnica racionalmente otimizada do exercício do poder254 e 257
|
Direito/Política
como PRÁXIS
é julgada pelos critérios da auto-realização do homem ou do seu ser-em-razão-de-si-mesmo
|
Direito/Política
como TECHNÉ,
ou como arte de persuadir e comandar
segundo
os critérios da verossimilhança e da
força157
|
MELHOR
CONSTITUIÇÃO
é a que defende as condições
melhores para a prática da justiça258
|
MELHOR
CONSTITUIÇÃO
é a que garante mais eficazmente o
exercício do poder258
|
Hierarquia
de fins
|
Jogo
de Forças
|
Ciência
política tem como objetivo definir a
forma de racionalidade que vincula o livre agir do cidadão à necessidade,
intrínseca à própria liberdade, e portanto, eminentemente ética, de
conformar-se com a universalidade da justiça259
|
Ciência
Política trabalha com hipóteses que
permitem deduzir um plano mais
rigoroso para o exercício eficaz do poder, vem a ser, para o domínio mais
completo do espaço onde as
liberdades individuais podem mover-se258
|
Critérios
do bem melhor e mais perfeito
|
Critérios
do útil e do eficiente265
|
NOMOTÉTICA
regida
pela razão do melhor: trata-se de legitimar o poder pela justiça na
perspectiva de uma teleologia do Bem e fazer assim, da vontade política, uma
vontade instauradora de leis justas
|
VONTADE
DE PODER
que
se impõe como constitutiva do político sem outra finalidade a não ser ela
mesma e sem outras razões legitimadoras senão as que podem ser deduzidas da
hipótese inicial da sua força soberana
|
Racionalidade
Política ordenadora de uma prática em vista de um FIM que é a justiça na
cidade259
|
Racionalidade
Técnica que obedece à racionalidade da causa eficiente e dos seus
instrumentos, e que esgota seu FIM na eficácia do seu exercício258
|
História-tradição
|
História-ciência
|
Anterioridade
da comunidade na qual
o indivíduo encontra-se inserido
|
Hipótese
do pacto social que reúne,
numa sociedade organizada, os indivíduos dispersos
|
NATUREZA
é a physis na imutabilidade da sua
ordem e fundamento de um nómos objetivo
ao qual deve referir-se a práxis humana163
|
NATUREZA
é o campo de fenômenos que se oferece à atividade conceitualizante e
legisladora da razão e à atividade transformadora da técnica
|
TRAGÉDIA
ANTIGA:
DESTINO que age sobre as liberdades
do alto de um céu misterioso
CAPRICHO DOS DEUSES258
|
DIREITO
MODERNO
FAZER na ordem da causalidade eficiente
RAZÕES DO PODER258
|
A
questão fundamental da ANTIGA FILOSOFIA PRÁTICA, no âmbito da vida social, era
a determinação dos requisitos essenciais que asseguram ao homem, como
cidadão, exercer na sociedade política os atos próprios da vida virtuosa ou
da vida ordenada para o bem da cidade163
|
A
tarefa primordial do PENSAMENTO MODERNO é propor uma solução analítica
satisfatória ao problema da associação dos indivíduos, tendo como alvo
assegurar a satisfação de suas necessidades vitais163
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Tempo
qualitativo
|
Tempo
quantitativo
|
Passado
e Presente como componentes estruturais de um TEMPO QUALITATIVO, que se
articulam dialeticamente para constituir o TEMPO HISTÓRICO, o tempo do ethos
ou da tradição
|
Predomínio
do fazer técnico onde o TEMPO é
cálculo e previsão; o tempo se
distende todo na planificação e
domínio do FUTURO
|
Ethos
que organiza qualitativamente o TEMPO PASSADO numa perspectiva axiológica em
cujo prolongamento – pela reiteração, pelo confronto ou pela transgressão –
deverão situar-se as opções ético-políticas do TEMPO PRESENTE
|
Esvaecer-se
do horizonte da tradição em face do avançar do TEMPO QUANTITATIVO ao qual a
história-ciência parece submeter-se e que abre largo espaço para o niilismo
ético e político
|
A
primazia do tempo quantitativo transfere do passado para o futuro a instância normativa do tempo ou o seu
centro de gravidade: o que significa conferir ao tempo por vir os
predicados axiológicos que asseguravam a exemplaridade do passado na formação
do ethos tradicional .
|
Com este quadro
demonstramos as principais características de um e de outro modelo de forma
sinópitca. No campo da Filosofia, a tentativa de superação do dualismo
sujeito/objeto criado pelo novo paradigma epistemológico gerou em esforço
titânico, realizado sobretudo por G.W.F. Hegel. Todavia, não será em uma
monografia de um curso de especialização que se poderá demonstrar de forma
detalhada (ou até mesmo resumida) quais foram os caminhos hegelianos desta
superação. Mesmo porque a notória dificuldade do pensamento de Hegel, vem em
detrimento dele mesmo, no sentido de que poucos se aventuram a lê-lo justamente
pela natural dificuldade de se compreendê-lo.
De qualquer forma, na
esteira do esforço de superação dos conflitos gerados pela modernidade, além de
Hegel, e por causa de Hegel, há um capítulo interessante na História da
Filosofia que será justamente o tema do sistema.
O próprio Hegel elaborou
seu pensamento de forma sistemática e o apresentou de forma dialética, fazendo
com que forma e conteúdo se inter-relacionassem de forma inconsútil e
determinante, no sentido que a forma do sistema dependesse ontologicamente do
próprio conteúdo.
Neste trabalho, pularemos
os passos hegelianos para abreviar as etapas intermediárias e alcançarmos de
imediato um dos resultados da reflexão contemporânea que foi a elaboração da
teoria dos sistemas, que permitiu a criação de uma noção de sistema diferente
dos padrões euclidianos de edificação conceitual.
No próximo capítulo
apresentamos as noções principais da teoria do sistema e a noção de sistema
aberto, desenvolvida nas ciências biológicas e portanto, detentora de uma
complexidade maior, e portanto mais adequada para ser adotada como noção que
permita a representação abstrata e teórica do fenômeno jurídico.
Capítulo Segundo
O Sistema e a Teoria do
Sistema
Para redigir este trabalho,
pinçamos do campo da Filosofia os seguintes tópicos: a reflexão sobre a cisão
entre Ética e Direito e a urgência de
sua superação, a teoria dos sistemas e o problema antropológico da dignidade
humana.
Os aspectos jurídicos
correspondentes a estes problemas filosóficos são os seguintes: o
pós-positivismo como superação da cisão moderna entre Ética e Direito , a
assunção do conceito de sistema aberto, oriundo das teorias do sistema e da
biologia, e finalmente o princípio da dignidade da pessoa humana oriundo das
antropologias personalistas de matriz cristã.
Portanto, neste trabalho
temos a pretensão de apresentar as raízes filosóficas de três tópicos centrais
da reflexão jurídica atual, no sentido de aprofundar a compreensão destes
temas, bem como inter-relacioná-los entre si.
Em linhas gerais,
apresentar como na grecidade clássica, vem a ser na antiguidade de Platão e
Aristóteles, se dava a relação entre Direito e Ética, justamente em função do
horizonte epistemológico marcado pelo paradigma ontológico.
Com o advento da
modernidade, deu-se a ruptura entre Ética e Direito , porque se impôs um
horizonte epistemológico de caráter hipotético-dedutivo marcado pelo ideal
reducionista de geometrização da realidade, de sucesso indiscutível no campo da
Física newtoniana, que se tentou transcrever para o campo de todas as outras ciências. O sistema
fechado da Física tornou-se o paradigma
epistemológico predominante e hegemônico. E tal paradigma passou a ser copiado
e imitado no campo de todas as outras ciências. Tal pretensão alcançou o seu
ápice jurídico no sistema kelseniano (influenciado por Kant, que por sua vez
foi influenciado por Issac Newton).
Todavia a exacerbação dos
princípios de um sistema fechado leva a contradições lógicas, no campo da
abstração e do exercício intelectual e, quando aplicados à realidade pode levar
a absurdos históricos inacreditáveis, mas que infelizmente tornaram-se
realidade durante a Segunda Guerra Mundial, vez que a defesa dos grandes
responsáveis pelas atrocidades do Terceiro Reich era fundada, sobretudo, no
fato de que ordens estavam sendo obedecidas. E a obediência à legalidade da
ordem permitia que se expurgasse todo o
aspecto moral da conduta humana. Ora a conduta humana pode ser regrada por
leis, mas nunca que tais leis serão suficientes para alcançar a complexidade de
qualquer vida humana, ainda mais dentro de um sistema jurídico fundado em
pressupostos abstratos de natureza hipotético-dedutiva.
A sistematização teórica da
biologia, levada a cabo por Ernst Mayr, no século XX demonstrou que os
organismos vivos devem ser compreendidos
a partir de um instrumental teórico que compreenda a vida e suas inter-relações
com o meio como um sistema aberto.
Considerando que a vida
humana tem sua base e sua estrutura biológica, e ultrapassa, por meio da
cultura, suas determinações biológicas, diferenciando-se de todos os outros
seres vivos, justamente pela sua criatividade cultural, como se pode pretender
que um aspecto ligado à intersubjetividade, a saber, o aspecto jurídico das
relações humanas, possa ser tratado a partir de um sistema fechado?
Como se vê, há uma
contradição de paradigmas, que no horizonte da História causou estragos
incomensuráveis. É óbvio que a causa da Segunda Guerra Mundial foram interesses
econômicos e não jurídicos. Mas o Direito, compreendido a partir de uma visão
tão restrita, tão matematizante, e reducionista da legalidade, foi utilizado de
forma oportunista pelos sujeitos históricos daquele grande e trágico momento do
século passado.
Enfim, o esgotamento do
paradigma de sistema fechado, de matriz more
geométrico, no século XX, alcançou
seu ápice nos paroxismos teratológicos da estruturação legal e juridicamente
organizada do nazi-fascimo, que teve na pessoa de Adolf Einchman
a sua caricatura por excelência. Afinal tudo que ele fez foi simplesmente
cumprir ordens! E o cumprimento de ordens superiores, fundadas no sistema legal
vigente, parecia poder eximi-lo de qualquer conflito de consciência, de
qualquer conflito moral, afinal, como diz João Guimarães Rosa, “é mais fácil obedecer do que entender”.
Em função da inauguração,
no âmbito da filosofia da teoria dos sistemas, e de toda a tentativa de superar
o dualismo kantiano e moderno entre moralidade/eticidade e legalidade, vê –se
hoje no âmbito do estudo do direito constitucional todo o esforço do
neoconstitucionalismo e do principialismo em ultrapassar os lindes do sistema
fechado, para se restaurar de forma original e hodierna, a antiga comunicação
ontológica entre Ética e Direito .
1. Sistema e etimologia.
A
palavra SISTEMA tem sua origem grega na expressão Sunivsth'mi - Sunístêmi
– cujo significado original traz a idéia de colocar de pé ao mesmo tempo um
certo conjunto de objetos. O prefixo Sun
(leia-se “syn”) é o início de palavras de origem grega tais como simpósio, síntese, sinóptico que trazem,
por causa deste mesmo sufixo a idéia de reunião: reunião para beber (simpósio),
reunião de idéias (síntese), visão reunida (sinopse). De forma muito elementar
a palavra SISTEMA traz a idéia de conjunto de elementos ou partes de uma
realidade que se encontram reunidas,
organizadas e articuladas entre si de forma recíproca; sendo que cada
uma das partes do sistema adquire função, significado e relevância a partir
mesmo de sua posição e inter-relação recíproca com as outras partes do
conjunto. Isto significa que os elementos que compõem um sistema não estão
apenas justapostos um após o outro, mas estão articulados às vezes de maneira
superficial, às vezes de maneira visceral e fundante, dependendo apenas da
função desta ou daquela parte do sistema no interior do mesmo conjunto. Entre
os elementos do conjunto há uma relação de interdependência circular e radial.
E ao mesmo tempo um sistema pode ser considerado dinâmico ou estático.
A
teoria dos sistemas pertence ao vocabulário filosófico do século XX. Ela surgiu
após o fim da Primeira Guerra Mundial, mas foi apenas nos anos da década de
1970 que ela se consagrou como teoria. Sua origem mais remota é o seio das ciências matemáticas, mas ela ultrapassou
os limites da matemática e desenvolveu-se profundamente no campo da biologia.
Uma teoria do sistema se esforça por estabelecer um quadro, o mais geral
possível, no interior do qual se possa estudar o comportamento de uma entidade
complexa, bem como de uma série de entidades conectadas com a entidade
principal.
Neste
sentido seria possível afirmar que o sistema jurídico, ao menos dentro dos
quadros da teoria jurídica ocidental teria como núcleo principal uma
constituição. A constituição como tal não seria o sistema mas o seu núcleo. A
partir deste núcleo, tal qual um grande “sistema nervoso”, se estendem todas
suas ramificações que alcançam toda (ou quase toda) a tessitura da vida humana
individual e social. A figura do sistema nervoso, cuja principal característica
é a sua capilaridade é muito mais próxima do que realmente é o Direito do que a
simplória figura kelseniana da pirâmide. A representação piramidal traz uma
camada intermediária que parece separar sua ponta de sua base. A figura de um
sistema complexo, tal como a do sistema nervoso alcançando todos os membros de
um indivíduo vivo é muito mais eficaz para se compreender e se representar o
fenômeno jurídico.
De
qualquer forma, a teoria do sistema indica que é absolutamente necessário que
exista uma certa correspondência entre o sistema (enquanto constructo
representativo e operativo de um determinado objeto representado) e o tipo de objeto que se quer estudar.
A
mesma teoria dos sistemas apresenta como forma de classificação as seguintes
modalidades de sistemas: sistemas fechados e sistemas abertos. Os sistemas
fechados são aqueles de matriz exclusivamente matemática, que representam
partes mais simples da realidade e com
maior possibilidade de abstrativização. Como exemplo é possível citar os
aspectos da realidade que para serem operacionalizados de forma abstrata basta
que existam mecanismos de quantificação. Quando o problema é apenas quantificar
objetos, sistemas matemáticos são, na maioria das vezes suficientes para
representar tal realidade de forma adequada, bem como é possível conseguir
realizar previsões precisas.
Mas
quando se trata de representar forças físicas (na maioria dos casos os sistemas
fechados ainda dão conta deste desafio), relações entre forças, decisões de
agrupamentos humanos, as variáveis começam a se multiplicar e o grau de precisão
começa a cair, pois, um instrumental teórico fechado, não consegue representar
adequadamente as múltiplas variações possíveis decorrentes da liberdade e do livre arbítrio do ser humano vivendo em
sociedade. Este é o caso do Direito, que
ao tentar regular as mais variadas possibilidades da vida humana se vê
profundamente restrito quando resolve adotar um tipo de teorização com
pressupostos análogos àqueles próprios de um sistema fechado.
Ora,
um sistema aberto, tem como pressuposto a inter-relação do objeto de estudo com
o meio ambiente. Um ser vivo qualquer que exista, por mais simples que pareça,
pela própria condição de ser “vivo” interage profundamente com o seu meio
ambiente, seja
porque ele precisa nutrir-se, seja porque ele precisa eliminar dejetos; ele
pode ser a presa de algum tipo de predador, ou ainda, ele mesmo é um predador
de outras espécies, e às vezes até mesmo da própria espécie, e com isso a complexidade de um determinado
sistema sai do patamar da representação linear, mecânica e quantificadora para
um tipo de representação que precisa articular inúmeras variáveis qualitativas
(às vezes não quantificáveis), sem as quais qualquer tipo de teoria não tem
como deixar de se constituir como um reducionismo grosseiro.
Desta
forma, uma teoria geral do sistema deve ser considerada como
uma ciência geral da totalidade, que parte do pressuposto de que o seu
domínio de aplicação deve ser em primeiro lugar um objeto de demasiada
complexidade, que pode ser formado por outros sub-conjuntos também complexos,
ligados entre si e ligados ao objeto principal. Ora tais características se
encaixam perfeitamente no horizonte da Teoria Geral do Direito.
Outra
característica do sistema, é que enquanto sistema ele deve possuir um grau de
complexidade maior do que a complexidade de suas partes: e isto impede que um sistema qualquer seja
reduzido a qualquer de suas partes. Juridicamente falando seria impossível
identificar o sistema jurídico brasileiro com a Constituição de 1988. Da mesma
forma que seria impossível reduzir o mesmo sistema jurídico a um ordenamento
regido exclusivamente pelo Novo Código Civil.
Segundo
Jean Ladrière as principais características de um sistema são aquelas que
decorrem de seu comportamento histórico-evolutivo. “L’evolution d’um système est composée à la fois des variations internes
au système et des interactions externes qui viennent s’ajouter aux premières”
(tradução livre: A evolução de um sistema é composta por sua vez, pelas
variações internas ao próprio sistema e pelas interações externas que se
agregam às primeiras).
No curso de sua evolução, o sistema pode conservar uma certa estabilidade se
ele conseguir preservar suas principais características ainda que ele sofra
modificações internas ou ataques externos decorrentes de sua interação com o
meio ambiente. Neste sentido é muito fácil perceber que a Constituição de 1988
vem sendo modificada ininterruptamente desde sua promulgação, todavia o grau de
modificações internas não foi causa de sua ruína. Ao mesmo tempo ela sofre
influência da realidade social, das crises mundiais, da produção jurídica
internacional. Ou seja, o sistema jurídico brasileiro não é algo aprisionado no
interior de uma redoma axiomática ou matemática, indiferente a tudo aquilo que
ocorre no seu exterior.
O
sistema jurídico nacional, tal como um ser vivo cresce com a produção
legislativa do poder respectivo, vive alterações “hormonais” em função da
maturidade alcançada e é suscetível de vir a ser sensivelmente alterado pela
ratificação de tratados internacionais que podem até mesmo ser incorporados
como normas de estatura constitucional.
Portanto,
é muito interessante como a substituição do conceito de sistema axiomático
(fechado) por um conceito de sistema aberto, que permite representar o
ordenamento jurídico não como um mecanismo, mas como um organismo vivo, que
interage com o seu entorno, que cresce, que se alimenta, que apodrece, que
troca de folhas, que troca de pele, que elimina detritos e dejetos, é muito
mais promissora do que a forma moderna de compreensão do sistema jurídico como
um sistema enclausurado pelos seus próprios axiomas pré-estabelecidos:
“Ainsi,
par exemple, la physique conventionnelle ne s’ocupe que des systèmes fermés,
c’est-à-dire qui sont consideres comme isolés de leur environnement; par
contre, les sciences humaines étudient des systèmes ouverts, parce qu’elles
sont liés à l’homme, qui est essentielement um système ouvert (tradução livre: Assim, por exemplo, a física convencional se
ocupa apenas de sistemas fechados que são considerados isolados de seu meio
ambiente; em contrapartida, as ciências humanas estudam os sistemas abertos,
porque elas são ligadas ao estudo do homem, que é essencialmente um sistema
aberto).
De alguma forma, uma
abordagem da atual constituição brasileira a partir de uma epistemologia
kelseniana é de uma impropriedade epistemológica naïf, ou ainda de forma metafórica e musical, como diria a música
do Sítio do Picapau Amarelo: “marmelada de goiaba, goiabada de marmelo”. As
coisas estão sendo misturadas. Pressupostos ultrapassados estão muitas vezes
sendo utilizados para explicar outra realidade. É como muitas vezes,
ingenuamente, muitos de nós falamos: “O
Sol acabou de nascer”, desprezando tudo que a atual astronomia já nos ensinou
durante os duzentos últimos anos: “Não é o Sol que nasce, é a Terra que gira”.
Mas de qualquer forma, a vida ordinária nos permite estas liberdades
lingüísticas. Sobretudo porque o discurso do mundo da vida não precisa do rigor
da ciência.
No entanto, tais liberdades
não são possíveis no âmbito do tratamento teórico de qualquer domínio
científico. E no Direito, menos ainda se deve permitir esta miscelânea ou esta
bagunça epistemológica, pois em muitos casos o que se tem em jogo não são opiniões,
mas bens e direitos dos cidadãos. O tratamento rigoroso de algo que seja objeto
de estudo deve ser marcado pelo rigor intelectual e epistemológico, sem que
seja permitida a mistura de pressupostos distintos, pertencentes e oriundos de
paradigmas epistemológicos diferentes, com valores diferentes, escopos
distintos, raízes oriundas de épocas também distintas.
Portanto, uma vez que a
teoria jurídica contemporânea se mostrou permeável às conquistas filosóficas do
século XX e trouxe para dentro de si muitas das novas idéias que flexibilizaram
e abriram o mundo da teoria do conhecimento para além do restrito horizonte da
matemática, é necessário que isto seja amplamente explicitado para que ocorra
uma efetiva transfiguração de um Direito que cresce em terrenos
epistemologicamente mais ricos e profícuos.
Muito
bem. Na tentativa de superar os lindes de uma universalidade
hipotético-dedutiva, fechada, que mantinha dentro de seus limites os elementos
constitutivos do Direito, por sua vez, isolados do mundo da vida, do mundo da
moralidade, da justiça e tentava tratar os conflitos de forma estritamente
técnica e quase asséptica a epistemologia
enriqueceu-se com a compreensão de que o ordenamento jurídico pode se
constituir como um sistema aberto, autorizando desta forma sua aproximação com
outros campos das ciências humanas.
E
de forma muitíssimo pertinente, tal abertura permitiu que o Direito se
aproximasse de uma das ciências mais importantes do amplo feixe das ciências
humanas: a Antropologia Filosófica. E da Antropologia Filosófica o Direito
absorveu a noção de dignidade da Pessoa humana. É disso que trataremos no
capítulo quarto. Mas antes de passarmos para o capítulo quarto, no capítulo
terceiro pretendemos aprofundar a idéia de sistema a partir de dois conceitos
fundamentais: o conceito de via
compositionis e o conceito de via resolutionis .
O
estudo destes dois conceitos indicará as duas direções por meio das quais se pode compreender um
sistema como tal. Este é o tema do capítulo seguinte.
Capítulo Terceiro
A via compositionis e a via
resolutionis : direito positivo e direito natural
Via compositionis e Via resolutionis são duas
expressões retiradas do vocabulário filosófico e apontam para duas formas
distintas de se abordar um determinado constructo teórico.
De
forma bem simples, quase simplória é possível dizer que são duas faces da mesma
moeda, ou ainda são duas posições possíveis para se observar o mesmo sistema
teórico, ou um mesmo ordenamento jurídico.
Tecnicamente, a primeira expressão
indica a inteligibilidade para-nós do
discurso, e a segunda designa a inteligibilidade em-si do discurso filosófico.
Um
sistema qualquer pode ser observado a partir da via compositionis, que é a via ou o caminho de sua composição, o
caminho de sua construção, é a direção didática e teórica de apresentação de um
sistema qualquer. À primeira forma de se abordar um sistema, geralmente está
associada uma perspectiva histórica. Seja um sistema filosófico, seja um sistema
jurídico, a partir da chamada via
compositionis se pode percorrer cada
uma das etapas de construção lógica, ou mesmo cada uma das etapas históricas de
desenvolvimento de um ou outro constructo sistemático jurídico, filosófico,
científico.
Para
se ter uma visão compreensiva do ordenamento jurídico brasileiro é necessário
se compreender um pouco de história nacional e ver quais foram os momentos
históricos mais decisivos e marcantes para a edificação e para a elaboração da
cultura jurídica brasileira, que num último momento desaguou na redação da
atual Constituição Federal com suas transformações e transfigurações, com suas
emendas e com a adesão a novos padrões de compreensão do Direito Constitucional
que permitem, por sua vez, o fenômeno da mutação constitucional.
Por
outro lado, a partir da via resolutionis é possível observar todo o ordenamento
jurídico nacional a partir de seu topo, a partir da Constituição que não
obstante, seja o ponto de chegada da via
compositionis , é o ponto de partida da via
resolutionis. Ou seja, do topo ou do centro do ordenamento jurídico, onde
se coloca a Constituição se pode entender e compreender todo o ordenamento como
tal, pois a Carta Magna é a fonte de inteligibilidade de todo o resto do
ordenamento: é a clef de voûte, é ao
mesmo tempo ponto de chegada e ponto de partida. É o télos, é o fim (enquanto
finalidade, objetivo, escopo) jurídico de qualquer ordenamento. Usando a
expressão retirada da teoria aristotélica das causas, a Constituição é a CAUSA
FINAL de qualquer ordenamento jurídico (a partir da chamada via compositionis).
E por outro lado é o ponto de partida, é a fonte e a matriz de inteligibilidade
de todo o ordenamento infra-constituicional. É fonte de inteligibilidade, até
mesmo daqueles institutos redigidos antes da própria Constituição e que foram
por ela recepcionados. Pelo fato de que a Constituição é ponto de partida (para
a via resolutionis ) e ao mesmo tempo
ponto de chegada (para a via
compositionis ) é possível perceber que no seio desta abordagem do sistema
jurídico é possível absorver a idéia filosófica do RETORNO, porque o ponto de
partida e o ponto de chegada de alguma forma se tocam e se encontram de forma
lógica e de forma dialética. Afinal qualquer ordenamento jurídico, ao longo de
sua história, começou a ser construído com dispositivos legais rudimentares e
alcançou seu grau máximo de elaboração em algum texto sagrado, de alguma carta
superior ou de algum texto constitucional. Por outro lado, aquele antigo
dispositivo, rudimentar, primígeno, quase ancestral (não matar, não pegar as
coisas dos outros), hoje só pode ser compreendido a partir da sua absorção pelo
constructo maior que é a Constituição como tal.
Com
isto é possível afirmar que um sistema pode apresentar um duplo roteiro de
leitura: o roteiro da via compositionis ou
o roteiro da via resolutionis.
O
fundamento teórico destas duas possibilidades de leitura e de compreensão do sistema tem sua origem
numa terminologia
aristotélica presente nas Analíticas Segundas (I, 71 b 34 – 72 a 5) onde Aristóteles faz a
distinção entre o percurso ascendente da inteligibilidade
para-nós (prós hemãs) e o
percurso descendente da inteligibilidade em-si (aplôs), que indica o retorno aos passos já
percorridos:
"...
o percurso ascendente explicita uma
inteligibilidade para-nós, ou seja,
para o sujeito que se afirma como ser
ao percorrer os estágios sucessivos da sua auto-compreensão como corpo,
psiquismo e como espírito; o percurso descendente, ou o retorno aos passos já
percorridos, explicita a inteligibilidade em-si, ou seja, do sujeito que se constitui na sua unidade a
partir do seu núcleo ontológico mais profundo que é o espírito".
O
filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz afirma que a terminologia fixada para
indicar estas direções de leitura do sistema é de origem aristotélico-tomista.
Todavia é possível afirmar que esta opção metodológica também tem uma filiação
platônica e hegeliana. No
seu artigo sobre A Dialética das Idéias
no Sofista, Lima Vaz apresenta as noções platônicas de symploké (sunplokhv) e
diaíresis (diaivresi"),
que indicam, respectivamente, a direção ascendente e a direção descendente do
discurso sobre as idéias. E que nesta seção podem corresponder à via compositionis, direção para-nós, e à via resolutionis direção em-si.
Quadro – Symploké e Diaíresis
|
Symploké – (sunplokhv)
|
Diaíresis – (diaivresi")
|
|
Direção
ascendente
|
Direção
descendente
|
direção para-nós
|
direção em-si
|
Via
compositionis
|
Via
resolutionis
|
Constituição
das categorias ou constituição do ordenamento jurídico
|
Fundamentação
das categorias ou do fundamentação do ordenamento jurídico
|
Quando
apresenta a dialética das Idéias no texto platônico do Sofista, Lima Vaz afirma
que
“Se
o logos se forma em nós através da sunplokhv das Idéias
(259e), todas as suas expressões mostram o tipo determinado de relação ideal,
que é por isso mesmo, relação real. Ora, a sunplokhv das Idéias (já no-lo ensinara o Fédon) é uma hierarquia ascendente. Só
há, pois dois movimentos possíveis para o logos:
a descida, que procede de uma Idéia superior, ou seja ‘a divisão’ (diaivresi"); e
subida, que vai das Idéias inferiores a uma Idéia superior, ou seja a ‘coleção’
(sunplokhv).
E é precisamente como campo deste movimento
que Platão descreve, no texto citado [Sofista],
o objeto da visão dialética” .
Ao
tratar das categorias de sua Antropologia Filosófica, Lima Vaz explicita de
forma magistral os conceitos de inteligibilidade para-nós (via compositionis) e de inteligibilidade em-si (via resolutionis):
“Essa
ordem da inteligibilidade em-si pode ser lida também inversamente
como ordem da inteligibilidade para-nós (ordem da elaboração do discurso
dialético), segundo um silogismo no qual a particularidade da estrutura psicossomática é mediatizada pelo sujeito singular e é
suprassumida na universalidade do espírito segundo a fórmula (P-S-U). Assim,
está fechado o círculo dialético: do espírito ao corpo (inteligibilidade em-si)
e do corpo ao espírito (inteligibilidade para-nós). No entanto, a circularidade dialética só é possível porque o
espírito, estando presente ao fim do percurso, está presente no seu início pela
função mediadora do sujeito que se exerce no esquema da categoria (N) -> (S)
-> (F), nele referindo o eidos ou forma à amplitude transcendental do ser (princípio da
ilimitação tética), o que implica, no nível do espírito, a identidade (real no espírito infinito, intencional no espírito finito) da
Natureza e da Forma sendo ambas, por sua vez, idênticas, real ou
intencionalmente, ao Sujeito como mediação. Assim, também na filosofia, o
espírito dá necessariamente testemunho ao espírito ou ‘o espírito é para o
espírito’”.
Esta
postura metodológica para se abordar um sistema é perfeitamente possível de ser
adotada para se compreender um determinado sistema jurídico, vem a ser um
ordenamento jurídico qualquer.
“...essa
trajetória é percorrida nos dois sentidos, pois o movimento primordial de
subida ao inteligível reverte, na atividade normal do conhecimento ao seu ponto
de partida no sensível, a fim de que se
complete o ciclo do processo cognoscitivo, e o conhecimento humano possa ser um
conhecimento real do mundo exterior”.
"Tendo,
pois, dado os seus primeiros passos no terreno da experiência do ethos,
o discurso
da Ética filosófica leva finalmente a seu termo o pensamento do ethos: unde est
orsa in eodem terminetur oratio.
Estamos, pois, em presença de um círculo do discurso evocando a imagem clássica com a
qual foi representada a natureza do pensamento dialético. Essa metáfora
geométrica, no entanto, não deve induzir-nos em erro. Com efeito, o
círculo dialético não é o simples prolongamento de
uma linha que se fecha sobre si mesma
retornando ao ponto de partida. O círculo geométrico, no qual todos os pontos
são indiferentemente eqüidistantes do centro pode ser dito de uma tautologia espacial. Interpretado literalmente segundo a imagem do
círculo geométrico, o círculo dialético
não seria senão uma tautologia lógica.
Mas a metáfora geométrica do círculo
serve, na verdade, apenas como imagem apta a representar a completude do
movimento dialético enquanto expressão lógica do processo de constituição inteligível de uma determinada realidade. Nesse sentido o
movimento dialético não avança através da repetição
dos mesmos momentos como os pontos no círculo geométrico, mas pela negação ou suprassunção (Aufhebung),
que, ao mesmo tempo, nega e conserva cada momento no momento
posterior. Desta sorte o termo do movimento se define como restituição da
singularidade de cada momento na unidade de um todo logicamente organizado,
no qual o princípio, inicialmente apenas dado, se reencontra como fim,
pensado na sua estrutura inteligível".
Esta
visão de Lima Vaz a respeito da sua idéia de retorno ou do círculo dialético,
que se faz presente em no seio de um sistema, e aqui se ousa dizer, que se faz
presente em todo o seu pensamento filosófico, está em consonância com a idéia
hegeliana do “círculo que se fecha sobre si mesmo”.
"Cada
uma das partes da filosofia é um Todo filosófico, um círculo que se fecha sobre
si mesmo mas a idéia filosófica está ali em uma particular determinidade ou
elemento. O círculo singular, por ser em si totalidade, rompe também a barreira
de seu elemento e funda uma esfera ulterior. Por conseguinte, o todo se
apresenta como um círculo de círculos,
cada um dos quais é um momento necessário, de modo que o sistema de seus
elementos próprios constitui a idéia completa, que igualmente aparece em cada
elemento singular".
É
possível completar o quadro acima com os
seguintes dados: a. a via compositionis pode
ser caracterizada como a via ascensus,
ou como via sintética que determina
o ritmo dialético de expansão; b. a via
resolutionis pode ser caracterizada como a via descensus, ou como via
analítica que determina o ritmo dialético de reflexão.
Via compositionis
|
Via resolutionis
|
via
ascensus
|
via
descensus
|
via sintética
|
via analítica
|
ritmo dialético de
expansão
|
ritmo dialético de
reflexão
|
A
partir desta perspectiva, pode-se afirmar que muitas vezes estudiosos
diferentes olham para o mesmo sistema jurídico a partir de lugares diferentes.
Em
geral, o juspositivista freqüenta o ordenamento jurídico a partir da
perspectiva permitida pela direção da construção do sistema, a partir da
perspectiva da via compositionis.
Perdendo a perspectiva de que a inteligibilidade decorre do ponto mais alto do
sistema, e que cada instituto jurídico deve ser coerente com a norma mais
importante do ordenamento, com sua Constituição. O positivista não percebe que
o sentido do sistema, não obstante ele seja construído e posto, só é alcançado no fim do percurso.
E
o jusnaturalista, em geral tem sua abordagem jusfilosófica do alto do sistema,
perdendo a noção histórico-temporal da construção do edifício jurídico, muitas
vezes, acreditando que o sistema como
tal é uma obra que nasceu completa e acabada, revelada pela vontade da Divina
Providência ou mesmo deduzida matemática e logicamente dos atributos universais
do Cogito, da Razão humana, por excelência.
Por
isso, o jusfilósofo não percebe que a natureza histórica da construção do
sistema permitiu que cada um fincasse suas raízes em sua posição e não percebe
que jusnaturalismo e juspositivismo podem ser considerados dois pontos de vista diferentes de um mesmo
objeto.
Portanto,
a exposição de que um sistema científico, jurídico, filosófico, pode ser
demonstrado a partir de duas grandes direções, mostra que tais perspectivas são complementares e podem não ter nada de excludentes entre si.
Desta
forma seria possível substituir a representação piramidal de Kelsen, por uma
representação, ainda que geométrica, um pouco mais sofisticada e dinâmica que
seria a figura hegeliana do círculo dos círculos.
Assim
cada uma das camadas da pirâmide seria substituída por um círculo
concêntrico. A camada mais baixa da
pirâmide é o primeiro dos círculos (o mais exterior) que
permite, funda e sustenta o desenho do segundo círculo (da segunda camada) que
por sua vez, juntamente com o primeiro apontam para o terceiro círculo que se
configura ao mesmo tempo como o último círculo e como o círculo dos círculos,
vem a ser, a norma constitucional. Esta, por sua vez, (na direção invertida) possibilita
o desenho dos dois primeiros círculos, pois é o seu centro que se apresenta
como centro dos círculos externos. Do ponto de vista metodológico, nosso
roteiro de criação de um ordenamento jurídico procede inicialmente seguindo a
chamada via compositionis: parte da elaboração
dos mais rudimentares dispositivos legais para se alcançar estruturas jurídicas
de magnitudes e envergaduras amplas o suficiente para fornecer ordem, simetria,
inteligibilidade e fundamentação para todo o ordenamento.
“Ao
termo do percurso, novamente nos encontramos no princípio, obedecendo a uma
modalidade da via resolutionis, que é, ao mesmo tempo, a instauração de
uma totalidade de estrutura dialética"[42].
"Na
terminologia medieval, a via compositionis ou sintética procede do simples ao complexo,
ao passo que a via resolutionis ou analítica caminha do complexo ao simples.
Esses paradigmas metodológicos foram codificados por Aristóteles, cujos textos
a respeito foram comentados por Tomás de Aquino (Expositio super librum Boethii
de Trinitate, q. VI, art.1.) O método normal da metafísica, segundo Aristóteles
e Tomás de Aquino, segue a via
resolutionis, vindo a metafísica
(filosofia primeira ou teologia) após a física. Cremos, no entanto, que o uso
da via compositionis em chave dialética, como aqui propomos, está
de acordo com a estrutura teórica da metafísica tomásica do esse".
Para
dar mais visibilidade ao tema das duas direções do sistema, o gráfico seguinte
ilustra a diferença entre as duas formas possíveis de se percorrer um
determinado sistema, sendo que no caso específico o gráfico esquematiza o
sistema do próprio filósofo citado, elaborado pelo próprio autor desta
monografia por ocasião de sua tese de doutorado
Portanto,
a partir de um determinado sistema é possível encontrar a presença de dois
roteiros de leitura, marcados pelo movimento da circularidade lógico-dialética.
Um deles percorre uma ordem, ou uma direção de inteligibilidade para-nós, à medida que parte da manifestação
mais elementar do ser do objeto em questão, e avança
"em
direção à unidade final da complexidade ontológica que se desdobra desde aquele
momento inicial. Ora, a essa unidade final aparece seja como a suprassunção de
toda a série das categorias, seja como a síntese entre a essência e a existência ou entre o ser que é e o ser que se torna ele mesmo (ipse)
pela realização ativa in actu secundo ou o perfectum, do que ele é in
actu primo ou o perficiendum".
Esta
é a forma através da qual Lima Vaz organiza a redação e constituição do seu próprio
sistema filosófico. No entanto, sua obra e a Filosofia como tal, também podem
ser compreendidas a partir de outra perspectiva, ou a partir de outra direção,
inversa à ordem mesma de leitura para-nós,
mas que completa e dá o acabamento final à compreensão do sistema visto a
partir do seu termo, em palavras muitos simples, visto a partir de cima.
Uma
compreensão sistemática e com pretensões teóricas mais ousadas deveria inserir
o fenômeno do Direito, no interior de uma compreensão do fenômeno humano, a
saber, no seio de uma Antropologia Filosófica que ao desdobrar-se em suas
respectivas categorias colocasse a Ética e o Direito no espaço da categoria de
intersubjetividade.
E considerando que ao tratar de uma opção jusfilosófica que trouxe para si a
noção de Pessoa (por meio do princípio da dignidade da Pessoa humana) a
categoria que fornece o ponto de partida, a partir da direção em-si, ou a partir da via
resolutionis, é a categoria de
Pessoa, ou Pessoa Moral, que conceitualmente exigirá no plano de uma
fundamentação metafísica as categorias
de ordem e finalidade.
"A
metafísica do esse na esfera dos esse
finitos apresenta aqui uma estrutura taxiológica e teleológica
que convergem para o Princípio donde partiu o itinerário, ou seja, o Esse
subsistente na sua absoluta transcendência e na sua radical imanência no
cerne dos seres finitos, o seu esse (In
Im Sent., d. 14, q.2, a.2). O fundamento da ordem e da finalidade em cada
ser finito é o princípio intrínseco que o constitui como tal, a essência. Por sua vez, o ato da essência,
a forma, é o princípio de distinção no ser, tornando-o receptivo do esse
(Summa Theol., Ia., q. 76 a. 7, c.). Por conseguinte,
a unidade da ordem, e a finalidade que lhe é inerente, compõem-se com a
pluralidade das formas nos seres distintos, segundo uma escala de perfeições. Desenha-se aqui, portanto, a
participação vertical na perfeição absoluta do Primeiro
Princípio (C.Gentiles III,c.97)".
Mas
apresentar a possibilidade de um viés metafísico para um sistema jurídico que
se articule com uma Antropologia Filosófica e com uma Ética é ir longe demais
num trabalho de pós-graduação. Afinal o interesse deste trabalho
circunscreve-se à articulação da superação do paradigma do sistema fechado, com
a teoria dos sistemas e a absorção da noção de dignidade da pessoa humana.
Quadro
– Síntese dos dois roteiros de leitura do sistema
Via
compositionis
|
Via
resolutionis
|
via ascensus –
ordo cognoscendi
|
via descensus –
ordo essendi
|
via
sintética
|
via
analítica
|
ritmo
dialético de expansão
|
ritmo
dialético de reflexão
|
Subida
– do sensível para o inteligível
|
Descida
– do inteligível para o sensível
|
|
Symploké – (sunplokhv)
|
Diaíresis – (diaivresi")
|
|
Direção
ascendente
|
Direção
descendente
|
direção para-nós
|
direção em-si
|
Visão
do juspositivista
|
Visão
do jusnaturalista
|
Constituição
das categorias ou constituição do ordenamento jurídico
|
Fundamentação
das categorias ou do fundamentação do ordenamento jurídico
|
PONTO
DE PARTIDA: de baixo para cima:
dispositivos jurídicos mais elementares, leis superiores na hierarquia do
ordenamento jurídico, Constituição, categoria antropológica de Pessoa
(categoria teológica de Pessoa)
|
PONTO
DE PARTIDA: de cima para baixo:
(categoria teológica de Pessoa), categoria antropológica de Pessoa, Constituição,
leis superiores na hierarquia do ordenamento jurídico, dispositivos jurídicos
mais elementares,
|
PONTO
DE CHEGADA:
Considerado juridicamente: A
Constituição
Considerado filosoficamente: A Pessoa
|
PONTO
DE CHEGADA:
A vertebração e a amarração do sistema jurídico.
|
Ordem
de construção e composição do ordenamento.
|
Ordem
de fundamentação lógica, jurídica e filosófica do ordenamento.
|
Do
simples ao complexo
|
Do
complexo ao simples
|
Das
idéias inferiores às idéias superiores.
|
Das
idéias superiores às idéias inferiores.
|
Abordagem
cuja predominância é marcada pelo MÉTODO
|
Abordagem
cuja predominância é marcada pelo SISTEMA
|
Capítulo Quarto
O Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana
A
famosa expressão kantiana de que a Pessoa não é meio, mas fim é o estuário de
toda uma tradição antropológica que teve como base a história do cristianismo e
a especulação sobre a doutrina teológica da Santíssima Trindade, que entende
que Deus é Pessoa Una e ao mesmo tempo é Pai, Filho e Espírito Santo, Pessoa
Trina. O esforço especulativo para justificar teoricamente este paradoxo
teológico da identidade de três pessoas divinas, que se constituem como um
Único Deus provocou o desenvolvimento e a valorização da noção de Pessoa, como
sendo o atributo por excelência da Divindade, bem como o atributo por
excelência do próprio ser humano que participa da mesma condição de ‘ser
pessoa’.
É
óbvio que aqui também não será o lugar de expor qualquer coisa que seja sobre a
teologia da Trindade. Pois para as dimensões deste trabalho o necessário e o
suficiente é apenas que se saiba da existência da matriz teológica da noção de
Pessoa.
Em
função de sua riqueza conceitual, a categoria de pessoa desceu da Teologia, penetrou
no espaço conceitual da Antropologia Filosófica e se colocou como o ponto de
chegada e o ponto de partida desta ciência. Só há o discurso antropológico
porque alguém reflete sobre isto. E
aquele que reflete sobre o fenômeno humano ao mesmo tempo se entende como pessoa. Portanto, ser pessoa é condição
de possibilidade para a Antropologia, ao mesmo tempo que é o ponto de chegada
de toda a reflexão antropológica.
Mas
a partir de uma visão sistemática, a Antropologia se desdobra em categorias de
estrutura (o ser humano é seu corpo, seu psiquismo e seu intelecto), em
categorias de relação (objetividade, intersubjetividade e transcendência) e em
categorias de unidade (realização e pessoa).
No nível da categoria de intersubjetividade ocorre a articulação da
Antropologia (como ciência do homem) com a Ética (como ciência do agir humano).
É portanto, no plano da intersubjetividade que o teórico se encontra com as
ciências da Ética, da Sociologia, da
Política e do Direito, entre outras. Sendo que a Ética se constitui como a
ciência mais ampla e abrangente entre todas aquelas que estudam o fenômeno da
intersubjetividade. A Ética, por sua vez, desdobra-se em várias outras categorias,
entre as quais a mais importante é justamente aquela categoria análoga à
categoria antropológica de Pessoa, a saber, a categoria ética de Pessoa Moral.
Portanto,
na tradicional reflexão ética e antropológica, as categorias que dão o
fechamento conceitual a tais discursos são respectivamente as categorias de
Pessoa Moral e de Pessoa.
Caso,
se pretenda articular Antropologia, Ética e Metafísica, o fechamento deste
último discurso filosófico se dará com a categoria de Absoluto, vem a ser com a
categoria de Pessoa Divina. Mas tal como já foi dito, os limites deste trabalho
não permitem que este plano de reflexão seja alcançado. Afinal a única
pretensão deste último capítulo é demonstrar como a categoria de Pessoa (seja
como categoria antropológica, seja como categoria ética, seja como categoria
metafísica) se coloca como o conceito final não só destas três disciplinas
filosóficas (Antropologia, Ética e Metafísica), mas se coloca como o conceito
fundante do próprio Direito justamente porque é o conceito fundante daquelas
outras ciências sociais.
Portanto,
a reflexão jurídica atual, que chama para
si o princípio da dignidade da pessoa humana e que ao mesmo tempo busca uma articulação coerente e sistemática, sem
enclausurar o sistema em axiomas de matriz geometrizante articula-se com vários
ramos do saber, que no paradigma kelseniano, foram expulsos do espaço jurídico
de reflexão.
Desta
forma é possível dizer que o TÉLOS do Direito como fenômeno da vida real é a
Pessoa (independentemente de a pessoa concreta ser ou não cidadão; o problema
da cidadania é outra questão). E o TÉLOS do Direito como ciência, como domínio
epistemológico é a categoria de Pessoa Moral desenvolvida sobretudo na Ética,
como aprofundamento da categoria antropológica de Pessoa.
Ao
tratar da Dialética como método de elaboração do discurso filosófico é possível
dizer que o aspecto teleológico da dialética é responsável por uma das
características mais importantes de um sistema, a saber, a inter-relação entre
todas as partes do sistema. Pois o sistema, como tal, é constituído por um
conjunto de partes que se encontram intimamente relacionadas, ao mesmo tempo
que se referem a uma parte considerada mais importante que as outras. Portanto,
o aspecto teleológico do sistema pode ser visto como o elemento estruturante
responsável pela interação dos elementos que constituem o próprio sistema. Mutatis mutandis, é possível dizer o
mesmo a respeito da categoria de Pessoa, pois tal categoria é responsável por
uma das características mais importantes de um sistema
antropológico-ético-jurídico, a saber a inter-relação entre todas as partes do
sistema. Ou seja, é a categoria de Pessoa que permite a intercomunicação entre
todos estes círculos conceituais: o círculo da Antropologia, o círculo da
Ética, o círculo do Direito. De forma figurativa é possível dizer que tais
ciências são círculos concêntricos, cujo centro comum é justamente a categoria
de Pessoa. Assim, o sistema, como tal, é
constituído por um conjunto de partes que se articulam por meio da categoria de
Pessoa. Desta forma todas as categorias antropológicas, éticas, jurídicas e
metafísicas possíveis de serem elaboradas, referem-se umas às outras ao mesmo
tempo em que todas se referem à categoria de Pessoa. Assim, o aspecto
teleológico do sistema, orientado pela categoria de Pessoa pode ser visto como
o elemento estruturante responsável pela interação dos elementos que constituem
o próprio sistema.
O aspecto metafísico da categoria de pessoa
|
"O retorno do discurso (antropológico)
sobre si mesmo ao alcançar a categoria de pessoa mostra as peculiaridades da
sua estrutura dialética no âmbito dessa categoria. O princípio da limitação
eidética, aplicando-se aqui ao eidos
total do ser-homem, definido pela sucessão das categorias, configura esse eidos como a resposta adequada à
amplitude da pergunta ‘o que é o homem?’ Em virtude desse princípio, o discurso
se autolimita, tendo encontrado seu termo na categoria de pessoa e permitindo a dupla leitura da inteligibilidade para-nós (sucessão das categorias) e da
inteligibilidade em-si (fundamentação
última das categorias). Ao mesmo tempo, em virtude do princípio da ilimitação tética, ao afirmar o seu ser como pessoa, estabelecendo entre os dois termos uma equação ontológica,
o sujeito rompe a limitação eidética
da sua finitude e da sua situação, abrindo-se à infinito intencional do ser e tende a
orientar o dinamismo mais profundo da sua autorealização, o alvo da união
final, pela contemplação e pelo amor, com a infinitude real do Existente absoluto (ipsum
Esse subsistens)".
A categoria de Pessoa totaliza o
discurso antropológico e faz do homem uma unitas
oppsitorum, a unidade mais
perfeita que pode ser concebida. O homem, por um lado, é a unidade do ser que subsiste em si mesmo pela reflexão sobre si mesmo. Mas
por outro lado, ele realiza a unidade dos extremos opostos alcançados pela
experiência humana e que também coincidem com as últimas fronteiras do ser: a
matéria e o Absoluto.
"Ao totalizar o discurso
antropológico, a categoria de pessoa não somente mostra o homem aberto à
universalidade do ser a partir da particularidade da sua situação corporal no
aqui e agora do mundo. Mostra-o outrosssim, como lugar inteligível (tópos noétós) na concretude da sua singularidade,
onde se entrecruzam as linhas que procedem de todas as regiões do ser: do
sensível e do inteligível, do contingente e
do necessário, do possível e do atual, do relativo e do absoluto e,
finalmente do universo e de Deus".
Esta altitude inteligível do discurso antropológico, na síntese da
categoria de pessoa, permite a compreensão e a leitura da seriação das
categorias segundo a ordo cognoscendi, isto é o sentido para-nós, ou via compositionis , e segundo a ordo essendi, isto é o sentido
em-si, ou via resolutionis . Como
conseqüência destas duas possibilidades de leitura da Antropologia Filosófica é
possível organizar a compreensão do homem como pessoa segundo um movimento de
ascensão, via ascensus, e segundo um
movimento de descida, (via descensus).
“A continuidade desses dois
movimentos e a identidade do terminus ad
quem da ascensão e do terminus a quo da descida, ambos sendo
constituídos pela mesma categoria de pessoa, mostra-nos, por um lado, a identidade do Eu – sua unidade profunda
ou sua ipseidade – na diferença das
suas manifestações que se ordenam como formas da sua auto-expressão, ou seja
formas de expressão do mesmo (autós), finalmente identificadas na
categoria de pessoa”.
Algo análogo ocorre com a Ética, pois o sujeito moral é pessoa moral que
compartilha das mesmas prerrogativas da categoria antropológica de pessoa e que
possui como condição de possibilidade do discurso exatamente a posição fundante
e originária do Absoluto.
"A concepção de pessoa moral que aqui apresentamos não é
senão a interpretação ética da categoria de pessoa que foi exposta em nossa Antropologia Filosófica.
(...) O processo de personalização envolve a totalidade do nosso ser, do corpo
próprio ao espírito e todas as modalidades de nosso abrir-se à realidade
exterior, do mundo à transcendência. Ora esse processo é constitutivamente
ético e todo o nosso ser inscreve sua
gênese e sua história no destino de uma pessoa moral.
Estas linhas fundamentais da reflexão ética e antropológica tem como inspiração os paradigmas platônico e
aristotélico, segundo os quais se pressupõe uma relação constitutiva do ser
humano a uma instância racional, em si mesma trans-histórica, mas normativa de
todo o agir histórico: “a instância de um Bem transcendente”. Segundo Lima Vaz, esta
instância permanece como um invariante conceptual na variação de toda a
tradição ocidental.
"A afirmação do Bem como
princípio do ser e do ser conhecido (ratio
essendi e ratio cognoscendi) da
práxis humana é, como mostrou Aristóteles, o princípio de uma ciência da práxis
(a Ética), revelando-se também, por sua natureza, uma ciência prática. Uma ciência que discorra sobre o que é o Bem (em
si mesmo, em cada um de nós e na comunidade humana) e, ao mesmo tempo, nos
ensine como tornar-nos bons (Ét. Nic,
II, 2, 1103 b 26-28). Mas a utilidade da Ética como ciência prática (ou pragmática,
como se costuma dizer hoje) decorre de sua fundamentação numa ciência da
prática ou num discurso ordenadamente conduzido sobre estrutras inteligíveis
subjacentes ao operar da razão que
conduz a práxis, ou seja, da Razão
prática em sua ordenação necessária ao Bem. Apresentar uma versão, entre outras
possíveis, desse discurso, tal nosso escopo nessa Introdução à Ética Filosófica. Estamos convencidos de que a prática ética só pode ser justificada em
razão por uma ciência da prática, que
tenha como princípio e fundamento uma
metafísica do Bem: (...) não há Ética sem
metafísica".
O discurso metafísico já tem seu início com a questão do Absoluto. Mas ele
também apresenta uma evolução e uma seriação de categorias que parte da pré-compreensão do Absoluto, e culmina
na demonstração da sua existência e
na demonstração de sua natureza. Tanto o discurso antropológico,
quanto ético e metafísico, em última análise, têm como condição de
possibilidade do discurso a presença do Absoluto no dinamismo intelectual do
ser humano: a pré-compreensão do Absoluto. Todavia o trabalho de constituição
das categorias ou de redação do discurso filosófico, na antropologia e na
ética, não é iniciado com o tema da posição do Absoluto. É necessário
acompanhar todo o desdobramento do conceito para se alcançar a intelecção da
presença do Absoluto como termo do discurso e intui-lo como presença necessária
para a possibilidade mesma do início do próprio discurso filosófico. Já a
Metafísica é iniciada de forma explícita pela tematização da presença do
Absoluto no dinamismo intelectual do ser humano.
O discurso metafísico manifesta a sua estrutura circular dialética, pois o conhecimento do
Absoluto no fim reflui sobre o princípio para assegurar a definitiva
fundamentação especulativa da pré-compreensão do Absoluto que torna possível o
mesmo discurso. Este ‘refluxo’ ocorre na antropologia, na ética e na
metafísica, quando definitivamente se dá o encerramento do círculo dos círculos
e a configuração final do sistema.
Portanto, a categoria de pessoa, tal como ela é pensada, em sua origem (na
antropologia personalista cristã), se reporta diretamente à categoria de
Absoluto, categoria metafísica, cuja categoria teológica correspondente é a
idéia de Deus, de onde (ou de Quem) procede a carga valorativa que fundamenta a
idéia de que a pessoa nunca pode ser meio nem instrumento de coisa alguma, mas
apenas Fim, justamente por ser portadora da prerrogativa da dignidade.
Conclusão
No início deste trabalho
nos propusemos a estabelecer o paralelo entre três grandes temas da reflexão
jurídica atual e sua matriz filosófica, sem contudo deixar de estabelecer as
profundas relações que tais temas possuem entre si:
A cisão entre Ética e Direito
|
e o pós-positivismo como superação
da ruptura moderna entre Ética e Direito
|
A superação do paradigma more geometrico de um sistema fechado
|
com a assunção do conceito de
sistema aberto, oriundo das teorias do sistema e da biologia
|
finalmente o princípio da dignidade
da pessoa humana
|
oriundo das antropologias personalistas
de matriz cristã.
|
Portanto, o itinerário
deste trabalho teve a pretensão de apresentar as raízes filosóficas de três
tópicos centrais da reflexão jurídica atual, no sentido de aprofundar a compreensão
destes temas, bem como inter-relacioná-los entre si.
Em linhas gerais, apresentamos
no primeiro capítulo como na grecidade clássica, vem a ser na antiguidade de
Platão e Aristóteles, se dava a relação entre Direito e Ética, justamente em
função de um horizonte epistemológico
marcado pelo paradigma ontológico. Em seguida demonstramos que, com o advento
da modernidade, deu-se a ruptura entre Ética e Direito , porque se impôs um
horizonte epistemológico de caráter hipotético-dedutivo marcado pelo ideal
reducionista de geometrização da realidade, de sucesso indiscutível no campo da
Física newtoniana, que foi transcrito e codificado para os campos de todas as
outras ciências. Assim, o sistema fechado da física tornou-se o paradigma
epistemológico predominante e hegemônico. E tal paradigma passou a ser copiado
e imitado no campo de todas as outras ciências. Tal pretensão alcançou sua
formulação jurídica mais bem acabada no sistema kelseniano (influenciado por
Kant, que por sua vez foi influenciado por Issac Newton).
A defesa positivista dos
militares do regime nacional-socialista em Nuremberg e a defesa positivista de
Einchman foi apenas a “ponta do iceberg” que serviu de caricatura de um sistema
jurídico fechado, geometrizado e destituído de qualquer referência a qualquer
tipo de Antropologia Filosófica.
Nada, absolutamente nada na
natureza, no mundo em que vivemos pode ser completamente abstrativizado e
devidamente representado por meio de um sistema fechado. Apenas eventos muito
simples da natureza, restritos a alguns campos da Física conseguem êxito
(parcial) num esquema de representação more
geometrico capaz de fazer previsões precisas. Ou seja, mesmo no campo da
física há objetos de pesquisa que não se adequam a teorias científicas cujo
paradigma epistemológico seja fechado. Ora, se isto não é possível com a física
que estuda a matéria, estável, rotineira, simples e monótona, como se pode
querer que paradigmas epistemológicos simples, matematizados, more geometricos, consigam fazer o mesmo
com o campo do direito que trata de seres vivos, inteligentes, autoconscientes,
complexos, imprevisíveis, vivendo em
sociedade às vezes de forma pacífica e às vezes de forma conflitiva? Impossível.
Em Matemática, alguns
conjuntos de proposições simples, organizados na forma de sistema, ou de
paradigmas epistemológicos, que conseguem representar parcelas restritas da
realidade, ao se depararem com realidades mais complexas geram certos paradoxos
que denunciam a fraqueza do sistema para
alcançar aquela parte da realidade, que justamente por causa de sua
complexidade, transborda os lindes do sistema, desafiando-o de forma letal e gerando contradições que só podem ser
resolvidas com a superação do paradigma.
Um sistema jurídico que
busque extirpar de seu arcabouço conceitual aspectos fundamentais da condição
humana em muito pouco tempo provocará a emergência de paradoxos e de contradições
que chegarão aos tribunais e que se forem resolvidos dentro do próprio sistema
certamente implicarão na efetivação de alguma decisão injusta, mas como o
problema da justiça e da injustiça não se coloca dentro de um sistema
geometrizado, falar de justiça e injustiça seria uma espécie impertinência
lógica, ou mesmo de algo desprovido de qualquer sentido.
Caso a gravidade destes
paradoxos não tivesse conduzido os homens a episódios como os de Nuremberg e o
do julgamento de Einchman, conhecidos no mundo inteiro, pode ser que esta tentativa de superação ainda fosse algo
longe de ser realizado.
Todavia, o fato é que a
história demonstrou a fragilidade da adoção de um sistema jurídico que repudia o
que há de mais humano na própria condição humana, sua essência moral, sua sede
por justiça, vingança, beleza, criatividade. Tentar se livrar disto é algo
semelhante ao que representa o dito popular: “junto com a água suja do banho,
também se jogou fora a criança!”. E com isto os teóricos que assistiram as atrocidades
históricas do breve século XX perceberam a necessidade premente de trazer
novamente para dentro da teoria jurídica elementos epistemológicos que
permitissem a construção de um sistema aberto, o que se tornou oportuno com a
emergência das teorias do sistema e a adesão da biologia à idéia de sistema
aberto.
Quase que de forma
caricatural, a Biologia está mais próxima do Direito do que a Física. Afinal
não há organização social das pedras. Mas há organização social no mundo dos
seres vivos. Portanto um modelo teórico que sirva para explicar o mundo da
vida, o mundo biológico, está mais próximo do Direito do que os modelos
teóricos da Física. Afinal, só há Direito onde há seres humanos (vivos) vivendo
em sociedade.
Em função disto foi
historicamente oportuna a assunção da teoria dos sistemas pelo pensamento
jurídico, pois isto serviu para denunciar a fragilidade dos sistemas fechados
de matriz kelseniana.
E isto também serviu para
mostrar o óbvio: o direito e a ciência do Direito são fenômenos humanos. Portanto,
a partir da condição de que se adote um sistema teórico marcado pela sua
abertura é perfeitamente possível (senão necessário) dirigir o olhar para
aquilo que diga o que significa ser um ‘ser humano’.
E para seguir neste desafio
o mundo jurídico ocidental apontou sua visão para a Antropologia Filosófica. E
mais especificamente para as antropologias filosóficas de matriz personalista,
que são aquelas oriundas da reflexão filosófica e teológica das academias
cristãs.
No panorama da Filosofia contemporânea,
há uma fragmentação do saber,
do saber filosófico, do saber jurídico e como não podia deixar de ser há também
uma fragmentação das próprias antropologias: dentre as várias que podemos
enumerar vale destacar as antropologias existenciais, as antropologias
materialistas, a concepção do homem como ser pluriversal (Paul Ricouer e André
Jacob) e finalmente as antropologias personalistas.
A reflexão jusfilosófica
vem insistindo na relevância da noção de dignidade da pessoa humana. E não há
como discutir que tal conceito é oriundo da matriz antropológica personalista,
que por sua vez, indiscutivelmente procede das discussões teológicas sobre as
Pessoas Divinas da Trindade Cristã.
Numa síntese absolutamente
simplista, a famosa frase de que o homem é feito “à imagem e semelhança de Deus”,
decorre, conceitualmente do fato de que Deus é Pessoa (Infinita,
Transcendente), e o ser humano, à semelhança de Deus também é pessoa (Finita)
que participa da ‘pessoalidade’ divina, pelo fato de partilhar com o próprio
Deus o atributo da pessoalidade. E tal participação é dom concedido
gratuitamente pelo próprio Deus.
Sendo assim, o ser humano é
portador de uma dignidade decorrente de uma certa participação da própria
natureza da divindade. O atributo por excelência compartilhado pela Pessoa
Divina e pelas pessoas finitas é a autoconsciência. Para as antropologias
personalista, tanto Deus, quanto o ser humano existem e sabem que existem,
e por isto sabem que são autoconscientes.
Em decorrência disto, o ser que sabe que existe (e é marcado por esta
reflexividade ontológica) se entende como sendo um ser LIVRE E INTELIGENTE, ou
ainda, em outras palavras, RESPONSÁVEL E CONSCIENTE.
Estas antropologias
personalistas compreendem a liberdade e a inteligência como prerrogativas de
seres autoconscientes, e como tais só há o ser humano e o próprio de Deus, que
seria a inteligência máxima e a liberdade absoluta, que do alto de sua
magnanimidade compartilhou com seres finitos e precários aqueles atributos que
seriam próprios de sua transcendência infinita.
Em decorrência da presença da
autoconsciência, e por conseqüência, das prerrogativas da liberdade e da
racionalidade, o ser humano se autocompreende como pessoa, à imagem e
semelhança de um deus que também é compreendido como pessoa.
Portanto, o ser humano é
detentor de uma dignidade que procede do próprio Criador, e que não pode ser
violada pelo arbítrio de outra pessoa finita qualquer, seja tal pessoa
compreendida, agora em termos jurídicos, como pessoa física, pessoa jurídica ou
mesmo pessoa de direito público.
Como já se disse, é muito
difícil desvencilhar a noção de dignidade da pessoa humana da reflexão
teológico-cristã, isto significaria
desvencilhar-se de uma tradição duas vezes milenar a partir da qual se
erigiu todo o Ocidente.
Então, pode-se considerar
que há uma certa coerência no fato de que o Direito tenha tomado como
fundamento para a sua sistematização a noção de dignidade da pessoa humana, não
obstante tal construção possa ter sido realizada sem que os pressupostos
assumidos, fossem tomados de forma totalmente consciente.
E com isto, ao arrepio de
muitos juspositivistas, fica muito fácil afirmar que todo o movimento
principialista, do pós-positivismo tem um viés jusnaturalista bastante acentuado,
não obstante pareça discreto e quase abscôndito.
Contudo, na tentativa de se
mitigar o conflito entre positivismo e direito natural, apresentamos a idéia de
sistema a partir da teoria dos sistemas e aqueles dois roteiros de leitura do
sistema: via compositionis e via resolutionis.
Do alto da categoria
antropológica de pessoa, ou até se quisermos, do ápice da categoria de
Transcendência (ou categoria teológica de Pessoa Divina), da qual procede a
noção antropológica de pessoa finita que por sua vez, vive em sociedade e para
tanto cria uma Constituição, Leis Complementares, Leis ordinárias e outros
tantos dispositivos... se pode afirmar que o
que vige sem sombra de dúvida, na ordem jurídica atual é uma noção
jusnaturalista do Direito.
Mas da mesma forma, é
possível perceber a natureza positivista do ordenamento brasileiro (ou dos
ordenamentos de matriz romano-germânica) se seguirmos o roteiro da via compositionis que parte da
constatação prática de que, de onde há pessoas surge a necessidade de se criar
normas simples de convívio social, e em seguida, numa razão diretamente
proporcional à complexidade do agrupamento humano, se criam mecanismos
jurídicos mais e mais complexos, até que um determinado povo consegue elaborar
uma Constituição, e põe no núcleo hermenêutico desta Carta a noção de Pessoa, portadora de uma dignidade
absoluta, porque ser Pessoa é uma atribuição, antes de tudo, do Absoluto.
Da via resolutionis se vê o edifício construído a partir de seu lugar
mais alto, e muitas vezes se perde a perspectiva histórica de que todo aquele aparato
jurídico levou dezenas, centenas e às vezes milhares de anos para alcançar sua
atual configuração.
E da via compositionis, se vê apenas as etapas de construção do edifício
e muitas vezes não se alcança a percepção que o valor do edifício está no seu
acabamento, no seu topo, de onde se pode ver todo o ordenamento construído.
No fim das contas, estas
duas vias se entrecruzam no ponto de partida de uma que é, ao mesmo tempo, o
ponto de chegada da outra; e permitem a compreensão de que o valor da pessoa decorre antes de tudo, de um ato volitivo daqueles que assim quiseram e optaram por instituir
um sistema jurídico com este ou aquele núcleo axiomático.
E por isto o ordenamento
jurídico deve ser compreendido a partir de seu núcleo de inteligibilidade que é
a categoria de Pessoa, independentemente até mesmo das provas da existência de
Deus, e ainda que o ordenamento tenha sido construído a partir de pressupostos
teológicos (sempre criados e postos pelos próprios seres humanos criadores
prolíficos de tentativas de explicações possíveis sobre do mundo e suas mais
variadas e distintas dimensões).
Isto permite a
dessacralização dos fundamentos jusnaturalistas do Sistema, vem a ser, uma
desteologização do Sistema, para mantê-lo edificado simplesmente sobre
pressupostos antropológicos, sem contudo desnaturar seu viés jusnaturalista.
E de forma muito simples,
quase prosaica, se poderá dizer que o sistema está amarrado na categoria de
pessoa, porque o ser humano quis que assim fosse; porque é fruto de um consenso
político que assim seja; é fruto de uma consciência histórica nascida com o Iluminismo
do século XVII e XVIII, de que o homem é
autônomo e o centro de inteligibilidade de sua própria realidade.
E desta forma, ousamos,
pretensiosamente, afirmar que é possível um entrecruzamento entre as noções de
jusnaturalismo e juspositivismo no interior de um sistema jurídico articulado
ao redor de um núcleo axiomático de natureza antropológica que pode ser
conceitualmente construído como categoria de pessoa. Na forma de se compor o
sistema jurídico é possível detectar uma espécie de quiasmo conceitual entre
jusnaturalismo e juspositivismo, ao invés de se percebê-los de forma
maniqueísta e antagônica.
Para finalizar, em síntese,
é possível visualizar um paralelismo fundante e fundamental entre os caminhos
percorridos pela filosofia e os caminhos traçados pelo direito.
No seio de qualquer campo
do conhecimento há uma fragmentação notória e uma dificuldade tremenda em se
tratar qualquer conhecimento que seja elaborado de forma coerente, vem a ser,
de forma sistemática. Não obstante tal dificuldade, o anelo humano e a obsessão
humana pela coerência, pela ordem e pela simetria fazem com que alguns teóricos
tenham o profundo anseio de ter diante de si uma visão orgânica (e não mais
mecânica e cartesiana) da realidade e do Direito.
Em vista disto, se tentou
com este trabalho analisar o trajeto realizado pelos teóricos do Direito que
buscaram superar o positivismo jurídico pela adoção de uma teoria do sistema
que tornasse possível a compreensão do sistema como um artefacto conceitual
aberto, que não expurguasse a realidade como tal, em sua riqueza mais profícua para
que ele, o próprio sistema, possa funcionar abstratamente. E tal opção teórica desembocou na articulação
do pensamento jurídico com a noção de pessoa, gestada pela reflexão clássica e
milenar da tradição cristã.
A adoção de sistemas
fechados, recentemente inventados, infelizmente justificou episódios históricos
lamentáveis, pois o nazismo e o
comunismo soviético tiveram como suporte teórico sistemas conceituais fechados
que não permitiam a manifestação da subjetividade e geraram contradições
históricas lamentáveis. É lógico que além deste aspecto havia questões de ordem
histórica, sociológica, política e econômica que confluíram para o derradeiro
resultado assistido pelo breve século XX: a Segunda Guerra Mundial e a queda do
Muro de Berlim. E a face jurídica destes dois grandes eventos, certamente foi um
positivismo jurídico distorcido, porque levado até suas últimas conseqüências.
Sobretudo porque um sistema fechado, unívoco, é perfeito para a justificação de
qualquer regime totalitário que não suporte dentro de si idéias complexas e
conflituosas. Pretendemos deixar claro que o positivismo jurídico não foi a causa
destes eventos históricos. O positivismo foi apenas a visão jurídica que se acoplou a tais opções
políticas, tornando-as possíveis juntamente com todas as outras variantes
históricas, políticas, sociais, econômicas, etc. Diante de tal inconveniência e
inoportunidade, os teóricos correram atrás de novos modelos que superassem o
positivismo e que fossem menos suscetíveis do mesmo tipo de distorção
histórica. Como num movimento pendular, os teóricos voltaram para um
jusnaturalismo, bem tradicional, e muito bem elaborado, mas não muito
explícito. E na tentativa de explicitar tais pressupostos, pensamos que a apresentação
do sistema a partir das duas vias, possa de alguma forma mitigar o dualismo
entre jusnaturalismo e juspositivismo ao tentar reduzir tal conflito ao
problema da falta de percepção de que juspositivistas e jusnaturalistas têm das
chamadas via compositionis e via resolutionis, denunciando que ambos estão
falando da mesma coisa a partir de
óticas distintas, a partir de lugares diferentes na topologia do sistema
jurídico, uma vez que, considerando a idéia filosófica do retorno, tal como a
apresentamos acima, o ponto de partida de uma posição no sistema, pode ser o
ponto de chegada no mesmo sistema, desde que não se crie a imagem precisamente
circular, do eterno retorno, mas que seja possível perceber que o retorno se dá
de forma enriquecida pela conquista de um sistema coerente, lógico, eficaz,
aberto, com envergadura suficiente para alcançar o máximo da realidade humana,
em suas aventuras e em suas vicissitudes.
Monografia exigida para a conclusão do
Curso de Pós-graduação
Lato Sensu
em Direito Público
São Paulo
Abril de 2009
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Os textos com asteriscos foram os textos principais
utilizados neste trabalho
BOBBIO, N. Thomas Hobbes, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1991, p.31.
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pp 255-295.
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II, p.2536. Paris: Press Universitaire de France. 1990. 3300 pp.
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VAZ, H. C. de, Antropologia Filosófica II, Coleção Filosofia – 22, São Paulo:
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Fronteira,
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LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia II – Ética e Cultura, Coleção Filosofia – 8, São Paulo: Edições Loyola, 1988, 295 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia III – Filosofia e
Cultura, Coleção Filosofia – 42, São Paulo: Edições Loyola, 1997, 376 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia IV – Introdução à
Ética Filosófica 1, Coleção Filosofia – 47, São Paulo: Edições Loyola, 1999, 484 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia V – Introdução à
Ética Filosófica 2, Coleção Filosofia – 50, São Paulo: Edições Loyola, 2000, 246 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia VI – Ontologia e
História, Coleção Filosofia – 52, São Paulo: Edições Loyola, 2001, 284 pp. (reedição do Ontologia e História)
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia VII – Raízes da
Modernidade, Coleção Filosofia – 55, São Paulo: Edições Loyola, 2002, 292 pp.
*LIMA
VAZ, H. C. de, Ética e
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de Cláudia Toledo e Luiz Moreira. São
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LIMA VAZ, H. C. de, Experiência Mística e Filosofia na Tradição Ocidental, Coleção CES – 6, São Paulo: Edições Loyola, 2000, 92 pp.
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VAZ, H.C. de. Democracia e Dignidade Humana – Revista Síntese Nova Fase, v.15, n.44,
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VAZ, H.C. de. Método e Dialética, In: BRITO, Emidio Fontenele de; CHANG, Luiz Harding, (Org.). Filosofia e método. Coleção CES n. 15 –
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São Paulo: Duas Cidades, 1968, 340 pp.
*SAMPAIO, Rubens Godoy. O ser e
os outros: um estudo de teoria da intersubjetividade. São
Paulo: UNIMARCO, 2001.
211 p.
*SAMPAIO, Rubens Godoy. Metafísica e Modernidade: Método e Estrutura,
Temas e Sistemas no pensamento de Henrique Cláudio de Lima Vaz. São Paulo: Loyola, 2006. 341 p.
. Em breve o Direito será desafiado por
problemas, que ainda estão na esfera da mais pura ficção científica, mas que em
logo sairão da mais assustadora perplexidade para o horizonte da mais calma das
normalidades. Em breve memórias pessoais, íntimas poderão ser registradas em
mídia eletrônica e compartilhadas e até mesmo comercializadas. Quem sabe até
mesmo poderão ser utilizadas como provas judiciais. O mais renomado
neurocientista brasileiro, Miguel Nicolélis já conseguiu gravar os registros
cerebrais de um homem andando e conseguiu fazer com que um robô reproduzisse os
mesmos movimentos, tal como no filme Matrix.
. SAMPAIO,
Rubens Godoy. O ser e os outros: um estudo de teoria da intersubjetividade. São Paulo: UNIMARCO, 2001. 211 p.