quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Sobre a polêmica em torno das células troncos. A noção de forma de vida humana como conceito abrangente e unificador da discussão.

Este texto foi publicado no site DIREITONET por ocasião da polêmica em torno das células troncos no STF. E foi republicado aqui com pequenos ajustes e acréscimos.
  
Tal como a Ministra Ellen Gracie, adiantarei meu voto: sou a favor da pesquisa com os embriões humanos. Todavia entendo que toda a discussão e a fundamentação dadas pelo Ministro Carlos Ayres Brito está comprometida pela compreensão equivocada do que seja vida humana, associando   a vida humana à presença do sistema nervoso central, tal como ele disse em seu voto: Faltam-lhe (ao embrião) todas as possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas que são o anúncio biológico de um cérebro humano em gestação. Numa palavra, não há cérebro. Nem concluído nem em formação. Pessoa humana, por conseqüência, não existe nem mesmo como potencialidade. Pelo que não se pode sequer cogitar da distinção aristotélica entre ato e potência, porque, se o embrião in vitro é algo valioso por si mesmo, se permanecer assim inescapavelmente confinado é algo que jamais será alguém. Não tem como atrair para sua causa a essencial configuração jurídica da maternidade nem se dotar do substrato neural que, no fundo, é a razão de ser da atribuição de uma personalidade jurídica ao nativivo. 


Definir conceitualmente a vida é uma tarefa que está na base de toda a biologia. E isto não é nada fácil, assim como não é fácil para a ciência jurídica definir o que é o direito ou a norma jurídica, assim como não é fácil para a psicologia definir o que é o psiquismo, assim como não é fácil para a física definir o que é a matéria. Esses conceitos fundantes de todas as áreas possíveis do conhecimento sempre são muito controversos.


No entanto ainda que para a biologia seja difícil definir de maneira clara e evidente o que seja a vida, a biologia, de ordinário, sabe com toda certeza quando algo está vivo ou não. Não há dúvidas de que o fruto mais imediato da concepção humana já é algo vivo. Por mais primitiva e simples que seja esta forma de vida humana, trata-se de algo vivo. E, qualquer estudante do Ensino Médio sabe que o embrião já possui toda a carga genética necessária para desenvolver tudo que será preciso para se tornar um adulto completamente desenvolvido. E não obstante a semelhança do embrião humano com outras formas embrionárias de outros animais, o DNA daquele embrião é o DNA de um ser humano. E mais do que nunca, sabemos que através do reconhecimento do chamado DNA mitocondrial é possível estudar a “linhagem” de todos os seres humanos do planeta e afirmar que todos nós, de fato, fazemos parte de uma única espécie de antropóides hominóides. Enfim, para saber se este ou aquele embrião é humano ou não, basta fazer um simples teste disponível em qualquer laboratório de genética.


Além disto, a vida é marcada por uma linha de continuidade ininterrupta, pois a vida, toda ela, só continua porque não há intervalos, não há gaps no processo de reprodução. Uma forma de vida tão complexa, como a vida humana, só pode proceder de outra forma de vida equivalente. Não temos tecnologia suficiente para gerar a vida humana, em laboratórios, a partir de elementos inorgânicos. Ou seja um homem e uma mulher (vivos) são capazes de produzir uma outra coisa viva, que resultará numa forma de vida semelhante àquele homem ou àquela mulher. Para que haja a descendência humana é necessário que o fruto do relacionamento humano seja uma forma de vida humana, que se desenvolverá e percorrerá várias fases de desenvolvimento e passará por várias formas humanas possíveis.


Entre uma geração e outra geração não há uma forma de vida intermediária que possa ser desqualificada de suas prerrogativas humanas. Não há, muito menos um “par de parênteses” dentro dos quais haja algo não vivo. E esta linha de continuidade é tão incontroversa, que faz com que os filhos se pareçam com os pais, fisicamente e muitas vezes comportamentalmente. Se não houvesse esta linha de continuidade a vida e as espécies não se perpetuariam no tempo. Não cabe falar que o embrião não tem potencialidade para se tornar humano, porque é exatamente esta a sua maior característica, a saber a potencialidade intrínseca para tornar-se semelhante (um ser humano) àquilo que lhe deu origem (seus pais humanos). Afirmar o que o Ministro afirmou, é a mesma coisa que dizer que o branco é preto.


A antropologia e a ciência como um todo fazem o seu discurso sobre o ser humano a partir de uma idéia de homem acabado e desenvolvido, completo, a saber, a partir do ser humano adulto. Uma antropologia mais clássica, que vem lá de Platão e Aristóteles, passando por toda a filosofia ocidental afirma que o ser humano é um ser dotado de racionalidade e liberdade. Outros discursos afirmam que todas as comunidades humanas são constituídas por seres bípedes portadores da prerrogativa da linguagem. Estas seriam duas outras características essenciais do ser humano (a bipedia e a linguagem). Mas para as ciências do desenvolvimento humano há muita diferença entre um filhote humano de 3 meses de idade, e outro filhote humano com 2 anos de idade, com 5, 10 anos que vai crescendo, e se torna adolescente, jovem, adulto e velho, e finalmente morre. E para as mesmas ciências é inconteste que durante os meses de gestação é possível detectar a presença de uma sucessão de formas distintas de vida humana: o ovo, o embrião, o feto, e depois um bebê completamente inapto para qualquer coisa e que apesar de ter um cérebro bem grande (e que ainda vai crescer) não consegue fazer absolutamente nada sozinho, e que, sem alguém para lhe oferecer cuidados mínimos certamente não conseguirá ultrapassar esta fase de seu desenvolvimento.


Meus filhos, quando tinham 3 meses de idade não eram nem racionais, nem livres, nem bípedes e nem falavam. Com 8 meses, eles se tornaram quadrúpedes e começaram a engatinhar. Com 12 meses começaram a se tornar bípedes e a postura ereta liberou as mãos e esticou as cordas vocais para que eles começassem a falar mais articuladamente. Com 18 meses, na frente do espelho eles começaram a perceber que aquele reflexo eram eles mesmos, e começaram a desenvolver a sua autoconsciência. É possível que até os 24 anos eles ainda precisem de mim para pagar suas faculdades... Enfim, para encurtar... o ser humano é um ser em desenvolvimento e que ao longo desse itinerário de crescimento e desenvolvimento vai passando por várias fases ou formas possíveis. O mais interessante de tudo é que meus dois filhos (um casal) repetiram em seus poucos anos de vida, tudo aquilo que a vida como tal demorou 2 bilhões de anos para realizar: em algum momento e por algumas horas meus filhos foram unicelulares – e a vida durante bilhões de anos foi unicelular; depois aquela única célula presente no útero de minha esposa começou a se dividir – o mesmo aconteceu com a vida no planeta, que de unicelular começa a produzir seres pluricelulares; em algum momento do desenvolvimento de meus filhos eles apresentam estruturas que parecem guelras, depois eles parecem pequenos girinos, depois eles apresentaram caudas... enfim cada um de meus filhos, no ventre de sua mãe, e depois fora do ventre repetiram, apressadamente, muito apressadamente (e ainda continuam dentro deste processo) tudo que a vida na Terra realizou em bilhões de anos. Tecnicamente falando se diz que a ontogênese (o desenvolvimento do indivíduo) repete a filogênese (o desenvolvimento da espécie). Em termos metafóricos, cada um de nós repete toda a aventura da vida no planeta. Ninguém chega aqui de pára-quedas. Antes de começarmos o nosso espetáculo, cada um  de nós passou por uma prova de fogo que foi reviver 2 bilhões de anos em apenas alguns meses durante a vida intra-uterina, e mais algumas centenas de  milhões de anos a partir da vida extrauterina.


Com esta argumentação estou querendo explicitar um conceito que pode ser de muita utilidade para toda esta discussão: o conceito de formas de vida humana. E a passagem de uma forma de vida humana para outra, a passagem de uma fase para outra não se dá de forma abrupta (discreta, per saltum), mas de forma gradual (contínua). A passagem da condição de ovo para embrião, de embrião para feto, de feto para bebê, e assim sucessivamente não se dá da mesma maneira como o milho se transforma em pipoca, de repente. E mesmo porque estas “passagens” são invenções nossas. Fomos nós que dissemos que até tantas horas de vida aquilo é um ovo, até tantas semanas aquilo é um embrião, e depois é um feto. São “passagens” nominais, que existem porque nós demos nomes a elas. Porque de fato não há passagem alguma. Há na verdade um processo contínuo de desenvolvimento, sem interrupção e sem check-points. O estabelecimento destes marcos (check-points) é um estabelecimento artificial, didático. Ora, todos sabemos que o conceito de infância foi uma invenção do século XIX, e a adolescência, como fase de desenvolvimento humano foi estabelecida no século XX. Terceira idade, Quarta idade são novas invenções da sociedade contemporânea.


Mas o que interessa mesmo é perceber que se trata de um processo contínuo de desenvolvimento muito acelerado nos primeiros anos de vida (gestação, nascimento e infância) e mais lento nas etapas seguintes. E, por isto, é sim, muito pertinente se cogitar da distinção aristotélica entre ato e potência, por que não?


Portanto, não tem cabimento falar que o embrião não está vivo, que o embrião não tem sistema nervoso, que o embrião não tem isto ou aquilo, para desqualificá-lo de suas prerrogativas antropológicas e, por conseguinte, permitir que façamos com ele o que quisermos. Já fizemos isto com negros, destituindo-os da alma humana, para que assim se justificasse a escravidão. Já fizemos isto com judeus, destituindo-os de sua cidadania e de sua humanidade para jogá-los em câmaras de gás. Já fizemos vivissecção com presos! E hoje ainda fazemos vivissecção com animais, não obstante todo o movimento de repúdio a esta prática tão presente em laboratórios e universidades. Enfim, o embrião é apenas UMA DAS PRIMEIRAS FORMAS DE VIDA HUMANA pela qual todos nós passamos necessariamente, e por isto é impertinente que ele seja destituído de sua participação na condição humana.


Quando o Ministro diz “Faltam-lhe (ao embrião) todas as possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas que são o anúncio biológico de um cérebro humano em gestação”, ora é exatamente o contrário. Uma sementinha de mamão não tem nenhuma possibilidade de ganhar terminações nervosas. Mas aquele embrião humano é a única coisa no mundo que tem possibilidade de desenvolver terminações nervosas para desenvolver um sistema nervoso extremamente complexo.


Numa palavra, não há cérebro. Nem concluído nem em formação. Pessoa humana, por conseqüência, não existe nem mesmo como potencialidade”.


Aqui há uma falha primária de lógica porque a primeira premissa (MAIOR) é falsa. Porque o cérebro é uma parte do sistema nervoso que está sim em formação. A formação do sistema nervoso central começa do começo, da sua condição mais simples. O que não é possível é um cérebro surgir sem antes passar pela condição de ovo, embrião e feto... E, portanto, a pessoa humana adulta e desenvolvida só surgirá em decorrência destes primeiros desenvolvimentos embrionários.


O Ministro afirmou que “Não tem como atrair para sua causa a essencial configuração jurídica da maternidade nem se dotar do substrato neural que, no fundo, é a razão de ser da atribuição de uma personalidade jurídica ao nativivo”. Um bebê recém-nascidoem função de sua absoluta inaptidão para viver por si só, também não tem como “atrair para sua causa a essencial configuração jurídica da maternidade”, caso venha a ser abandonado nas ruas de uma cidade qualquer. Qualquer bebê recém nascido é absolutamente incapaz de viver sem algum cuidador, e nem por isso ele é destituído de sua humanidade... Os filhotes dos répteis nascem e não precisam de seus pais (vejam-se os casos das tartarugas, dos lagartos, dos camaleões). Seres complexos como nós, não nascemos completos e acabados, nascemos incompletos, porque precisamos de muito mais tempo para desenvolver e o nosso desenvolvimento começa na vida intra-uterina e se estende, se prorroga, na vida extra-uterina. E a necessidade de cuidado continuado permanece nos primeiros meses de vida para a maioria dos mamíferos de grande porte. E no caso humano, permanece durante muitos anos.


E aqui caberia outra pergunta: quando é que estamos completos? Quando é que estamos acabados? Quando é que deixamos de estar em desenvolvimento? Talvez, apenas quando estivermos mortos. Desta forma é muito pertinente afirmar que uma característica fundamental e essencial do ser humano é justamente esta: estar em desenvolvimento. O ser humano é um ser em desenvolvimento desde o seu mais tenro início até o momento final de sua vida. Alguém poderia responder que seu desenvolvimento atingiu sua completude quando tal sujeito pode viver de forma independente: quando conseguiu seu primeiro emprego?


Pelo que não se pode sequer cogitar da distinção aristotélica entre ato e potência, porque, se o embrião in vitro é algo valioso por si mesmo, se permanecer assim inescapavelmente confinado é algo que jamais será alguém”. Mais uma afirmação generalizante cujo alcance está prejudicado. Ora qualquer criança que permanecer confinada jamais será alguém, jamais será uma pessoa plena e realizada.


Ora, como se vê, eu estou defendendo o embrião com unhas e dentes, mas por outro lado, já assinalei nas primeiras linhas deste texto que sou a favor das pesquisas. O que para mim está em jogo é a falha na argumentação de um voto que foi muito elogiado, mas que na verdade está fundamentado precariamente e cheio de falácias.


Meu objetivo é mostrar que o que deve ser discutido não é a natureza e as condições do embrião. Pois esta discussão está ultrapassada pelos avanços da própria biologia, é chover no molhado, e prescindir desta constatação faz com que a argumentação do ministro seja equivocada. Afinal se o embrião não tivesse as características mais essenciais do ser humano, nós não estaríamos querendo fazer pesquisas com eles. Ou seja, nós só queremos utilizar embriões humanos para pesquisa porque são embriões humanos. Se não fossem humanos não teríamos que ficar discutindo, talvez já estivesse tudo resolvido e poderíamos utilizar embriões de outros mamíferos mais complexos.


A questão, portanto, é a seguinte: em quais formas de vida humana é permitido intervir com finalidades científicas? A pergunta é mais forte. A resposta é mais grave, seja ela positiva ou negativa. Partindo desta nova questão, a decisão do STF é mais séria e terá mais repercussões do que a equivocada posição sobre a humanidade ou não do embrião humano.


E porque a pergunta é mais grave, as questões que se colocam alcançam um outro tom mais profundo e comprometedor, que devem ser analisadas com muito mais cuidado.


Para deixar mais clara a idéia de FORMAS DE VIDA HUMANA vale notar que um recém-nascido não fala e não anda. Um bebê, um filhote humano, uma criança dependem de forma quase que absoluta de seus pais durante seus primeiros meses e anos de vida. A criança não pode trabalhar, mas pode herdar. O Estatuto da Criança e do Adolescente indica que as prerrogativas das pessoas com 12 anos de idade são diferentes daquelas com menos de 12 anos. Os adolescentes com 14 anos podem trabalhar na condição de aprendiz. Com 16 podem votar. Com 18 anos o jovem tem que servir o exército, já pode dirigir e assinar contratos. Com 21, pode ser prefeito. Com 35 anos, Presidente da República. Com 60, pode se aposentar e furar fila. Com 70 não precisa mais votar. Quase todas as formas de vida humana estão agasalhadas pelo direito. O certo é que a vida humana, na sua mais absoluta integralidade, na sua mais absoluta temporalidade estivesse alcançada pelo direito.


Hoje são feitas pesquisas com crianças, com jovens e com adultos. Todavia são pesquisas cujo grau de intervenção não é letal. Muitas destas pesquisas exigem algum tipo de termo de consentimento. Também é inegável que as pessoas com morte cerebral ainda continuam vivas: respiram, o coração bate... e portanto, temos aqui mais uma forma de vida humana diante da qual já é relativamente pacífico um certo posicionamento que permite, sob certas condições a realização de pesquisas, a retirada de órgãos.


E até mesmo o cadáver é alcançado por certa proteção jurídica. Do cadáver, que já não é uma forma de vida humana, pois ele já está definitivamente destituído de batimentos cardíacos, de atividade respiratória e atividade cerebral, não podem ser retirados seus órgãos sem autorização prévia do sujeito, enquanto estava vivo, ou sem autorização da família. O cadáver não pode ser jogado no lixo, não pode ser violado em seu túmulo.


Enfim, quero afirmar que não dá para escapar do fato de que o embrião é uma forma de vida humana. E, portanto, o problema deve ser colocado sob outra ótica. Não cabe ao STF decidir se há vida humana ou não no embrião.Ao STF são atribuídas competências jurídicas. Quem pode dizer se algo minúsculo é vivo ou não é vivo é a simples observação feita por um biólogo, ou por alguém oriundo das áreas biológicas ou médicas. E para outros seres de tamanho maior, qualquer pessoa consegue falar se aquela árvore está viva, se aquele cachorro está vivo, ou se aquele ser humano está vivo com pelo menos 95% de chances de acertar. O STF não pode afirmar que um ser humano que está desempregado NÃO ESTÁ VIVO. Seria um absurdo. Da mesma forma que é um absurdo dizer que esta ou aquela forma de vida humana não está viva. Da mesma forma que não cabe a um médico a competência profissional de proferir uma sentença ou fazer a análise jurídica de um contrato, não ao STF dar pareceres sobre a situação de um ser vivo. Que grande confusão que foi feita aqui. 

 O STF pode decidir sobre quais formas de vida humana são passíveis de certos tipos de intervenção, decorrentes da pesquisa científica.Esta decisão está dentro do rol de suas competências jurídicas. E é uma decisão muito mais séria.


Por outro lado, considerando pois, que desde o início da concepção há vida humana, em última análise, o que está em jogo é quem vai pagar pela autorização ou pela proibição da pesquisa. Se a investigação científica for autorizada... os embriões são prejudicados. Se a pesquisa for proibida milhões de pessoas com os mais variados tipos de doença ou deficiência verão sua esperança se esvair... e outros milhões de pessoas que não estão doentes mas poderão ficar, também estarão privados de melhores chances de cura.


De um lado ou de outro, negar o uso e o recurso da tecnologia seria tão obsoleto como optar por não usar óculos, porque não nascemos com eles, ou tão arcaico quanto não tomar vacinas.


Enfim, a meu ver as duas posições acima (destruir embriões ou negar a tecnologia para os que nela têm a esperança da cura) são cruéis. Mas nem de longe elas se aproximam de outras práticas crudelíssimas, presentes na história da medicina, dentre as quais a vivissecção humana, certamente era a mais terrível de todas.


Outra questão que está em jogo é a investigação nas Universidades públicas, ou nas Instituições públicas de pesquisa. Afinal os grandes laboratórios de engenharia genética, os grandes laboratórios farmacêuticos, as grandes empresas na área da saúde não se submetem às leis nacionais e não vão deixar de fazer pesquisa em seus laboratórios por causa da legislação brasileira. Basta levar seus cientistas para outros países onde a pesquisa não está regulamentada ou onde é permitida, e às vezes, é até mesmo fomentada.


Com isto a única pesquisa prejudicada é aquela realizada nas instituições públicas, pois não poderão receber verbas públicas para tanto. E isto trará um grande prejuízo para a comunidade científica brasileira, que além das dificuldades ordinárias decorrentes de um orçamento sempre apertado, terá que lidar com a proibição da pesquisa. Não se matarão embriões, mas se matarão cientistas!


Repito que a questão central do debate é qual tipo de intervenção deve ser permitida ou proibida de ser realizada sobre esta ou sobre aquela FORMA DE VIDA HUMANA. Efetivamente, é isto que está sendo debatido no STF. No entanto a discussão está fora do foco e isto não pode acontecer na suprema corte nacional. Afinal, a destituição do embrião de suas prerrogativas humanas por uma corte jurídica tem como finalidade tornar a decisão mais fácil, afinal se o embrião não é humano é mais fácil autorizar esta ou aquela prática sobre o mesmo embrião.


Tendo pois, clareza de que o embrião humano deve ser compreendido como o estado humano necessário de uma das formas iniciais de vida humana, o problema é que as conseqüências de uma decisão como esta são bastante sérias e podem gerar precedentes muito sérios para um futuro não distante.


A forma mais segura de preservar o princípio da dignidade da pessoa humana é cobrir toda a extensão da vida humana com o atributo de sua dignidade: do seu início mais primordial ao seu fim último. Afinal, por enquanto, podemos dizer que um cadáver que vai apodrecer está mais bem protegido juridicamente do que os embriões que podem se tornar pessoas adultas.


Se a decisão do STF for orientada por uma idéia que destitua o embrião de suas prerrogativas humanas, como conseqüência lógica seria possível, num futuro próximo, destituir outros seres humanos, em situações limites, das mesmas prerrogativas e permitir que com eles se faça o que quiser. Afinal seria atribuição do STF dizer o que é humano ou não. Ou seja, se hoje estamos destituindo uma forma de vida humana, a mais tenra e a mais desprotegida, de suas prerrogativas essenciais, amanhã poderemos fazê-lo com outras pessoas em circunstâncias diferentes: com os muito velhos, com os desempregados, com os muito doentes, com os gays, com qualquer outra minoria...


Por outro lado, se concordarmos que estamos intervindo cientificamente em seres dotados de prerrogativas humanas, sejam eles embriões ou pessoas com 90 anos, também saberemos que nossas decisões sobre a possibilidade da realização de qualquer tipo de intervenção serão decisões muito mais graves e por isto mesmo, muito mais controladas e reguladas juridicamente. E, portanto, serão decisões mais seguras.







Um sistema em resposta ao niilismo ético - RUBENS GODOY SAMPAIO

Entrevista publicada na Revista IHU-online - Revista do Instituto Humanitas UNISINOS


De acordo com Rubens Godoy Sampaio, a envergadura sistemática da obra de Lima Vaz possui estrutura triádica e tem como desafio fundamental superar o niilismo. Relações intersubjetivas são constitutivas do ser humano, e ser-com-os-outros é seu aspecto ineliminável

Por: Márcia Junges

“O seu grande desafio como filósofo e padre foi justamente elaborar um discurso filósofico coerente, sólido, fundamentado em toda a grande tradição filosófica no seio mesmo da Modernidade, cujo selo é exatamente o do niilismo. Seu grande desafio foi estabelecer um diálogo com a tradição filosófica que permitisse a elaboração de um discurso sensato que superasse o niilismo. Ou seja, a filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz é a obra de um homem de fé, que professa o cristianismo e que tem como desafio elaborar de forma estritamente racional um discurso que alcance e inclua o tema do Absoluto como fundamento mesmo do próprio discurso e como exigência da racionalidade”. A explicação é do filósofo Rubens Godoy Sampaio, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Fundamentado na categoria da Transcendência, o sistema vaziano é a resposta elaborada “de forma original e inovadora à crítica contemporânea à metafísica cuja consequência mais devastadora para a nossa civilização é sem dúvida alguma o império de um horizonte marcado indelevelmente pelo niilismo ético”. Sobre a ontologia da intersubjetividade, assinala que as relações intersubjetivas são parte do ser humano. “O discurso que o homem tece sobre si mesmo não estaria completo se prescindisse desse aspecto constitutivo e ineliminável que é ser-com-os-outros, aspecto que é marcado sobretudo pela característica da reciprocidade”.

Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo, é mestre em Filosofia pela UFMG com a dissertação A Ontologia da Intersubjetividade no pensamento de Henrique Cláudio de Lima Vaz e doutor na mesma área pela Universidade Gama Filho – UGF, com a tese Metafísica e Modernidade: método e estrutura, temas e sistema no pensamento de Henrique Cláudio de Lima Vaz (São Paulo: Loyola, 2005). De sua produção bibliográfica citamos Crise ética e advocacia (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000) e O Ser e os Outros (São Paulo: Unimarco Editora, 2001). É servidor público federal da Justiça Federal de São Paulo
Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a ontologia da intersubjetividade no pensamento de Lima Vaz? 
Rubens Godoy Sampaio – Antes de responder a essas perguntas vou desenhar uma moldura no interior da qual serão respondidas as outras questões. A primeira ideia importante a respeito do pensamento de Lima Vaz é a seguinte: o termo de toda a sua trajetória filosófica foi a elaboração de um sistema filosófico. Seu pensamento apresenta-se como uma obra de envergadura sistemática. Seu sistema caracteriza-se por uma estrutura triádica e tem como pilares sua antropologia (nos livros Antropologia filosófica I e II), sua ética (nos livros Escritos de filosofia IV e V) e sua metafísica (Escritos de filosofia VII – Raízes da Modernidade). Estes são os livros principais do seu sistema. Todavia é possível encontrar aspectos de sua antropologia, de sua ética e de sua metafísica em outros livros bem como em muitos artigos nos quais certos assuntos são aprofundados. Por exemplo, o livro Escritos de filosofia III aprofunda em alguns artigos a categoria de transcendência apresentada sistematicamente no interior da seção sobre as categorias de relação do livro publicado anteriormente, a Antropologia filosófica II. Enfim, o sistema é o estuário, é o telos de toda a sua produção filosófica.

Pois bem, o problema da ontologia da intersubjetividade é trabalhado de forma bem pontual na categoria de intersubjetividade apresentada na região categorial das relações. A antropologia vaziana é organizada em grupos de categorias. O primeiro grupo são as categorias de estrutura que incluem as categorias de corpo próprio, psiquismo e espírito. O segundo grupo são as categorias de relação: objetividade, intersubjetividade e transcendência. E finalmente as categorias de unidade: realização e pessoa. Como se vê a categoria de intersubjetividade é desenvolvida no âmbito das relações que o ser humano estabelece com o mundo (categoria de objetividade), com os outros (intersubjetividade) e com o Absoluto (transcendência). 

Assim, quando Lima Vaz apresenta o homem se afirmando como um ser de natureza intersubjetiva, ele está dizendo que as relações humanas constituem o ser humano como tal, de forma que esse aspecto do discurso que o ser humano faz sobre si mesmo é ineliminável ou irredutível a qualquer outra realidade possível. As relações intersubjetivas fazem parte do ser do homem. O discurso que o homem tece sobre si mesmo não estaria completo se prescindisse desse aspecto constitutivo e ineliminável que é ser-com-os-outros, aspecto que é marcado sobretudo pela característica da reciprocidade. Se a relação com o mundo dos objetos, da técnica, é marcada pela não reciprocidade, a relação intersubjetiva tem como principal elemento o reconhecimento e a reciprocidade constitutiva desse tipo de relação. Além do mais, é exatamente a partir da categoria de intersubjetividade que Lima Vaz realiza no plano do discurso o entrelaçamento entre antropologia e ética.

IHU On-Line – Como metafísica e Modernidade se entrelaçam na obra desse filósofo?
Rubens Godoy Sampaio – Metafísica e Modernidade são dois temas importantes que funcionam como grandes eixos organizadores de todo o pensamento de Lima Vaz. Se quisermos usar uma metáfora ou uma imagem da biologia, a hélice do DNA é um exemplo magnífico para demonstrarmos que as duas hélices, que giram dando origem àquele movimento helicoidal, no pensamento vaziano corresponderiam exatamente à metafísica de um lado, e à Modernidade, de outro. Assim, na busca de tratar do problema da afirmação do Absoluto no discurso filosófico (seja na antropologia, na ética e ou na metafísica) Lima Vaz apresenta em chave dialética, de inspiração platônica e hegeliana, a metafísica do existir de São Tomás de Aquino em confronto com todo o processo de gênese da Modernidade. Em outras palavras, a compreensão vaziana da tensão entre razão moderna e metafísica apresenta-se na forma de um sistema com uma base teórica de inspiração tomásica, fundada na metafísica do existir, e com uma base metodológica de inspiração dialética (platônico-hegeliana). 

É no interior desse diálogo entre razão metafísica e razão moderna que Lima Vaz vai ao longo de toda sua vida desenvolvendo os temas da consciência histórica, do mundo, da intersubjetivdade, da ética, da Transcendência até que, a partir dos anos 1990, ele começa a organizar todos esses assuntos de forma sistemática e metódica, o que resultará no sistema que anunciamos na primeira resposta. E o método utilizado por Lima Vaz para articular os termos e os temas de seu sistema está minuciosamente desenvolvido no capítulo Objeto e método da antropologia filosófica no livro Antropologia filosófica I. Esse capítulo inaugura a parte sistemática da antropologia filosófica e será repetidamente utilizado em todas as categorias da antropologia, da ética e da metafísica. Portanto, para se entender como Lima Vaz elabora seu discurso, passo a passo, é imprescindível a assimilação do método descrito nesse capítulo.

IHU On-Line – De que forma Lima Vaz rebate as críticas à metafísica, como aquelas empreendidas por Nietzsche  e Heidegger , por exemplo?
Rubens Godoy Sampaio – Lima Vaz é jesuíta, membro da Companhia de Jesus fundada por Inácio de Loyola  no século XVI. Sua formação é cristã e católica. Lima Vaz é um filósofo erudito que leu os gregos no original com uma formação sólida encontrada apenas nas melhores universidades do mundo. Sem dúvida alguma nosso autor, brasileiro e mineiro de Ouro Preto, Minas Gerais, está entre os maiores filósofos do século XX. O seu grande desafio como filósofo e padre foi justamente elaborar um discurso filosófico coerente, sólido, fundamentado em toda a grande tradição filosófica no seio mesmo da Modernidade, cujo selo é exatamente o do niilismo. Seu grande desafio foi estabelecer um diálogo com a tradição filosófica que permitisse a elaboração de um discurso sensato que superasse o niilismo. Ou seja, a filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz é a obra de um homem de fé, que professa o cristianismo e que tem como desafio elaborar de forma estritamente racional um discurso que alcance e inclua o tema do Absoluto como fundamento mesmo do próprio discurso e como exigência da racionalidade. Desta forma, seu sistema, cujo fundamento é a categoria de Transcendência, presente desde o início de seu discurso como fundamento e condição de possibilidade do mesmo discurso, é a resposta que Lima Vaz elaborou de forma original e inovadora à crítica contemporânea à metafísica cuja consequência mais devastadora para a nossa civilização é, sem dúvida alguma, o império de um horizonte marcado indelevelmente pelo niilismo ético. 

IHU On-Line – Quais são as maiores influências filosóficas de Lima Vaz? 
Rubens Godoy Sampaio – Lima Vaz foi um leitor e um intérprete de toda a tradição filosófica. Ele leu os grandes autores sempre no original em grego, latim, alemão ou em qualquer língua que fosse. Tal como eu já disse, Lima Vaz foi um homem de profunda e inigualável erudição. Então, em primeiro lugar é necessário saber que este homem leu e estudou o que de melhor podia ser lido e estudado a respeito da tradição filosófica do Ocidente. Ele foi um profundo conhecedor da nossa tradição filosófica e tal fato permitiu que ele dialogasse com mais de dois mil anos de produção filosófica. Mas é claro que alguns autores o marcaram de forma indelével. São eles, Platão, Aristóteles, Agostinho, São Tomás e Hegel. E a presença desses autores é explícita em toda a sua obra, seja pelo conteúdo propriamente dito, seja pelo método assimilado e utilizado, sobretudo por Platão e Hegel.

IHU On-Line – Dentro desse contexto, como podemos compreender o impacto de Hegel no pensamento vaziano? Em que aspectos Lima Vaz conserva e supera o hegelianismo? 
Rubens Godoy Sampaio – O pensamento vaziano desdobra-se em sistema por meio do método dialético de matriz platônico-hegeliana. Lima Vaz entende a dialética platônica como ontologia e método, por meio da qual Platão busca realizar a reductio ad unum mostrando que existe uma unidade do logos epistêmico quando ele descreve seu movimento de unificação dos conceitos supremos e dos primeiros princípios da Razão. Segundo o próprio Lima Vaz, o projeto hegeliano consistiu em “repensar a antiga metafísica como Lógica” e teve como lugar o terreno da subjetividade moderna ou da forma moderna de uma metafísica da imanência. Contudo este projeto não logrou restaurar o movimento ascendente em direção a uma transcendência real do ser, próprio e constitutivo do noûs ou do intellectus da tradição grega. Pois bem, quando Lima Vaz trata do tema da transcendência, ele o faz, apropriando-se do método dialético e apontando em direção a um Absoluto real, ao Ser Infinito que é ato puro de existir, ao Ipsum esse subsistens, tratado na Antropologia filosófica como categoria de Transcendência e como Pessoa Infinita, tratado na Ética como Bem e Fim, e na Metafísica como Ser e Existência, fundamento da metafísica do existir de São Tomás de Aquino. Isto é possível porque o procedimento dialético não é um simples procedimento formal no qual uma lógica qualquer é aplicada a um conteúdo que lhe é exterior. O procedimento dialético traduz a lógica intrínseca do conteúdo, o dinamismo da sua própria inteligibilidade. “Eis por que o método dialético parte do conteúdo mais elementar, ou seja, a afirmação ‘alguma coisa é’ e tem início com a suprassunção, por meio do argumento de retorsão da mais primitiva oposição, a que opõe o ser e o nada, suprassunção expressa logicamente pelo princípio de não contradição” (Raízes da Modernidade, p. 158).

IHU On-Line – Lima Vaz constatava o avanço prodigioso da razão técnica e a indigência da razão ética em nossa civilização. A partir dessa ideia, em que aspectos sua filosofia promove uma reflexão e uma crítica ao paradoxo da racionalidade ao qual estamos submetidos? 
Rubens Godoy Sampaio – A reflexão sobre a técnica está presente em vários lugares da obra vaziana. Mas alcança seu ponto de elaboração sistemática na categoria de objetividade. Esta é a primeira categoria de relação. Na sequência vem a categoria de intersubjetividade e depois a categoria de transcendência. Todas trabalhadas no segundo volume da Antropologia filosófica.

A categoria de Objetividade inaugura o segundo livro da Antropologia, e nela Lima Vaz elabora de forma discursiva, submetendo ao mesmo método do volume I, o problema da relação do ser humano com o mundo, com as coisas que estão ao seu redor, com a técnica e com a ciência. Os termos do desenvolvimento desta categoria situam-se entre os dois extremos da tecnocracia e da tecnoclastia. Para Lima Vaz o homem é um ser no mundo, mas o discurso do homem sobre si mesmo não se esgota na sua relação com a natureza, pois, pelo princípio da ilimitação tética, o discurso é lançado para níveis superiores de relação, a saber, a relação com os outros e a relação com o Absoluto. Contudo, o lugar da técnica no mundo atual tem feito com que exista uma certa predominância desta forma de compreender o mundo, explicá-lo e transformá-lo. O predomínio da razão técnica e do discurso científico não se mantém nos limites do mundo objetivo. Ao contrário, o êxito da racionalidade científica fez com a mesma modalidade de produção de conhecimento transbordasse o campo do seu objeto específico para que, por meio dela, se pretendesse compreender todas as outras dimensões da vida humana. Assim, os termos dessa pergunta, o predomínio da razão técnica e a indigência da razão ética, podem ser tratados como um desdobramento da tensão existente entre metafísica e Modernidade. Em decorrência da hipertrofia do discurso tecnocientífico, tudo aquilo que extrapolasse os lindes do hipotético-dedutivo foi tido como irracional e, portanto, incapaz de ser submetido aos cânones do discurso da racionalidade técnica. É justamente isso que Lima Vaz tenta reinventar, tornando possível um discurso racional sobre o Absoluto, sobre o Bem, sobre o Fim, sobre o Ser, partindo da metafísica do existir de Santo Tomás e utilizando-se do método dialético para a elaboração desse discurso filosófico.

IHU On-Line – Como podemos compreender os conceitos de vida vivida e vida pensada, apontados por Vaz na transição da primeira para a segunda Modernidade? E o que seriam essa primeira e segunda Modernidade a que se refere?
Rubens Godoy Sampaio – Os conceitos de vida vivida, pensada e refletida têm sua correspondência com as etapas de elaboração de cada uma das categorias antropológicas, éticas e metafísicas. Ao construir cada uma de suas categorias, Lima Vaz apresenta a pré-compreensão (a expressão natural, não elaborada conceitualmente) de cada uma delas, a compreensão explicativa (dada pela ciência) e a compreensão filosófica ou dialética, por meio da qual se dá efetivamente a construção do discurso filosófico a respeito de cada uma das categorias. 

Agora, para encerrar e apresentar o que Lima Vaz entende por Modernidade, prefiro transcrever uma página de seu livro Escritos de filosofia VII – Raízes da Modernidade, seja como forma de homenageá-lo, seja como forma de apresentar, para quem nunca o leu, o brilhantismo e a profundidade filosófica deste autor, que, como eu já disse e torno a repetir, é um dos maiores filósofos do século XX:

“A aspiração talvez mais genuína do projeto filosófico da Modernidade, cuja primeira realização histórica foi, sem dúvida, a razão cartesiana, reencontra de alguma maneira, após o declínio do pensamento medieval e da tradição renascentista, os desafios teóricos que estão na origem da filosofia antiga. Em correspondência com a crítica do mito, a filosofia moderna é, principalmente, uma crítica da tradição teológica cristã. É igualmente, a descoberta de uma nova forma de razão, capaz, por um lado, de submeter o destino aos desígnios humanos e, por outro, de interpretar a natureza para melhor dominá-la e transformá-la. Esse grandioso projeto, não obstante sua pretensão de ser a instauração radical de um novo mundo humano, tem suas raízes históricas. Pensamos identificá-las justamente na transformação medieval da razão antiga como pensamento das essências pela afirmação primeira da inteligibilidade do esse. Em virtude dessa transformação, e dela dependendo, a razão filosófica moderna se vê em face da interrogação primeira, que atinge o ser da realidade no seu núcleo mais profundo: que forma de inteligibilidade se deve pressupor ou pré-compreender no existir como tal, no simples ato de ser? Para a razão moderna, essa interrogação não pode ser evitada, tendo ela herdado das suas raízes medievais a injunção teórica incontornável de pensar a existência na sua singularidade irredutível à universalidade da essência: o esse só é pensável protologicamente, ou seja, segundo a identidade do primum ontologicum e do primum logicum: como esse absoluto.
O verdadeiro coração teórico da Modernidade é o projeto de extrema audácia, cuja execução vem transformando radicalmente a vida humana nos últimos quatro séculos, que tem em vista a plena reinscrição teórica e operacionalmente, nos códigos da razão científica, do universo, da vida, do ser humano e das suas condutas. Interpretado como projeto histórico que se justifica a si mesmo, ou seja, que encontra sua razão de ser no próprio devir imanente da história, esse projeto deixa muito longe, em radicalidade, os paradigmas da “vida na razão” (bíos theorétikós) como ideal da filosofia antiga. Mas, paradoxalmente ou mesmo contraditoriamente, trata-se de um projeto que tem por objeto a construção de um absoluto no interior do próprio devir histórico. É permitido afirmar, por conseguinte, que o desafio especulativo de pensar um absoluto que se exterioriza no movimento mesmo que o constitui é verdadeiramente, o problema matricial, o problema-fonte de todos os grandes problemas da filosofia moderna. 

Nesse ponto convém lembrar que as origens longínguas do propósito de pensar o ser como absoluto, constituindo o primeiro passo da razão teórica, remontam a Parmênides . O pensador eleata é, pois, o iniciador da ontologia como ciência do ser. No entanto, a ontologia parmenidiana se exaure na tautologia do princípio de identidade: o ser é. Como introduzir a diferença na identidade sem relativizar o ser uno e absoluto na pluralidade do múltiplo? (...) Essa situação metafísica na qual tem lugar o primeiro passo do itinerário do discurso do esse encontrou um primeiro modelo de explicação na teoria neoplatônica da processão da primeira Inteligência a partir do Uno, e, na filosofia cristã, um segundo modelo na teoria agostiniana da iluminação. Ora, tal situação reaparece, em analogia eloquente, no problema filosófico moderno da relação entre Razão e Existência. É possível reconduzir a existência, desde o simples ato de existir, aos cânones explicativos da Razão humana, entendida como geratriz de toda inteligibilidade? Em outras palavras, a Razão humana pode reivindicar os atributos do Esse subsistente? Essa interrogação é inevitável como consequência do postulado imanentista radical da filosofia moderna. Tal postulado anima o projeto de construção da “cidade do homem”, onde os problemas metafísicos terão sua solução natural ou declaradamente pós-metafísica. A carta magna da “cidade do homem” é promulgada em nome da Razão na sua modalidade de razão científica e no seu uso operacional, medido pela sua eficácia na produção de objetos. 

Ora, a razão científico-operacional é uma razão intrinsecamente ligada ao agir e ao fazer humanos.
Ela observa, estabelece normas, formula hipóteses, mede e calcula, rege a produção de objetos. Pressupõe, portanto, o estar-no-mundo do sujeito racional, o seu simples existir enquanto dado a si mesmo, em meio às coisas que igualmente lhe são dadas. Mas essa situação, que pode ser denominada situação ôntico-primária, permanece impensada pela razão científico-operacional. Como recuperar para o universo luminoso da razão o fundo obscuro do simples existir? É a essa interrogação, vinda dos começos do caminho grego do logos, que a metafísica de Tomás de Aquino respondeu com a intuição da inteligibilidade do Esse absoluto como ato de infinita perfeição. Tal intuição assume então a forma de uma pré-compreensão fundante de toda a atividade da razão. No entanto, como antes já observamos, ela contempla o Esse absoluto como fonte de toda inteligibilidade na sua objetividade transcendente. Em outras palavras, a intuição do Esse é ato de uma razão que se mostra assim capaz de elevar-se à theoria desinteressada do Ser (capax entis)” (H. C. de Lima Vaz. Escritos de filosofia VII – Raízes da Modernidade., 1ª edição, São Paulo, Loyola, 2002. p. 100)

O Direito e a construção do Sistema. Considerações sobre as duas vias do sistema, positivismo, jusnaturalismo e o princípio da dignidade humana. RUBENS GODOY SAMPAIO



“O mesmo desenvolvimento do pensar, que é exposto na história da filosofia, expõe-se na própria filosofia, mas liberto da exterioridade histórica – puramente no elemento do pensar.  O pensamento livre e verdadeiro é em si  concreto, e assim é  idéia, e em sua universalidade total é a idéia ou o absoluto. A ciência [que trata] dele é essencialmente  sistema, porque o verdadeiro, enquanto  concreto, só é enquanto desdobrando-se em si mesmo, e reconhecendo-se e mantendo-se junto na unidade – isto é, como  totalidade; e só pela diferenciação e determinação de suas diferenças pode existir a necessidade delas e a liberdade do todo.
Um filosofar sem sistema não pode ser algo científico; além de que tal filosofar exprime para si, antes, uma mentalidade subjetiva: é contingente segundo o seu conteúdo. Um conteúdo só tem sua justificação como momento do todo; mas, fora dele, tem uma hipótese não fundada e uma certeza subjetiva. Muitos escritos filosóficos se limitam a exprimir desse modo somente maneiras de ver e opiniões. Por sistema entende-se erroneamente uma filosofia que tem um  princípio limitado, distinto dos outros; ao contrário, é princípio da verdadeira filosofia conter em si todos os outros princípios particulares”.

                                                G.W. F. Hegel        
Enciclopédia das Ciências Filosóficas, §14[1]




Sumário


Apresentação – p. 5
 Resumo – p. 6
 Introdução – p. 7.
 Capítulo Primeiro – A ruptura entre Ética e Direito – p. 9.
 Capítulo Segundo - O Sistema e a Teoria do Sistema – p. 23.
 Capítulo Terceiro – A via compositionis  e a via resolutionis: 
direito positivo e direito natural. – p. 34.
 Capítulo Quarto – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.  – p. 44.
Conclusão  – p. 49.
Referências bibliográficas – p. 60.



APRESENTAÇÃO
O autor deste trabalho, defendeu em outubro de 2004 sua tese de doutorado intitulada: Metafísica e Modernidade – Método e Estrutura, Temas e Sistema no pensamento filosófico de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Este trabalho permitiu o estudo aprofundado de temas de epistemologia e de profunda relação com o tema do Direito.
Esta monografia apresenta-se como um esboço de articulação explícita entre o tema defendido naquela tese e dois temas atuais da reflexão jurídica: o tema do sistema e o tema da dignidade da pessoa humana. Neste texto serão aproveitados trechos de sua tese de doutorado, sobretudo para se apresentar o tema do sistema e suas vias de compreensão (via compositionis  e via resolutionis).


RESUMO
Este texto pretende apresentar o fluxo teórico que desencadeou a emergência do atual pós-positivismo, por meio da tentativa de superação da ruptura entre Ética e Direito  ocorrida na modernidade, e da assunção de conceitos oriundos da teoria dos sistemas e das antropologias personalistas.
Num primeiro momento, serão apresentadas as características e os principais aspectos da cisão entre Ética e Direito  ocorrida no seio da modernidade.
Na seqüência serão apresentados os principais aspectos da teoria dos sistemas, que vêm em proveito da tentativa do restabelecimento daquela relação originária entre Ética e Direito .
Para finalmente, permitir a adoção de pressupostos antropológicos de matriz personalista que vão permitir a inserção da categoria de Pessoa, que em sua essência, e em sua elaboração mais bem acabada se apresenta não só como categoria antropológica, mas também como categoria moral, pois as filosofias do homem que adotam como clef de voûte a categoria de Pessoa, entendem tal categoria como essencialmente moral.
Em função do tipo de problema aqui tratado, o viés deste trabalho será profundamente marcado por uma reflexão de caráter filosófico, pois seu escopo é justamente apresentar os pressupostos filosóficos que nortearam e permitiram a superação do positivismo jurídico contemporâneo em direção à tão festejada adoção do princípio da dignidade da pessoa humana.



Introdução
O advento da modernidade cartesiana rompeu com a unidade ontológica entre Ética e Direito , própria da Antiguidade Clássica. Esta ruptura alcançou seu grau máximo de profundidade com o positivismo kelseniano. Este trabalho enumerará os principais aspectos desta ruptura ao apresentar as características de dois horizontes históricos distintos e sucessivos, marcados respectivamente por duas universalidades conceituais diferentes, a saber, a universalidade nomotética, presente no horizonte cultural da classicidade de matriz grega, e a universalidade hipotético-dedutiva presente no horizonte cultural da modernidade ocidental.
A demonstração quase esquemática das diferenças entre as chamadas universalidades nomotética e hipotético-dedutiva servirá de fundamento conceitual para que sejam denunciadas as conseqüências da passagem de uma universalidade para a outra no campo das relações entre Ética  e Direito.
Tendo em vista que a separação conceitual entre estas duas dimensões constitutivas da vida humana em sociedade não foi profícua na busca de representações teóricas e científicas do fenômeno da intersubjetividade, a filosofia do direito contemporânea buscou trazer de volta para o espaço da reflexão jurídica o tema da Sitlichkeit, da Eticidade.
O esforço jusfilosófico de reconstituição desta relação exigiu a superação do viés geometrizante da epistemologia moderna que contagiou todo o saber produzido ao longo dos séculos XVIII e XIX, e que se fez presente no mundo do Direito até meados do século XX.
Tal superação fez com que os teóricos do Direito dialogassem com as chamadas teorias do sistema e com as antropologias personalistas.
Este trabalho apresentará com mais detalhes as características daquela cisão. Para em seguida apresentar uma espécie de resumo dos principais pressupostos das teorias do sistema, e em particular do conceito de sistema aberto. Para finalmente apresentar pequenos ecos do diálogo do Direito com a Antropologia Filosófica, de onde foi retirada a noção de dignidade da pessoa humana.
Invertendo a direção do discurso  é possível dizer que o conceito de dignidade humana (princípio da dignidade da pessoa humana), oriundo das antropologias filosóficas de matriz cristã, só entrou no espaço da reflexão jurídica porque na tentativa de superar os paroxismos de uma epistemologia de matriz hipotético-dedutiva (própria da física-mecânica galileiano-newtoniana), a reflexão jusfilosófica apropriou-se da noção de sistema aberto oriunda da nova epistemologia elaborada pelas ciências biológicas, que por sua vez também não alcançaram êxito suficiente para representar a complexidade de seus objetos de investigação, quando apertadas e aprisionadas dentro de um sistema fechado (quase tautológico) próprio da física-matemática.



Capítulo Primeiro - A ruptura entre Ética e Direito
Este texto apresenta como o Direito acompanhou os mesmos passos dados pela Filosofia na trajetória realizada pelos séculos do medievo e da modernidade até a contemporaneidade. Ao se percorrer a História da Filosofia sempre se pode entender o que acontece com o mundo da ciência, das artes, da cultura em geral. Pois toda a cultura ocidental sempre foi o reflexo daquilo que acontece no horizonte da filosofia, que por sua vez tem por pretensão constituir-se como o fundamento do conhecimento, seja ele o conhecimento científico, estético, técnico, jurídico.
A origem da Filosofia foi marcada pelo paradigma do Ser. O filósofo do mundo antigo e do medievo acreditava que era possível conhecer o Ser, conhecer aquilo que as coisas eram em si mesmas. Tanto a Antiguidade Clássica quanto a Classicidade Medieval Cristã foram marcadas pelo paradigma ontológico. Neste momento do desenvolvimento da cultura ocidental a epistemologia hegemônica se constituía em torno do Ser.
Com a modernidade, e o advento do paradigma do Sujeito, houve no âmbito da Filosofia, a chamada revolução copernicana do sujeito, inaugurada por Descartes e levada a cabo por Emmanuel Kant. Na modernidade filosófica o objeto orbita em torno do sujeito, e o sujeito como tal apresenta-se como o fator constituidor e criador do conhecimento. Nesta fase da História da Filosofia, surge o paradigma do Sujeito.
A superação deste paradigma dá-se com a emergência do desenvolvimento da Filosofia da Linguagem, quando então se impõe o paradigma lingüístico, apresentando o conhecimento como algo que é construído a partir da linguagem. Agora a concepção que se tem do conhecimento como tal, tem como premissa básica que a natureza do conhecimento é lingüística: o paradigma da Linguagem.
É impossível resumir 2600 anos de filosofia em uma página, mas de forma muito sintética estes foram os três grandes paradigmas que se sucederam no campo da epistemologia e que se fizeram acompanhar por todos os outros campos do conhecimento. E como não poderia deixar de ser, o Direito também foi manuduzido pela Filosofia e teve ao longo da história um desenvolvimento que acompanhou a reflexão filosófica, espelhando e refletindo em suas construções teóricas o paradigma filosófico vigente.
O paradigma que emerge, em superação àquele da linguagem é o paradigma da Mente, da Filosofia da Mente, desenvolvido nas regiões fronteiriças entra a Filosofia, a Psicologia, a Informática e a Neurofisiologia[2].  Mas o Direito ainda não foi alcançado pelos problemas que este novo paradigma poderá colocar para ele.
Com a invenção da modernidade, a grande conseqüência para o mundo jurídico, foi a seguinte: a chegada da modernidade e o sucesso deslumbrante do casamento entre Física e Matemática celebrado por Galileu  Galilei  e Isaac Newton, todas as outras ciências acharam que a melhor forma de se constituírem como conhecimento exato e preciso era imitar aquilo que foi feito pela Física: matematizar-se. E para que isso acontecesse seria necessário que o direito se separasse da Ética (ou da Moral).
O Direito entrou nesta “onda”. E o fautor deste projeto foi Hans Kelsen. Kelsen foi o intelectual que levou tal projeto ao seu ponto máximo. E como ele foi o ápice desta empreitada, ele não poderia deixar de ser o início do declínio deste projeto de matematização da ordem jurídica.
Este projeto de geometrização jurídica, de separação e de expurgo dos princípios éticos levou a uma profunda cisão entre Ética e Direito  e entre Ética e Política. Tal ruptura se deu ao longo de toda a Idade Moderna e alcançou, como já foi dito, seu ponto culminante nos meados do século XX. No início da modernidade o clássico que inaugura esta forma política de pensar o Direito é Thomas Hobbes[3].
O estudo desta cisão entre a ética e o direito é um caminho propício para a reconstituição da gênese da modernidade e para a compreensão adequada das conseqüências geradas por esta separação. Para tanto seguiremos o roteiro desenhado no livro Escritos de Filosofia II - Ética e Cultura, do mais renomado filósofo brasileiro, Henrique Cláudio de Lima Vaz, em seu capítulo Ética e Direito .
No livro Ética e Cultura, designado de forma abreviada pela sigla EF II, e mais especificamente num dos capítulos mais celebrados pelos juristas  encontra-se uma visão do advento da modernidade a partir de uma perspectiva ‘bi-focal’, a saber, a perspectiva da Ética e a perspectiva do Direito no interior de duas universalidades distintas: a universalidade nomotética e a universalidade hipotético-dedutiva. O primeiro modelo denominado nomotético conheceu as variantes cosmonômica e teonômica, ou seja, a ordem do universo e da sociedade eram ordens reflexas. Em outros termos, o cosmo e o próprio Deus projetavam sua ordem (ordem cósmica) e sua vontade (vontade divina) no mundo dos homens. O microcosmo humano, para alcançar sua Areté (sua excelência), deveria espelhar-se na perfeição cósmica (na Antiguidade grega) ou obedecer os desígnios da Providência Divina  (no medievo cristão). O segundo modelo denominado hipotético é essencialmente politonômico[4] uma vez que nele a lei se compreende no interior da esfera política seja como lei natural (recebida do estado de natureza), seja como lei positiva. Aqui a lei se impõe como resultado da ordem política estabelecida pelos sujeitos. Esta ordem política é uma ordem imanente e não transcendente. Por isto a expressão polito-nômica consegue exprimir esta característica fundamental desta nova ordem fundada pelos filósofos modernos.

Ética
 e Direito

O processo genético da modernidade ocorreu a partir das transformações ocorridas no seio do ethos vigente na Antiguidade Clássica e no ethos emergente dos anos inaugurais da modernidade.
É importante notar que a transformação realizada na compreensão da Ética e do Direito tem suas raízes mais profundas na evolução do conceito de natureza, que, por sua vez, depende da noção de ‘eu’.
"A evolução do conceito de Natureza, que oferece o fundamento para a definição da universalidade do Direito, é que permite a passagem da universalidade nomotética à universalidade hipotético-dedutiva"[5].

IDADE ANTIGA

IDADE MODERNA
Eu inteligível
Eu construtor

Mundo
Natureza técno-científica

Relação ontológica entre Ética e Direito
Ruptura da relação entre Ética e Direito

Agora, portanto, será o momento de apresentar os termos desse passo decisivo na constituição da modernidade a partir das perspectivas da Ética e do Direito.

Revolução
Científica

O fenômeno que forjou os pressupostos epistemológicos da passagem do horizonte clássico (universalidade nomotética) para o horizonte da modernidade (universalidade hipotético-dedutiva) foi a Revolução Científica, também responsável pela matematização da física e pela pretensão matematizante de compreensão da realidade. Um dos efeitos mais significativos desta revolução cultural foi a emergência da técnica como fator determinante de abordagem da natureza.
Todavia, essa forma de compreensão do mundo também foi transcrita para outras dimensões da realidade. E uma das dimensões da vida humana mais determinadas por essa mudança foi a dimensão da intersubjetividade ou do viver em comum dos homens. A partir dessa influência determinante no espaço intersubjetivo da vida humana, o problema clássico da melhor constituição passou a obedecer à inspiração maquiavélica e formulou-se “cada vez mais como problema de técnica do poder e cada vez menos como discernimento sapiencial do mais justo”[6]. E o reflexo deste evento na reflexão jurídica foi fundamental, pois o saber jurídico começou a ser compreendido mais e mais como técnica e como arte (ars), como saber operatório e prático. Daí a famosa expressão “operadores do direito”, que na verdade vem mais em detrimento destes mesmos “operadores” do que em seu proveito, vez que passam a ser compreendidos mais como técnicos, detentores de saberes procedurais, do que pensadores, juristas e gestores da vida social.




Universalidades



Ao mesmo tempo é possível detectar uma oposição histórica marcada pelas diferenças entre a antropologia política clássica e pela antropologia política moderna. Na primeira, o direito tem a forma de uma universalidade nomotética. Na segunda, o direito assume as características de uma universalidade hipotético-dedutiva.



Universalidade nomotética


A universalidade que determinava o horizonte da Antiguidade tinha como fundamento uma ordem do mundo que se supunha manifesta e na qual o nómos ou a lei da cidade era o modo de vida do homem que refletia a ordem do cosmo contemplada pela razão. Na universalidade hipotético-dedutiva o fundamento se encontra oculto e precisa de uma explicação oriunda de uma primeira hipótese, não verificada empiricamente, que tem a necessidade de ser dedutivamente corroborada pelas suas conseqüências[7]. O primeiro caso pertence ao âmbito da ontologia antiga. O segundo caso encontra-se sob a égide do pensamento científico moderno. Naquele caso o Direito e a Política conservavam uma relação intrínseca com a Ética, e tal relação ruiu com o advento da modernidade à medida que o Direito e a Política constituíram-se  como esferas autônomas e independentes da normatividade ética. Freqüentemente o Direito e a Política passam a se opor a qualquer tipo de normatividade ética. Tal fato tornou-se notório nas obras de Hans Kelsen.


correspondência entre o cosmo e a cidade


A relação entre Ética e Direito  no pensamento clássico estava assentada sobre a correspondência existente entre a ordem do cosmo e a ordem da cidade “sob a soberania de uma mesma lei universal que inspira as primeiras tentativas de definição de uma esfera do direito e da justiça” à qual o homem buscava se elevar para desvencilhar-se de um mundo marcado e determinado pela violência e pelo caos[8].
O homem grego deu ao postulado da ordem a forma do logos (ou da razão jurídica) a partir da idéia fundamental de lei – nómos – que por sua vez tinha seu significado na referência a uma ordem divina (cósmica ou transcendente) à qual a lei humana devia se conformar.
O núcleo da universalidade nomotética está configurado a partir de uma idéia de natureza cujas prerrogativas são as da necessidade e da racionalidade. Com a alteração dessa noção de natureza, a partir de todos os eventos da Revolução Astronômica, não haverá possibilidade de se sustentar um mesmo tipo de universalidade quando o seu núcleo está completamente corroído pela emergência de um tipo de racionalidade marcada pelas características da contingência, da não-necessidade, enfim de uma natureza literalmente construída ou compreendida como um artefacto ou como um constructo.
Isto se dá porque na Antiguidade havia uma constante homologia entre a racionalidade do pensamento científico e a racionalidade do pensamento social e político. Todavia, com a chegada da modernidade esta homologia não mais se sustenta.
Em síntese, na Antiguidade, a idéia de natureza sempre esteve relacionada com a idéia de nómos, pois há uma correspondência de natureza divina entre a ordem do cosmo e a ordem da cidade, estabelecida e manutenida pela ordem jurídica. Tanto a ordem cósmica, quanto a ordem pública estão subordinadas à soberania de uma lei universal[9]. O valor e o significado da lei – nómos – são decorrentes de uma ordem maiúscula, divina e transcendente, vem a ser a própria ordem do cosmo, à qual a lei da cidade ou a lei humana deve se conformar. O pensamento grego atribuiu o caráter formal da lei que normatiza o comportamento humano a uma ordem divina que “poderia ser transcrita no registro racional da idéia de natureza”[10]. Portanto esta ordem universal possui a prerrogativa da normatividade, de onde emana a força prescritiva da lei e do ordenamento jurídico como tal.
O mundo humano está submetido à ordem do universo. Em contraposição à noção de autonomia moderna, há no horizonte grego a primazia da noção de cosmonomia.
Tal concepção estabelece uma união inconsútil entre lei e natureza – entre physisnómos que será desalinhavada quando a filosofia moderna elaborar um novo conceito de natureza, distinto do conceito grego de physis.
 A genialidade grega está em “dar ao postulado da ordem, que torna possível a existência histórica, a forma do logos ou, no nosso caso, da razão jurídica, a partir da idéia fundamental de lei (nómos)[11].

Ruptura

A ruptura com a tradição clássica e a passagem da universalidade nomotética para a universalidade hipotético-dedutiva decorre da emergência de uma nova forma de razão, por um lado, herdeira da razão grega, por outro lado, a ela oposta. A razão moderna elaborou uma nova visão de homem e uma nova visão de natureza que não comportavam os traços constitutivos da universalidade nomotética. Conseqüentemente serão delineadas novas teorias jurídicas, morais e políticas[12].


Neste momento de sua apresentação da mudança de universalidades, o filósofo que nos ajuda neste trabalho, Lima Vaz[13] indica a importância da transformação do conceito de natureza.
"A linha de ruptura que assinala a formação de uma nova idéia da Razão e o desenho de uma nova imagem do homem inscreve-se justamente nesse terreno fundamental que é o conceito de Natureza e significa o abandono definitivo das propriedades que caracterizam a antiga physis"[14].
Mas a nova idéia de Razão também se apresenta como um novo tipo de ciência fundada na relação poiética ou na possibilidade do domínio do mundo pelo homem. Agora o mundo é um novo campo de ação do homem. Essa ação é marcada pela pretensão do domínio técnico e exploratório que assumirá uma importância cada vez maior com o correr dos séculos.
Essa nova relação do homem com o mundo será responsável pela formação de uma nova “constelação de valores polarizados em torno do problema da satisfação das necessidades”. E a organização sociopolítica será determinada exatamente por este problema.
"O direito ao trabalho universal e livre e à sua adequada remuneração passa a ser o núcleo axiológico da civilização. A luta pela dominação e exploração da natureza tendo em vista a satisfação das necessidades que se desdobram segundo a lógica do que Hegel denominou o ‘mau infinito’ (...) transforma profundamente a própria idéia de natureza na sua relação com o agir do homem"[15].
A visão moderna de natureza, faz com que esta seja destituída das características da physis  clássica. A natureza não é mais o fundamento de uma ordem imutável à qual se deva referir a práxis humana.
A modernidade faz com que surja uma nova homologia entre natureza e sociedade, e assim, a nova maneira de compreender a natureza também será aplicada à sociedade, inaugurando uma nova forma de compreender a Política, a Ética, o Direito.
Essa homologia moderna submete o pensamento social e político, ético e jurídico, à epistemologia e aos parâmetros metodológicos da nova ciência da natureza que tem como instrumento privilegiado de análise a matemática.
"Eis aí os pressupostos que, na articulação da dialética indivíduo-sociedade, irão determinar a abertura de um novo horizonte de universalidade, aquela que denominamos justamente universalidade hipotética. Se a questão fundamental da antiga filosofia prática no âmbito da vida social era a determinação dos requisitos essenciais que asseguram ao homem, como cidadão, exercer na sociedade política atos próprios da vida virtuosa (eu zen) ou da vida ordenada para o bem da cidade – identificando com o bem do indivíduo ou com a sua autarquéia –  o pensamento político moderno assume como sua tarefa primordial  propor a solução analiticamente satisfatória do problema da associação dos indivíduos, tendo como alvo assegurar a satisfação das necessidades vitais. A prioridade tanto lógica quanto ontológica é aqui deferida ao indivíduo na sua particularidade psicobiológica, que se apresenta como elemento simples que se supõe inicialmente independente na sua suficiência de ser-para-si"[16].
A noção clássica de autarqueia aristotélica sofre uma transposição filosófica que encontrará uma nova expressão no Cogito cartesiano.
A gênese da sociedade começa a ser explicada a partir da submissão do indivíduo à necessidade extrínseca de integrar-se no pacto social e de submeter-se ao constrangimento da vida social e política.  Nesse esquema, a universalidade hipotético-dedutiva é compreendida como um modelo explicativo que ilustra a passagem do estado de natureza ao estado de sociedade[17].
As teorias modernas do Direito Natural são determinadas por um modelo hipotético. Esse modelo tem sua validez ratificada e corroborada através de uma explicação que consiga, satisfatoriamente, esclarecer o fato da existência social do indivíduo como condição para a sua sobrevivência. E essa existência social realiza-se através da passagem de um estado original para um estado organizado pela sociedade que é, ao mesmo tempo, negação e continuação daquela situação originária.
A universalidade hipotético-dedutiva é modelada pela mecânica galileano-newtoniana e se situa no “nível de inteligibilidade que Hegel denominou nível do entendimento”[18].
Dessa forma o Direito natural moderno tem em vista  fundamentar de forma racional e universal um sistema de normas jurídicas que fosse compatível com o desenvolvimento de uma sociedade marcada pelo trabalho e pela produção que alcançará escalas gigantescas. E nada melhor do que a emergente ciência experimental para se constituir como o tipo privilegiado e exemplar de racionalidade que conseguirá fornecer o instrumento perfeito para a realização do gigantesco projeto de exploração, utilização, domínio e senhorio da natureza.
Toda essa apresentação sobre as universalidades tem como objetivo mostrar a cisão entre Ética e Direito  ocorrida por ocasião da mudança de horizonte e de universalidades.
No interior da universalidade nomotética havia uma relação de natureza ontológica entre Ética e Política, ou entre Ética e Direito  que não permitia  pensar a Ética sem pensar a Política e o Direito.
Contudo, a ruptura ocasionada pela mudança de horizontes provocou a separação entre Ética e Direito  ou entre Ética e Política fazendo, sobretudo, com que o espaço da ética sofresse um refluxo para o campo do subjetivo e do irracional, juntamente com a religião e com outras formas precárias de conhecimento.
Isso porque o modelo hipotético-dedutivo se apresenta como um
“suporte teórico inadequado para sobre ele se edificar o edifício conceitual que abrigue juntamente a Ética e o Direito ou no qual se integrem a universalidade subjetiva da pessoa – a liberdade – e a universalidade objetiva do Direito – a lei”[19].
Além do mais, a estrutura de universal interdependência através da qual os indivíduos se associam nesse sistema das necessidades é marcada por um caráter não-finalístico e cuja racionalidade preside a sociedade civil. Isso faz com que os mecanismo jurisdicionais se realizem segundo uma “relação de exterioridade ou de coatividade entre a lei e o indivíduo”[20]. Ao mesmo tempo em que se realiza essa separação entre Ética e Direito  acontece a fragmentação da imagem de homem na pluralidade dos universos culturais, o que torna mais difícil a adequação das convicções individuais e das liberdades individuais com uma constelação de valores reconhecidos universalmente e que possam ser legitimados num sistema de normas e fins posto pela sociedade[21].
A lógica que norteia a modernidade procede segundo os cânones da análise que isola os indivíduos como átomos completamente separados para ulteriormente reintegrá-los num sistema que compatibilize os fins comuns da sociedade e o movimento de satisfação das necessidades individuais. Essa lógica estabelece um tipo de relação eminentemente técnica da qual são excluídos os princípios éticos.
Eis o resultado do desmoronamento da physis  antiga por obra da ciência de matriz galileana: uma inversão radical que imanentizou as categorias teológicas da graça e da salvação e fez com que a ordem da liberdade começasse a ser pensada na imanência mesma da história conforme a norma da epistemologia moderna, ou ainda, segundo modelos de natureza hipotético-dedutiva.
Hegel empreendeu o esforço de restaurar na “imanência histórica uma forma de universalidade nomotética como universalidade do espírito que se objetiva e tem na história a sua teodicéia”[22].
 “Uma vez restituídas as intuições fundamentais que estão nos fundamentos desses dois tipos de universalidade, será necessário interrogar-se sobre o sentido da sua oposição histórica e sobre o destino dos direitos humanos no desdobramento de uma lógica da universalidade hipotética levada às últimas conseqüências. É na linha dessa interrogação que adquire especial relevo a tentativa hegeliana de retomar a universalidade nomotética integrando-a na perspectiva do estado moderno e derivando a ordem da Natureza para a teleologia da História. Esse o quadro conceitual dentro do qual o problema das relações entre Ética e Direito  se coloca para nós"[23].
No horizonte de uma organização social regida pela universalidade hipotético-dedutiva corre-se o risco de que a liberdade seja extirpada desses grandes sistemas mecânicos que se regulam por modelos eficazes e racionais que controlam o arbítrio dos indivíduos, já destituídos da sua “razão de ser como homens ou como portadores do ethos[24] .
No quadro seguinte é possível visualizar de forma sinóptica o cotejo feito por Lima Vaz entre as duas universalidades para indicar as características do processo de passagem para o horizonte da modernidade.
Quadro comparativo das universalidades nomotética e hipotético-dedutiva[25]
NOMOTÉTICA
HIPOTÉTICO-DEDUTIVA
Correspondência entre a ordem cósmica e a ordem da cidade sob a soberania de uma mesma lei universal  que inspira as primeiras tentativas de definição de uma esfera do direito  e da justiça à qual o homem deve elevar-se para libertar-se do mundo da violência e do caos148
Pensamento ético, social e político submetido aos princípios epistemológicos e às regras metodológicas da nova ciência da natureza, ciência de tipo hipotético-dedutivo, e tendo a análise matemática como seu instrumento privilegiado – paradigma da mecânica galileiano-newtoniana163/165
Cosmonomia
Autonomia
Relação INTRÍNSECA (fusão) entre Ética e Direito /Política
Relação EXTRÍNSECA (cisão) entre Ética e Direito /Política
Direito/Política como esfera independente da normatividade ética e freqüentemente oposta a ela147
Referência constitutiva da ação política a uma tradição252
Mito do começo absoluto – sem tradição
Direito/Política como arte e sabedoria
Direito/Política como técnica racionalmente otimizada do exercício do poder 254 e 257
Direito/Política como PRÁXIS
é julgada pelos critérios da auto-realização do homem  ou do seu ser-em-razão-de-si-mesmo
Direito/Política como TECHNÉ,
ou como arte de persuadir e comandar
segundo os critérios da  verossimilhança e da força157
MELHOR CONSTITUIÇÃO
 é a que defende as condições melhores  para a prática da justiça258
MELHOR CONSTITUIÇÃO
 é a que garante mais eficazmente o exercício do poder258
Hierarquia de fins
Jogo de Forças
Ciência política  tem como objetivo definir a forma de racionalidade que vincula o livre agir do cidadão à necessidade, intrínseca à própria liberdade, e portanto, eminentemente ética, de conformar-se com a universalidade da justiça259
Ciência Política  trabalha com hipóteses que permitem deduzir um plano  mais rigoroso para o exercício eficaz do poder, vem a ser, para o domínio mais completo do espaço  onde as liberdades  individuais podem mover-se258
Critérios do bem melhor e mais perfeito
Critérios do útil e do eficiente265
NOMOTÉTICA
regida pela razão do melhor: trata-se de legitimar o poder pela justiça na perspectiva de uma teleologia do Bem e fazer assim, da vontade política, uma vontade instauradora de leis justas
VONTADE DE PODER
que se impõe como constitutiva do político sem outra finalidade a não ser ela mesma e sem outras razões legitimadoras senão as que podem ser deduzidas da hipótese inicial da sua força soberana
Racionalidade Política ordenadora de uma prática em vista de um FIM que é a justiça na cidade259
Racionalidade Técnica que obedece à racionalidade da causa eficiente e dos seus instrumentos, e que esgota seu FIM na eficácia do seu exercício258
História-tradição
História-ciência
Anterioridade da comunidade na qual
o indivíduo encontra-se inserido
Hipótese do pacto social que reúne,
numa sociedade organizada, os indivíduos dispersos
NATUREZA
é a physis na imutabilidade da sua ordem e fundamento de um nómos objetivo ao qual deve referir-se a práxis humana163
NATUREZA
é o campo de fenômenos que se oferece à atividade conceitualizante e legisladora da razão e à atividade transformadora da técnica
TRAGÉDIA ANTIGA:
DESTINO que age sobre as liberdades
do alto de um céu misterioso
CAPRICHO DOS DEUSES258
DIREITO MODERNO
FAZER na ordem da causalidade eficiente
RAZÕES DO PODER258
A questão fundamental da ANTIGA FILOSOFIA PRÁTICA, no âmbito da vida social, era a determinação dos requisitos essenciais que asseguram ao homem, como cidadão, exercer na sociedade política os atos próprios da vida virtuosa ou da vida ordenada para o bem da cidade163
A tarefa primordial do PENSAMENTO MODERNO é propor uma solução analítica satisfatória ao problema da associação dos indivíduos, tendo como alvo assegurar a satisfação de suas necessidades vitais163
Tempo qualitativo
Tempo quantitativo
Passado e Presente como componentes estruturais de um TEMPO QUALITATIVO, que se articulam dialeticamente para constituir o TEMPO HISTÓRICO, o tempo do ethos ou da tradição20
Predomínio do fazer técnico onde o  TEMPO é cálculo e previsão; o tempo  se distende  todo na planificação e domínio do FUTURO255
Ethos que organiza qualitativamente o TEMPO PASSADO numa perspectiva axiológica em cujo prolongamento – pela reiteração, pelo confronto ou pela transgressão – deverão situar-se as opções ético-políticas do TEMPO PRESENTE253
Esvaecer-se do horizonte da tradição em face do avançar do TEMPO QUANTITATIVO ao qual a história-ciência parece submeter-se e que abre largo espaço para o niilismo ético e político253
A primazia do tempo quantitativo transfere do passado para o futuro  a instância normativa do tempo  ou o seu  centro de gravidade: o que significa conferir ao tempo por vir os predicados axiológicos que asseguravam a exemplaridade do passado na formação do ethos tradicional20 .

Com este quadro demonstramos as principais características de um e de outro modelo de forma sinópitca. No campo da Filosofia, a tentativa de superação do dualismo sujeito/objeto criado pelo novo paradigma epistemológico gerou em esforço titânico, realizado sobretudo por G.W.F. Hegel. Todavia, não será em uma monografia de um curso de especialização que se poderá demonstrar de forma detalhada (ou até mesmo resumida) quais foram os caminhos hegelianos desta superação. Mesmo porque a notória dificuldade do pensamento de Hegel, vem em detrimento dele mesmo, no sentido de que poucos se aventuram a lê-lo justamente pela natural dificuldade de se compreendê-lo.
De qualquer forma, na esteira do esforço de superação dos conflitos gerados pela modernidade, além de Hegel, e por causa de Hegel, há um capítulo interessante na História da Filosofia que será justamente o tema do sistema.
O próprio Hegel elaborou seu pensamento de forma sistemática e o apresentou de forma dialética, fazendo com que forma e conteúdo se inter-relacionassem de forma inconsútil e determinante, no sentido que a forma do sistema dependesse ontologicamente do próprio conteúdo.
Neste trabalho, pularemos os passos hegelianos para abreviar as etapas intermediárias e alcançarmos de imediato um dos resultados da reflexão contemporânea que foi a elaboração da teoria dos sistemas, que permitiu a criação de uma noção de sistema diferente dos padrões euclidianos de edificação conceitual.
No próximo capítulo apresentamos as noções principais da teoria do sistema e a noção de sistema aberto, desenvolvida nas ciências biológicas e portanto, detentora de uma complexidade maior, e portanto mais adequada para ser adotada como noção que permita a representação abstrata e teórica do fenômeno jurídico.


Capítulo Segundo
O Sistema e a Teoria do Sistema

Para redigir este trabalho, pinçamos do campo da Filosofia os seguintes tópicos: a reflexão sobre a cisão entre Ética e Direito  e a urgência de sua superação, a teoria dos sistemas e o problema antropológico da dignidade humana.
Os aspectos jurídicos correspondentes a estes problemas filosóficos são os seguintes: o pós-positivismo como superação da cisão moderna entre Ética e Direito , a assunção do conceito de sistema aberto, oriundo das teorias do sistema e da biologia, e finalmente o princípio da dignidade da pessoa humana oriundo das antropologias personalistas de matriz cristã.
Portanto, neste trabalho temos a pretensão de apresentar as raízes filosóficas de três tópicos centrais da reflexão jurídica atual, no sentido de aprofundar a compreensão destes temas, bem como inter-relacioná-los entre si.
Em linhas gerais, apresentar como na grecidade clássica, vem a ser na antiguidade de Platão e Aristóteles, se dava a relação entre Direito e Ética, justamente em função do horizonte epistemológico marcado pelo paradigma ontológico.
Com o advento da modernidade, deu-se a ruptura entre Ética e Direito , porque se impôs um horizonte epistemológico de caráter hipotético-dedutivo marcado pelo ideal reducionista de geometrização da realidade, de sucesso indiscutível no campo da Física newtoniana, que se tentou transcrever para  o campo de todas as outras ciências. O sistema fechado da Física tornou-se  o paradigma epistemológico predominante e hegemônico. E tal paradigma passou a ser copiado e imitado no campo de todas as outras ciências. Tal pretensão alcançou o seu ápice jurídico no sistema kelseniano (influenciado por Kant, que por sua vez foi influenciado por Issac Newton).
Todavia a exacerbação dos princípios de um sistema fechado leva a contradições lógicas, no campo da abstração e do exercício intelectual e, quando aplicados à realidade pode levar a absurdos históricos inacreditáveis, mas que infelizmente tornaram-se realidade durante a Segunda Guerra Mundial, vez que a defesa dos grandes responsáveis pelas atrocidades do Terceiro Reich era fundada, sobretudo, no fato de que ordens estavam sendo obedecidas. E a obediência à legalidade da ordem  permitia que se expurgasse todo o aspecto moral da conduta humana. Ora a conduta humana pode ser regrada por leis, mas nunca que tais leis serão suficientes para alcançar a complexidade de qualquer vida humana, ainda mais dentro de um sistema jurídico fundado em pressupostos abstratos de natureza hipotético-dedutiva.
A sistematização teórica da biologia, levada a cabo por Ernst Mayr, no século XX demonstrou que os organismos vivos devem ser  compreendidos a partir de um instrumental teórico que compreenda a vida e suas inter-relações com o meio como um sistema aberto.
Considerando que a vida humana tem sua base e sua estrutura biológica, e ultrapassa, por meio da cultura, suas determinações biológicas, diferenciando-se de todos os outros seres vivos, justamente pela sua criatividade cultural, como se pode pretender que um aspecto ligado à intersubjetividade, a saber, o aspecto jurídico das relações humanas, possa ser tratado a partir de um sistema fechado?
Como se vê, há uma contradição de paradigmas, que no horizonte da História causou estragos incomensuráveis. É óbvio que a causa da Segunda Guerra Mundial foram interesses econômicos e não jurídicos. Mas o Direito, compreendido a partir de uma visão tão restrita, tão matematizante, e reducionista da legalidade, foi utilizado de forma oportunista pelos sujeitos históricos daquele grande e trágico momento do século passado.
Enfim, o esgotamento do paradigma de sistema fechado, de matriz more geométrico, no século XX, alcançou seu ápice nos paroxismos teratológicos da estruturação legal e juridicamente organizada do nazi-fascimo, que teve na pessoa de Adolf Einchman[26] a sua caricatura por excelência. Afinal tudo que ele fez foi simplesmente cumprir ordens! E o cumprimento de ordens superiores, fundadas no sistema legal vigente, parecia poder eximi-lo de qualquer conflito de consciência, de qualquer conflito moral, afinal, como diz João Guimarães Rosa,  “é mais fácil obedecer do que entender”.
Em função da inauguração, no âmbito da filosofia da teoria dos sistemas, e de toda a tentativa de superar o dualismo kantiano e moderno entre moralidade/eticidade e legalidade, vê –se hoje no âmbito do estudo do direito constitucional todo o esforço do neoconstitucionalismo e do principialismo em ultrapassar os lindes do sistema fechado, para se restaurar de forma original e hodierna, a antiga comunicação ontológica entre Ética e Direito .

1. Sistema e etimologia.
A palavra SISTEMA tem sua origem grega na expressão  Sunivsth'mi - Sunístêmi[27] – cujo significado original traz a idéia de colocar de pé ao mesmo tempo um certo conjunto de objetos. O prefixo Sun (leia-se “syn”) é o início de palavras de origem grega tais como simpósio, síntese, sinóptico que trazem, por causa deste mesmo sufixo a idéia de reunião: reunião para beber (simpósio), reunião de idéias (síntese), visão reunida (sinopse). De forma muito elementar a palavra SISTEMA traz a idéia de conjunto de elementos ou partes de uma realidade que se encontram reunidas,  organizadas e articuladas entre si de forma recíproca; sendo que cada uma das partes do sistema adquire função, significado e relevância a partir mesmo de sua posição e inter-relação recíproca com as outras partes do conjunto. Isto significa que os elementos que compõem um sistema não estão apenas justapostos um após o outro, mas estão articulados às vezes de maneira superficial, às vezes de maneira visceral e fundante, dependendo apenas da função desta ou daquela parte do sistema no interior do mesmo conjunto. Entre os elementos do conjunto há uma relação de interdependência circular e radial. E ao mesmo tempo um sistema pode ser considerado dinâmico ou estático.
2. Teoria dos sistemas[28]
A teoria dos sistemas pertence ao vocabulário filosófico do século XX. Ela surgiu após o fim da Primeira Guerra Mundial, mas foi apenas nos anos da década de 1970 que ela se consagrou como teoria. Sua origem mais remota é o seio  das ciências matemáticas, mas ela ultrapassou os limites da matemática e desenvolveu-se profundamente no campo da biologia. Uma teoria do sistema se esforça por estabelecer um quadro, o mais geral possível, no interior do qual se possa estudar o comportamento de uma entidade complexa, bem como de uma série de entidades conectadas com a entidade principal.
Neste sentido seria possível afirmar que o sistema jurídico, ao menos dentro dos quadros da teoria jurídica ocidental teria como núcleo principal uma constituição. A constituição como tal não seria o sistema mas o seu núcleo. A partir deste núcleo, tal qual um grande “sistema nervoso”, se estendem todas suas ramificações que alcançam toda (ou quase toda) a tessitura da vida humana individual e social. A figura do sistema nervoso, cuja principal característica é a sua capilaridade é muito mais próxima do que realmente é o Direito do que a simplória figura kelseniana da pirâmide. A representação piramidal traz uma camada intermediária que parece separar sua ponta de sua base. A figura de um sistema complexo, tal como a do sistema nervoso alcançando todos os membros de um indivíduo vivo é muito mais eficaz para se compreender e se representar o fenômeno jurídico.
De qualquer forma, a teoria do sistema indica que é absolutamente necessário que exista uma certa correspondência entre o sistema (enquanto constructo representativo e operativo de um determinado objeto representado) e  o tipo de objeto que se quer  estudar.
A mesma teoria dos sistemas apresenta como forma de classificação as seguintes modalidades de sistemas: sistemas fechados e sistemas abertos. Os sistemas fechados são aqueles de matriz exclusivamente matemática, que representam partes mais simples da realidade  e com maior possibilidade de abstrativização. Como exemplo é possível citar os aspectos da realidade que para serem operacionalizados de forma abstrata basta que existam mecanismos de quantificação. Quando o problema é apenas quantificar objetos, sistemas matemáticos são, na maioria das vezes suficientes para representar tal realidade de forma adequada, bem como é possível conseguir realizar previsões precisas.
Mas quando se trata de representar forças físicas (na maioria dos casos os sistemas fechados ainda dão conta deste desafio), relações entre forças, decisões de agrupamentos humanos, as variáveis começam a se multiplicar e o grau de precisão começa a cair, pois, um instrumental teórico fechado, não consegue representar adequadamente as múltiplas variações possíveis decorrentes da liberdade e  do livre arbítrio do ser humano vivendo em sociedade. Este é  o caso do Direito, que ao tentar regular as mais variadas possibilidades da vida humana se vê profundamente restrito quando resolve adotar um tipo de teorização com pressupostos análogos àqueles próprios de um sistema fechado.
Ora, um sistema aberto, tem como pressuposto a inter-relação do objeto de estudo com o meio ambiente. Um ser vivo qualquer que exista, por mais simples que pareça, pela própria condição de ser “vivo” interage profundamente com o seu meio ambiente[29], seja porque ele precisa nutrir-se, seja porque ele precisa eliminar dejetos; ele pode ser a presa de algum tipo de predador, ou ainda, ele mesmo é um predador de outras espécies, e às vezes até mesmo da própria espécie,  e com isso a complexidade de um determinado sistema sai do patamar da representação linear, mecânica e quantificadora para um tipo de representação que precisa articular inúmeras variáveis qualitativas (às vezes não quantificáveis), sem as quais qualquer tipo de teoria não tem como deixar de se constituir como um reducionismo grosseiro.
Desta forma, uma teoria geral do sistema deve ser considerada  como  uma ciência geral da totalidade, que parte do pressuposto de que o seu domínio de aplicação deve ser em primeiro lugar um objeto de demasiada complexidade, que pode ser formado por outros sub-conjuntos também complexos, ligados entre si e ligados ao objeto principal. Ora tais características se encaixam perfeitamente no horizonte da Teoria Geral do Direito.
Outra característica do sistema, é que enquanto sistema ele deve possuir um grau de complexidade maior do que a complexidade de suas partes:  e isto impede que um sistema qualquer seja reduzido a qualquer de suas partes. Juridicamente falando seria impossível identificar o sistema jurídico brasileiro com a Constituição de 1988. Da mesma forma que seria impossível reduzir o mesmo sistema jurídico a um ordenamento regido exclusivamente pelo Novo Código Civil.
Segundo Jean Ladrière as principais características de um sistema são aquelas que decorrem de seu comportamento histórico-evolutivo. “L’evolution d’um système est composée à la fois des variations internes au système et des interactions externes qui viennent s’ajouter aux premières” (tradução livre: A evolução de um sistema é composta por sua vez, pelas variações internas ao próprio sistema e pelas interações externas que se agregam às primeiras)[30]. No curso de sua evolução, o sistema pode conservar uma certa estabilidade se ele conseguir preservar suas principais características ainda que ele sofra modificações internas ou ataques externos decorrentes de sua interação com o meio ambiente. Neste sentido é muito fácil perceber que a Constituição de 1988 vem sendo modificada ininterruptamente desde sua promulgação, todavia o grau de modificações internas não foi causa de sua ruína. Ao mesmo tempo ela sofre influência da realidade social, das crises mundiais, da produção jurídica internacional. Ou seja, o sistema jurídico brasileiro não é algo aprisionado no interior de uma redoma axiomática ou matemática, indiferente a tudo aquilo que ocorre no seu exterior.
O sistema jurídico nacional, tal como um ser vivo cresce com a produção legislativa do poder respectivo, vive alterações “hormonais” em função da maturidade alcançada e é suscetível de vir a ser sensivelmente alterado pela ratificação de tratados internacionais que podem até mesmo ser incorporados como normas de estatura constitucional.
Portanto, é muito interessante como a substituição do conceito de sistema axiomático (fechado) por um conceito de sistema aberto, que permite representar o ordenamento jurídico não como um mecanismo, mas como um organismo vivo, que interage com o seu entorno, que cresce, que se alimenta, que apodrece, que troca de folhas, que troca de pele, que elimina detritos e dejetos, é muito mais promissora do que a forma moderna de compreensão do sistema jurídico como um sistema enclausurado pelos seus próprios axiomas pré-estabelecidos:
“Ainsi, par exemple, la physique conventionnelle ne s’ocupe que des systèmes fermés, c’est-à-dire qui sont consideres comme isolés de leur environnement; par contre, les sciences humaines étudient des systèmes ouverts, parce qu’elles sont liés à l’homme, qui est essentielement um système ouvert (tradução livre: Assim, por exemplo, a física convencional se ocupa apenas de sistemas fechados que são considerados isolados de seu meio ambiente; em contrapartida, as ciências humanas estudam os sistemas abertos, porque elas são ligadas ao estudo do homem, que é essencialmente um sistema aberto)[31].

De alguma forma, uma abordagem da atual constituição brasileira a partir de uma epistemologia kelseniana é de uma impropriedade epistemológica naïf, ou ainda de forma metafórica e musical, como diria a música do Sítio do Picapau Amarelo: “marmelada de goiaba, goiabada de marmelo”. As coisas estão sendo misturadas. Pressupostos ultrapassados estão muitas vezes sendo utilizados para explicar outra realidade. É como muitas vezes, ingenuamente, muitos de nós falamos:  “O Sol acabou de nascer”, desprezando tudo que a atual astronomia já nos ensinou durante os duzentos últimos anos: “Não é o Sol que nasce, é a Terra que gira”. Mas de qualquer forma, a vida ordinária nos permite estas liberdades lingüísticas. Sobretudo porque o discurso do mundo da vida não precisa do rigor da ciência.
No entanto, tais liberdades não são possíveis no âmbito do tratamento teórico de qualquer domínio científico. E no Direito, menos ainda se deve permitir esta miscelânea ou esta bagunça epistemológica, pois em muitos casos o que se tem em jogo não são opiniões, mas bens e direitos dos cidadãos. O tratamento rigoroso de algo que seja objeto de estudo deve ser marcado pelo rigor intelectual e epistemológico, sem que seja permitida a mistura de pressupostos distintos, pertencentes e oriundos de paradigmas epistemológicos diferentes, com valores diferentes, escopos distintos, raízes oriundas de épocas também distintas.
Portanto, uma vez que a teoria jurídica contemporânea se mostrou permeável às conquistas filosóficas do século XX e trouxe para dentro de si muitas das novas idéias que flexibilizaram e abriram o mundo da teoria do conhecimento para além do restrito horizonte da matemática, é necessário que isto seja amplamente explicitado para que ocorra uma efetiva transfiguração de um Direito que cresce em terrenos epistemologicamente mais ricos e profícuos.
Muito bem. Na tentativa de superar os lindes de uma universalidade hipotético-dedutiva, fechada, que mantinha dentro de seus limites os elementos constitutivos do Direito, por sua vez, isolados do mundo da vida, do mundo da moralidade, da justiça e tentava tratar os conflitos de forma estritamente técnica e quase asséptica a epistemologia  enriqueceu-se com a compreensão de que o ordenamento jurídico pode se constituir como um sistema aberto, autorizando desta forma sua aproximação com outros campos das ciências humanas.
E de forma muitíssimo pertinente, tal abertura permitiu que o Direito se aproximasse de uma das ciências mais importantes do amplo feixe das ciências humanas: a Antropologia Filosófica. E da Antropologia Filosófica o Direito absorveu a noção de dignidade da Pessoa humana. É disso que trataremos no capítulo quarto. Mas antes de passarmos para o capítulo quarto, no capítulo terceiro pretendemos aprofundar a idéia de sistema a partir de dois conceitos fundamentais: o conceito de via compositionis  e o conceito de via resolutionis .
O estudo destes dois conceitos indicará as duas direções  por meio das quais se pode compreender um sistema como tal.  Este é o tema do  capítulo seguinte.



Capítulo Terceiro
A via compositionis  e a via resolutionis : direito positivo e direito natural

Via compositionis  e Via resolutionis  são duas expressões retiradas do vocabulário filosófico e apontam para duas formas distintas de se abordar um determinado constructo teórico.
De forma bem simples, quase simplória é possível dizer que são duas faces da mesma moeda, ou ainda são duas posições possíveis para se observar o mesmo sistema teórico, ou um mesmo ordenamento jurídico.
Tecnicamente, a primeira expressão indica a inteligibilidade para-nós do discurso, e a segunda designa a inteligibilidade em-si do discurso filosófico.
Um sistema qualquer pode ser observado a partir da via compositionis, que é a via ou o caminho de sua composição, o caminho de sua construção, é a direção didática e teórica de apresentação de um sistema qualquer. À primeira forma de se abordar um sistema, geralmente está associada uma perspectiva histórica. Seja um sistema filosófico, seja um sistema jurídico, a partir da chamada via compositionis  se pode percorrer cada uma das etapas de construção lógica, ou mesmo cada uma das etapas históricas de desenvolvimento de um ou outro constructo sistemático jurídico, filosófico, científico.
Para se ter uma visão compreensiva do ordenamento jurídico brasileiro é necessário se compreender um pouco de história nacional e ver quais foram os momentos históricos mais decisivos e marcantes para a edificação e para a elaboração da cultura jurídica brasileira, que num último momento desaguou na redação da atual Constituição Federal com suas transformações e transfigurações, com suas emendas e com a adesão a novos padrões de compreensão do Direito Constitucional que permitem, por sua vez, o fenômeno da mutação constitucional.
Por outro lado, a partir da via resolutionis  é possível observar todo o ordenamento jurídico nacional a partir de seu topo, a partir da Constituição que não obstante, seja o ponto de chegada da via compositionis , é o ponto de partida da via resolutionis. Ou seja, do topo ou do centro do ordenamento jurídico, onde se coloca a Constituição se pode entender e compreender todo o ordenamento como tal, pois a Carta Magna é a fonte de inteligibilidade de todo o resto do ordenamento: é a clef de voûte, é ao mesmo tempo ponto de chegada e ponto de partida. É o télos, é o fim (enquanto finalidade, objetivo, escopo) jurídico de qualquer ordenamento. Usando a expressão retirada da teoria aristotélica das causas, a Constituição é a CAUSA FINAL de qualquer ordenamento jurídico (a partir da chamada via compositionis)[32]. E por outro lado é o ponto de partida, é a fonte e a matriz de inteligibilidade de todo o ordenamento infra-constituicional. É fonte de inteligibilidade, até mesmo daqueles institutos redigidos antes da própria Constituição e que foram por ela recepcionados. Pelo fato de que a Constituição é ponto de partida (para a via resolutionis ) e ao mesmo tempo ponto de chegada (para a via compositionis ) é possível perceber que no seio desta abordagem do sistema jurídico é possível absorver a idéia filosófica do RETORNO, porque o ponto de partida e o ponto de chegada de alguma forma se tocam e se encontram de forma lógica e de forma dialética. Afinal qualquer ordenamento jurídico, ao longo de sua história, começou a ser construído com dispositivos legais rudimentares e alcançou seu grau máximo de elaboração em algum texto sagrado, de alguma carta superior ou de algum texto constitucional. Por outro lado, aquele antigo dispositivo, rudimentar, primígeno, quase ancestral (não matar, não pegar as coisas dos outros), hoje só pode ser compreendido a partir da sua absorção pelo constructo maior que é a Constituição como tal.
Com isto é possível afirmar que um sistema pode apresentar um duplo roteiro de leitura: o roteiro da via compositionis ou o roteiro da via resolutionis.
O fundamento teórico destas duas possibilidades de leitura  e de compreensão do sistema tem sua origem numa  terminologia aristotélica presente nas Analíticas Segundas (I, 71 b 34 – 72 a 5) onde Aristóteles faz a distinção entre o percurso ascendente da inteligibilidade para-nós (prós hemãs) e o percurso descendente da  inteligibilidade em-si  (aplôs)[33], que indica o retorno aos passos já percorridos:
"... o  percurso ascendente explicita uma inteligibilidade para-nós, ou seja, para o sujeito que se afirma como ser ao percorrer os estágios sucessivos da sua auto-compreensão como corpo, psiquismo e como espírito; o percurso descendente, ou o retorno aos passos já percorridos, explicita a inteligibilidade  em-si, ou seja,  do sujeito que se constitui na sua unidade a partir do seu núcleo ontológico mais profundo que é o espírito"[34].

O filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz afirma que a terminologia fixada para indicar estas direções de leitura do sistema é de origem aristotélico-tomista. Todavia é possível afirmar que esta opção metodológica também tem uma filiação platônica e hegeliana. No seu artigo sobre A Dialética das Idéias no Sofista[35], Lima Vaz apresenta as noções platônicas de symploké (sunplokhv) e diaíresis (diaivresi"), que indicam, respectivamente, a direção ascendente e a direção descendente do discurso sobre as idéias. E que nesta seção podem corresponder à via compositionis, direção para-nós, e à via resolutionis direção em-si.
Quadro  – Symploké e Diaíresis


Symploké – (sunplokhv)
Diaíresis  – (diaivresi")

Direção ascendente
Direção descendente
direção para-nós
direção em-si
Via compositionis
Via resolutionis
Constituição das categorias ou constituição do ordenamento jurídico
Fundamentação das categorias ou do fundamentação do ordenamento jurídico



Quando apresenta a dialética das Idéias no texto platônico do Sofista, Lima Vaz afirma que
“Se o logos  se forma em nós através da sunplokhv das Idéias (259e), todas as suas expressões mostram o tipo determinado de relação ideal, que é por isso mesmo, relação real. Ora, a sunplokhv das Idéias (já no-lo ensinara o Fédon) é uma hierarquia ascendente. Só há, pois dois movimentos possíveis para o logos: a descida, que procede de uma Idéia superior, ou seja ‘a divisão’ (diaivresi"); e subida, que vai das Idéias inferiores a uma Idéia superior, ou seja a ‘coleção’ (sunplokhv). E é precisamente como campo deste movimento que Platão descreve, no texto citado [Sofista], o objeto da visão dialética” [36].
Ao tratar das categorias de sua Antropologia Filosófica, Lima Vaz explicita de forma magistral os conceitos de inteligibilidade para-nós (via compositionis) e de inteligibilidade em-si (via resolutionis):
“Essa ordem da inteligibilidade  em-si pode ser lida também inversamente como ordem da inteligibilidade  para-nós (ordem da elaboração do discurso dialético), segundo um silogismo no qual a particularidade da  estrutura psicossomática é mediatizada pelo sujeito singular e é suprassumida na universalidade do espírito segundo a fórmula (P-S-U). Assim, está fechado o círculo dialético: do espírito ao corpo (inteligibilidade  em-si) e do corpo ao espírito (inteligibilidade  para-nós). No entanto, a circularidade dialética só é possível porque o espírito, estando presente ao fim do percurso, está presente no seu início pela função mediadora do sujeito que se exerce no esquema da categoria (N) -> (S) -> (F), nele referindo o  eidos ou forma à  amplitude transcendental do ser (princípio da ilimitação tética), o que implica, no nível do espírito, a identidade (real no espírito infinito, intencional no espírito finito) da Natureza e da Forma sendo ambas, por sua vez, idênticas, real ou intencionalmente, ao Sujeito como mediação. Assim, também na filosofia, o espírito dá necessariamente testemunho ao espírito ou ‘o espírito é para o espírito’”[37].
Esta postura metodológica para se abordar um sistema é perfeitamente possível de ser adotada para se compreender um determinado sistema jurídico, vem a ser um ordenamento jurídico qualquer.
“...essa trajetória é percorrida nos dois sentidos, pois o movimento primordial de subida ao inteligível reverte, na atividade normal do conhecimento ao seu ponto de partida no sensível, a fim de  que se complete o ciclo do processo cognoscitivo, e o conhecimento humano possa ser um conhecimento real do mundo exterior”[38].
"Tendo, pois, dado os seus primeiros passos no terreno da  experiência do  ethos, o  discurso da Ética filosófica leva finalmente a seu termo o  pensamento do ethos: unde est orsa in eodem terminetur oratio[39]. Estamos, pois, em presença de um círculo  do discurso evocando a imagem clássica com a qual foi representada a natureza do pensamento dialético. Essa metáfora geométrica, no entanto, não deve induzir-nos em erro. Com efeito, o círculo  dialético não é o simples prolongamento de uma  linha que se fecha sobre si mesma retornando ao ponto de partida. O círculo geométrico, no qual todos os pontos são indiferentemente eqüidistantes do centro pode ser dito de uma  tautologia espacial.  Interpretado literalmente segundo a imagem do círculo geométrico, o círculo dialético não seria senão uma tautologia lógica. Mas a metáfora  geométrica do círculo serve, na verdade, apenas como imagem apta a representar a completude do movimento dialético enquanto expressão lógica do processo de constituição inteligível de  uma determinada realidade. Nesse sentido o movimento dialético não avança através da repetição dos mesmos momentos como os pontos no círculo geométrico, mas pela negação ou suprassunção (Aufhebung), que, ao mesmo tempo, nega e conserva cada momento no momento posterior. Desta sorte o termo do movimento se define como restituição da singularidade de cada momento na unidade de um  todo logicamente organizado, no qual o  princípio, inicialmente apenas dado, se reencontra como  fim, pensado na sua estrutura inteligível"[40].
Esta visão de Lima Vaz a respeito da sua idéia de retorno ou do círculo dialético, que se faz presente em no seio de um sistema, e aqui se ousa dizer, que se faz presente em todo o seu pensamento filosófico, está em consonância com a idéia hegeliana do “círculo que se fecha sobre si mesmo”.
"Cada uma das partes da filosofia é um Todo filosófico, um círculo que se fecha sobre si mesmo mas a idéia filosófica está ali em uma particular determinidade ou elemento. O círculo singular, por ser em si totalidade, rompe também a barreira de seu elemento e funda uma esfera ulterior. Por conseguinte, o todo se apresenta como um círculo  de círculos, cada um dos quais é um momento necessário, de modo que o sistema de seus elementos próprios constitui a idéia completa, que igualmente aparece em cada elemento singular"[41].
É possível completar o quadro  acima com os seguintes dados: a. a via compositionis pode ser caracterizada como a via ascensus, ou como via sintética que determina o ritmo dialético de expansão; b. a via resolutionis pode ser caracterizada como a via descensus, ou como via analítica que determina o ritmo dialético de reflexão.
Via compositionis
Via resolutionis
via ascensus
via descensus
via sintética
via analítica
ritmo dialético de expansão
ritmo dialético de reflexão

A partir desta perspectiva, pode-se afirmar que muitas vezes estudiosos diferentes olham para o mesmo sistema jurídico a partir de lugares diferentes.
Em geral, o juspositivista freqüenta o ordenamento jurídico a partir da perspectiva permitida pela direção da construção do sistema, a partir da perspectiva da via compositionis. Perdendo a perspectiva de que a inteligibilidade decorre do ponto mais alto do sistema, e que cada instituto jurídico deve ser coerente com a norma mais importante do ordenamento, com sua Constituição. O positivista não percebe que o sentido do sistema, não obstante ele seja construído e posto,  só é alcançado no fim do percurso.
E o jusnaturalista, em geral tem sua abordagem jusfilosófica do alto do sistema, perdendo a noção histórico-temporal da construção do edifício jurídico, muitas vezes, acreditando que  o sistema como tal é uma obra que nasceu completa e acabada, revelada pela vontade da Divina Providência ou mesmo deduzida matemática e logicamente dos atributos universais do Cogito, da Razão humana, por excelência.
Por isso, o jusfilósofo não percebe que a natureza histórica da construção do sistema permitiu que cada um fincasse suas raízes em sua posição e não percebe que jusnaturalismo e juspositivismo podem ser considerados  dois pontos de vista diferentes de um mesmo objeto.
Portanto, a exposição de que um sistema científico, jurídico, filosófico, pode ser demonstrado a partir de duas grandes direções, mostra que tais perspectivas são complementares e podem não ter  nada de excludentes entre si.
Desta forma seria possível substituir a representação piramidal de Kelsen, por uma representação, ainda que geométrica, um pouco mais sofisticada e dinâmica que seria a figura hegeliana do círculo dos círculos.
Assim cada uma das camadas da pirâmide seria substituída por um círculo concêntrico.  A camada mais baixa da pirâmide é o primeiro dos círculos (o mais exterior) que permite, funda e sustenta o desenho do segundo círculo (da segunda camada) que por sua vez, juntamente com o primeiro apontam para o terceiro círculo que se configura ao mesmo tempo como o último círculo e como o círculo dos círculos, vem a ser, a norma constitucional. Esta, por sua vez, (na direção invertida) possibilita o desenho dos dois primeiros círculos, pois é o seu centro que se apresenta como centro dos círculos externos. Do ponto de vista metodológico, nosso roteiro de criação de um ordenamento jurídico procede inicialmente seguindo a chamada via compositionis: parte da elaboração dos mais rudimentares dispositivos legais para se alcançar estruturas jurídicas de magnitudes e envergaduras amplas o suficiente para fornecer ordem, simetria, inteligibilidade e fundamentação para todo o ordenamento.
“Ao termo do percurso, novamente nos encontramos no princípio, obedecendo a uma modalidade da via resolutionis,  que é, ao mesmo tempo, a instauração de uma totalidade de estrutura dialética"[42].
"Na terminologia medieval, a  via compositionis  ou sintética procede do simples ao complexo, ao passo que a  via resolutionis  ou analítica caminha do complexo ao simples. Esses paradigmas metodológicos foram codificados por Aristóteles, cujos textos a respeito foram comentados por Tomás de Aquino (Expositio super librum Boethii de Trinitate, q. VI, art.1.) O método normal da metafísica, segundo Aristóteles e Tomás de Aquino, segue a via resolutionis,  vindo a metafísica (filosofia primeira ou teologia) após a física. Cremos, no entanto, que o uso da  via compositionis  em chave dialética, como aqui propomos, está de acordo com a estrutura teórica da metafísica tomásica do esse"[43].

Para dar mais visibilidade ao tema das duas direções do sistema, o gráfico seguinte ilustra a diferença entre as duas formas possíveis de se percorrer um determinado sistema, sendo que no caso específico o gráfico esquematiza o sistema do próprio filósofo citado, elaborado pelo próprio autor desta monografia por ocasião de sua tese de doutorado

Portanto, a partir de um determinado sistema é possível encontrar a presença de dois roteiros de leitura, marcados pelo movimento da circularidade lógico-dialética. Um deles percorre uma ordem, ou uma direção de inteligibilidade para-nós, à medida que parte da manifestação mais elementar do ser do objeto em questão, e avança
"em direção à unidade final da complexidade ontológica que se desdobra desde aquele momento inicial. Ora, a essa unidade final aparece seja como a suprassunção de toda a série das categorias, seja como a síntese entre a essência  e a  existência ou entre o ser que é e o ser que se torna ele mesmo (ipse) pela realização ativa  in actu secundo  ou o  perfectum, do que ele é  in actu primo ou o  perficiendum"[44].
Esta é a forma através da qual Lima Vaz organiza a redação e constituição do seu próprio sistema filosófico. No entanto, sua obra e a Filosofia como tal, também podem ser compreendidas a partir de outra perspectiva, ou a partir de outra direção, inversa à ordem mesma de leitura para-nós, mas que completa e dá o acabamento final à compreensão do sistema visto a partir do seu termo, em palavras muitos simples, visto a partir de cima.
Uma compreensão sistemática e com pretensões teóricas mais ousadas deveria inserir o fenômeno do Direito, no interior de uma compreensão do fenômeno humano, a saber, no seio de uma Antropologia Filosófica que ao desdobrar-se em suas respectivas categorias colocasse a Ética e o Direito no espaço da categoria de intersubjetividade[45]. E considerando que ao tratar de uma opção jusfilosófica que trouxe para si a noção de Pessoa (por meio do princípio da dignidade da Pessoa humana) a categoria que fornece o ponto de partida, a partir da direção  em-si, ou a partir da  via resolutionis,  é a categoria de Pessoa, ou Pessoa Moral, que conceitualmente exigirá no plano de uma fundamentação metafísica as  categorias de  ordem e finalidade[46].
"A metafísica do esse na esfera dos  esse finitos apresenta aqui uma estrutura taxiológica  e teleológica que convergem para o Princípio donde partiu o itinerário, ou seja, o  Esse subsistente na sua absoluta transcendência e na sua radical imanência no cerne dos seres finitos, o seu  esse (In Im Sent., d. 14, q.2, a.2). O fundamento da ordem e da finalidade em cada ser finito é o princípio intrínseco que o constitui como tal, a  essência. Por sua vez, o ato da essência, a  forma, é o princípio de  distinção no ser, tornando-o receptivo do  esse (Summa Theol., Ia., q. 76 a. 7, c.). Por conseguinte, a unidade da ordem, e a finalidade que lhe é inerente, compõem-se com a pluralidade das  formas  nos seres distintos, segundo uma escala  de perfeições. Desenha-se aqui, portanto, a participação  vertical na perfeição absoluta do Primeiro Princípio (C.Gentiles III,c.97) [47]".
Mas apresentar a possibilidade de um viés metafísico para um sistema jurídico que se articule com uma Antropologia Filosófica e com uma Ética é ir longe demais num trabalho de pós-graduação. Afinal o interesse deste trabalho circunscreve-se à articulação da superação do paradigma do sistema fechado, com a teoria dos sistemas e a absorção da noção de dignidade da pessoa humana.
Quadro  – Síntese dos dois roteiros de leitura do sistema
Via compositionis
Via resolutionis
via ascensus – ordo cognoscendi
via descensus – ordo essendi
via sintética
via analítica
ritmo dialético de expansão
ritmo dialético de reflexão
Subida – do sensível para o inteligível
Descida – do inteligível para o sensível

Symploké – (sunplokhv)
Diaíresis  – (diaivresi")

Direção ascendente
Direção descendente
direção para-nós
direção em-si
Visão do juspositivista
Visão do jusnaturalista
Constituição das categorias ou constituição do ordenamento jurídico
Fundamentação das categorias ou do fundamentação do ordenamento jurídico
PONTO DE PARTIDA: de baixo para cima:
dispositivos jurídicos mais elementares, leis superiores na hierarquia do ordenamento jurídico, Constituição, categoria antropológica de Pessoa (categoria teológica de Pessoa)
PONTO DE PARTIDA: de cima para baixo:
(categoria teológica de Pessoa), categoria antropológica de Pessoa, Constituição, leis superiores na hierarquia do ordenamento jurídico, dispositivos jurídicos mais elementares,
PONTO DE CHEGADA:
Considerado juridicamente: A Constituição
Considerado filosoficamente: A Pessoa
PONTO DE CHEGADA:
A vertebração e a amarração do sistema jurídico.
Ordem de construção e composição do ordenamento.
Ordem de fundamentação lógica, jurídica e filosófica do ordenamento.
Do simples ao complexo
Do complexo ao simples
Das idéias inferiores às idéias superiores.
Das idéias superiores às idéias inferiores.
Abordagem cuja predominância é marcada pelo MÉTODO
Abordagem cuja predominância é marcada pelo SISTEMA



Capítulo Quarto
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A famosa expressão kantiana de que a Pessoa não é meio, mas fim é o estuário de toda uma tradição antropológica que teve como base a história do cristianismo e a especulação sobre a doutrina teológica da Santíssima Trindade, que entende que Deus é Pessoa Una e ao mesmo tempo é Pai, Filho e Espírito Santo, Pessoa Trina. O esforço especulativo para justificar teoricamente este paradoxo teológico da identidade de três pessoas divinas, que se constituem como um Único Deus provocou o desenvolvimento e a valorização da noção de Pessoa, como sendo o atributo por excelência da Divindade, bem como o atributo por excelência do próprio ser humano que participa da mesma condição de ‘ser pessoa’.
É óbvio que aqui também não será o lugar de expor qualquer coisa que seja sobre a teologia da Trindade. Pois para as dimensões deste trabalho o necessário e o suficiente é apenas que se saiba da existência da matriz teológica da noção de Pessoa.
Em função de sua riqueza conceitual, a categoria de pessoa desceu da Teologia, penetrou no espaço conceitual da Antropologia Filosófica e se colocou como o ponto de chegada e o ponto de partida desta ciência. Só há o discurso antropológico porque alguém reflete sobre isto. E aquele que reflete sobre o fenômeno humano ao mesmo tempo se entende como pessoa. Portanto, ser pessoa é condição de possibilidade para a Antropologia, ao mesmo tempo que é o ponto de chegada de toda a reflexão antropológica.
Mas a partir de uma visão sistemática, a Antropologia se desdobra em categorias de estrutura (o ser humano é seu corpo, seu psiquismo e seu intelecto), em categorias de relação (objetividade, intersubjetividade e transcendência) e em categorias de unidade (realização e pessoa)[48]. No nível da categoria de intersubjetividade ocorre a articulação da Antropologia (como ciência do homem) com a Ética (como ciência do agir humano). É portanto, no plano da intersubjetividade que o teórico se encontra com as ciências da Ética,  da Sociologia, da Política e do Direito, entre outras. Sendo que a Ética se constitui como a ciência mais ampla e abrangente entre todas aquelas que estudam o fenômeno da intersubjetividade. A Ética, por sua vez, desdobra-se em várias outras categorias, entre as quais a mais importante é justamente aquela categoria análoga à categoria antropológica de Pessoa, a saber, a categoria ética de Pessoa Moral.
Portanto, na tradicional reflexão ética e antropológica, as categorias que dão o fechamento conceitual a tais discursos são respectivamente as categorias de Pessoa Moral e de Pessoa.
Caso, se pretenda articular Antropologia, Ética e Metafísica, o fechamento deste último discurso filosófico se dará com a categoria de Absoluto, vem a ser com a categoria de Pessoa Divina. Mas tal como já foi dito, os limites deste trabalho não permitem que este plano de reflexão seja alcançado. Afinal a única pretensão deste último capítulo é demonstrar como a categoria de Pessoa (seja como categoria antropológica, seja como categoria ética, seja como categoria metafísica) se coloca como o conceito final não só destas três disciplinas filosóficas (Antropologia, Ética e Metafísica), mas se coloca como o conceito fundante do próprio Direito justamente porque é o conceito fundante daquelas outras ciências sociais.
Portanto, a reflexão jurídica atual, que chama  para si o princípio da dignidade da pessoa humana e que ao mesmo tempo busca  uma articulação coerente e sistemática, sem enclausurar o sistema em axiomas de matriz geometrizante articula-se com vários ramos do saber, que no paradigma kelseniano, foram expulsos do espaço jurídico de reflexão.

Desta forma é possível dizer que o TÉLOS do Direito como fenômeno da vida real é a Pessoa (independentemente de a pessoa concreta ser ou não cidadão; o problema da cidadania é outra questão). E o TÉLOS do Direito como ciência, como domínio epistemológico é a categoria de Pessoa Moral desenvolvida sobretudo na Ética, como aprofundamento da categoria antropológica de Pessoa.
Ao tratar da Dialética como método de elaboração do discurso filosófico é possível dizer que o aspecto teleológico da dialética é responsável por uma das características mais importantes de um sistema, a saber, a inter-relação entre todas as partes do sistema. Pois o sistema, como tal, é constituído por um conjunto de partes que se encontram intimamente relacionadas, ao mesmo tempo que se referem a uma parte considerada mais importante que as outras. Portanto, o aspecto teleológico do sistema pode ser visto como o elemento estruturante responsável pela interação dos elementos que constituem o próprio sistema. Mutatis mutandis, é possível dizer o mesmo a respeito da categoria de Pessoa, pois tal categoria é responsável por uma das características mais importantes de um sistema antropológico-ético-jurídico, a saber a inter-relação entre todas as partes do sistema. Ou seja, é a categoria de Pessoa que permite a intercomunicação entre todos estes círculos conceituais: o círculo da Antropologia, o círculo da Ética, o círculo do Direito. De forma figurativa é possível dizer que tais ciências são círculos concêntricos, cujo centro comum é justamente a categoria de Pessoa.  Assim, o sistema, como tal, é constituído por um conjunto de partes que se articulam por meio da categoria de Pessoa. Desta forma todas as categorias antropológicas, éticas, jurídicas e metafísicas possíveis de serem elaboradas, referem-se umas às outras ao mesmo tempo em que todas se referem à categoria de Pessoa. Assim, o aspecto teleológico do sistema, orientado pela categoria de Pessoa pode ser visto como o elemento estruturante responsável pela interação dos elementos que constituem o próprio sistema.

O aspecto metafísico da categoria de pessoa
"O retorno do discurso (antropológico) sobre si mesmo ao alcançar a categoria de pessoa mostra as peculiaridades da sua estrutura dialética no âmbito dessa categoria. O princípio da limitação eidética, aplicando-se aqui ao eidos total do ser-homem, definido pela sucessão das categorias, configura esse eidos como a resposta adequada à amplitude da pergunta ‘o que é o homem?’ Em virtude desse princípio, o discurso se autolimita, tendo encontrado seu termo na categoria de pessoa e permitindo a dupla leitura da inteligibilidade  para-nós (sucessão das categorias) e da inteligibilidade em-si (fundamentação última das categorias). Ao mesmo tempo, em virtude do princípio da ilimitação tética, ao afirmar o seu ser como pessoa, estabelecendo entre os dois termos uma equação ontológica, o sujeito rompe a limitação eidética da sua finitude e da sua situação, abrindo-se à infinito intencional  do ser e tende a orientar o dinamismo mais profundo da sua autorealização, o alvo da união final, pela contemplação e pelo amor, com a infinitude real do Existente absoluto (ipsum Esse subsistens)"[49].

A categoria de Pessoa totaliza o discurso antropológico e faz do homem uma unitas oppsitorum, a unidade mais perfeita que pode ser concebida. O homem, por um  lado, é a unidade do ser que subsiste  em si mesmo pela reflexão  sobre si mesmo. Mas por outro lado, ele realiza a unidade dos extremos opostos alcançados pela experiência humana e que também coincidem com as últimas fronteiras do ser: a matéria e o Absoluto[50].
"Ao totalizar o discurso antropológico, a categoria de pessoa não somente mostra o homem aberto à universalidade do ser a partir da particularidade da sua situação corporal no aqui e agora do mundo. Mostra-o outrosssim, como lugar inteligível (tópos noétós) na concretude da sua singularidade, onde se entrecruzam as linhas que procedem de todas as regiões do ser: do sensível e do inteligível, do contingente e  do necessário, do possível e do atual, do relativo e do absoluto e, finalmente do universo e de Deus"[51].

Esta altitude inteligível do discurso antropológico, na síntese da categoria de pessoa, permite a compreensão e a leitura da seriação das categorias segundo a ordo cognoscendi, isto é o sentido para-nós, ou via compositionis ,  e segundo a ordo essendi, isto é o sentido em-si, ou via resolutionis . Como conseqüência destas duas possibilidades de leitura da Antropologia Filosófica é possível organizar a compreensão do homem como pessoa segundo um movimento de ascensão, via ascensus, e segundo um movimento de descida, (via descensus).
“A continuidade desses dois movimentos e a identidade do terminus ad quem  da ascensão e do terminus a quo da descida, ambos sendo constituídos pela mesma categoria de pessoa, mostra-nos, por um lado, a identidade do Eu – sua unidade profunda ou sua ipseidade – na diferença das suas manifestações que se ordenam como formas da sua auto-expressão, ou seja formas de expressão do mesmo (autós), finalmente identificadas na categoria de  pessoa[52].

Pessoa moral




Algo análogo ocorre com a Ética, pois o sujeito moral é pessoa moral que compartilha das mesmas prerrogativas da categoria antropológica de pessoa e que possui como condição de possibilidade do discurso exatamente a posição fundante e originária do Absoluto.

"A concepção de pessoa moral que aqui apresentamos não é senão a interpretação ética da categoria de pessoa que foi exposta em nossa Antropologia Filosófica. (...) O processo de personalização envolve a totalidade do nosso ser, do corpo próprio ao espírito e todas as modalidades de nosso abrir-se à realidade exterior, do mundo à transcendência. Ora esse processo é constitutivamente ético  e todo o nosso ser inscreve sua gênese e sua história no destino de uma  pessoa moral[53].

Estas linhas fundamentais da reflexão ética e antropológica  tem como inspiração os paradigmas platônico e aristotélico, segundo os quais se pressupõe uma relação constitutiva do ser humano a uma instância racional, em si mesma trans-histórica, mas normativa de todo o agir histórico: “a instância de um Bem transcendente”[54]. Segundo Lima Vaz, esta instância permanece como um invariante conceptual na variação de toda a tradição ocidental.
"A afirmação do Bem como princípio do ser e do ser conhecido (ratio essendi e ratio cognoscendi) da práxis humana é, como mostrou Aristóteles, o princípio de uma ciência da práxis (a Ética), revelando-se também, por sua natureza, uma ciência prática. Uma ciência que discorra sobre o que é o Bem (em si mesmo, em cada um de nós e na comunidade humana) e, ao mesmo tempo, nos ensine como tornar-nos bons (Ét. Nic, II, 2, 1103 b 26-28). Mas a utilidade da Ética como ciência prática (ou pragmática, como se costuma dizer hoje) decorre de sua fundamentação numa ciência da prática ou num discurso ordenadamente conduzido sobre estrutras inteligíveis subjacentes ao operar da razão que conduz a práxis, ou seja, da Razão prática em sua ordenação necessária ao Bem. Apresentar uma versão, entre outras possíveis, desse discurso, tal nosso escopo nessa Introdução à Ética Filosófica. Estamos convencidos de que a prática ética só pode ser justificada em razão por uma ciência da prática, que tenha como princípio e fundamento uma metafísica do Bem: (...) não há Ética sem metafísica"[55].

O discurso metafísico já tem seu início com a questão do Absoluto. Mas ele também apresenta uma evolução e uma seriação de categorias que parte da pré-compreensão do Absoluto, e culmina na demonstração da sua existência e na demonstração de sua natureza[56]. Tanto o discurso antropológico, quanto ético e metafísico, em última análise, têm como condição de possibilidade do discurso a presença do Absoluto no dinamismo intelectual do ser humano: a pré-compreensão do Absoluto. Todavia o trabalho de constituição das categorias ou de redação do discurso filosófico, na antropologia e na ética, não é iniciado com o tema da posição do Absoluto. É necessário acompanhar todo o desdobramento do conceito para se alcançar a intelecção da presença do Absoluto como termo do discurso e intui-lo como presença necessária para a possibilidade mesma do início do próprio discurso filosófico. Já a Metafísica é iniciada de forma explícita pela tematização da presença do Absoluto no dinamismo intelectual do ser humano.

O discurso metafísico manifesta a sua estrutura circular dialética, pois o conhecimento do Absoluto no fim reflui sobre o princípio para assegurar a definitiva fundamentação especulativa da pré-compreensão do Absoluto que torna possível o mesmo discurso. Este ‘refluxo’ ocorre na antropologia, na ética e na metafísica, quando definitivamente se dá o encerramento do círculo dos círculos e a configuração final do sistema.
Portanto, a categoria de pessoa, tal como ela é pensada, em sua origem (na antropologia personalista cristã), se reporta diretamente à categoria de Absoluto, categoria metafísica, cuja categoria teológica correspondente é a idéia de Deus, de onde (ou de Quem) procede a carga valorativa que fundamenta a idéia de que a pessoa nunca pode ser meio nem instrumento de coisa alguma, mas apenas Fim, justamente por ser portadora da prerrogativa da dignidade.



Conclusão
No início deste trabalho nos propusemos a estabelecer o paralelo entre três grandes temas da reflexão jurídica atual e sua matriz filosófica, sem contudo deixar de estabelecer as profundas relações que tais temas possuem entre si:
A cisão entre Ética e Direito  
e o pós-positivismo como superação da ruptura moderna entre Ética e Direito
A superação do paradigma more geometrico de um sistema fechado
com a assunção do conceito de sistema aberto, oriundo das teorias do sistema e da biologia
finalmente o princípio da dignidade da pessoa humana
oriundo das antropologias personalistas de matriz cristã.

Portanto, o itinerário deste trabalho teve a pretensão de apresentar as raízes filosóficas de três tópicos centrais da reflexão jurídica atual, no sentido de aprofundar a compreensão destes temas, bem como inter-relacioná-los entre si.
Em linhas gerais, apresentamos no primeiro capítulo como na grecidade clássica, vem a ser na antiguidade de Platão e Aristóteles, se dava a relação entre Direito e Ética, justamente em função de um  horizonte epistemológico marcado pelo paradigma ontológico. Em seguida demonstramos que, com o advento da modernidade, deu-se a ruptura entre Ética e Direito , porque se impôs um horizonte epistemológico de caráter hipotético-dedutivo marcado pelo ideal reducionista de geometrização da realidade, de sucesso indiscutível no campo da Física newtoniana, que foi transcrito e codificado para os campos de todas as outras ciências. Assim, o sistema fechado da física tornou-se o paradigma epistemológico predominante e hegemônico. E tal paradigma passou a ser copiado e imitado no campo de todas as outras ciências. Tal pretensão alcançou sua formulação jurídica mais bem acabada no sistema kelseniano (influenciado por Kant, que por sua vez foi influenciado por Issac Newton)[57].
A defesa positivista dos militares do regime nacional-socialista em Nuremberg e a defesa positivista de Einchman foi apenas a “ponta do iceberg” que serviu de caricatura de um sistema jurídico fechado, geometrizado e destituído de qualquer referência a qualquer tipo de Antropologia Filosófica.
Nada, absolutamente nada na natureza, no mundo em que vivemos pode ser completamente abstrativizado e devidamente representado por meio de um sistema fechado. Apenas eventos muito simples da natureza, restritos a alguns campos da Física conseguem êxito (parcial) num esquema de representação more geometrico capaz de fazer previsões precisas. Ou seja, mesmo no campo da física há objetos de pesquisa que não se adequam a teorias científicas cujo paradigma epistemológico seja fechado. Ora, se isto não é possível com a física que estuda a matéria, estável, rotineira, simples e monótona, como se pode querer que paradigmas epistemológicos simples, matematizados, more geometricos, consigam fazer o mesmo com o campo do direito que trata de seres vivos, inteligentes, autoconscientes, complexos,  imprevisíveis, vivendo em sociedade às vezes de forma pacífica e às vezes de forma conflitiva? Impossível.
Em Matemática, alguns conjuntos de proposições simples, organizados na forma de sistema, ou de paradigmas epistemológicos, que conseguem representar parcelas restritas da realidade, ao se depararem com realidades mais complexas geram certos paradoxos que denunciam  a fraqueza do sistema para alcançar aquela parte da realidade, que justamente por causa de sua complexidade, transborda os lindes do sistema, desafiando-o de forma letal e  gerando contradições que só podem ser resolvidas com a superação do paradigma.
Um sistema jurídico que busque extirpar de seu arcabouço conceitual aspectos fundamentais da condição humana em muito pouco tempo provocará a emergência de paradoxos e de contradições que chegarão aos tribunais e que se forem resolvidos dentro do próprio sistema certamente implicarão na efetivação de alguma decisão injusta, mas como o problema da justiça e da injustiça não se coloca dentro de um sistema geometrizado, falar de justiça e injustiça seria uma espécie impertinência lógica, ou mesmo de algo desprovido de qualquer sentido[58].
Caso a gravidade destes paradoxos não tivesse conduzido os homens a episódios como os de Nuremberg e o do julgamento de Einchman, conhecidos no mundo inteiro, pode ser que  esta tentativa de superação ainda fosse algo longe de ser realizado.
Todavia, o fato é que a história demonstrou a fragilidade da adoção de um sistema jurídico que repudia o que há de mais humano na própria condição humana, sua essência moral, sua sede por justiça, vingança, beleza, criatividade. Tentar se livrar disto é algo semelhante ao que representa o dito popular: “junto com a água suja do banho, também se jogou fora a criança!”. E com isto os teóricos que assistiram as atrocidades históricas do breve século XX perceberam a necessidade premente de trazer novamente para dentro da teoria jurídica elementos epistemológicos que permitissem a construção de um sistema aberto, o que se tornou oportuno com a emergência das teorias do sistema e a adesão da biologia à idéia de sistema aberto.
Quase que de forma caricatural, a Biologia está mais próxima do Direito do que a Física. Afinal não há organização social das pedras. Mas há organização social no mundo dos seres vivos. Portanto um modelo teórico que sirva para explicar o mundo da vida, o mundo biológico, está mais próximo do Direito do que os modelos teóricos da Física. Afinal, só há Direito onde há seres humanos (vivos) vivendo em sociedade.
Em função disto foi historicamente oportuna a assunção da teoria dos sistemas pelo pensamento jurídico, pois isto serviu para denunciar a fragilidade dos sistemas fechados de matriz kelseniana.
E isto também serviu para mostrar o óbvio: o direito e a ciência do Direito são fenômenos humanos. Portanto, a partir da condição de que se adote um sistema teórico marcado pela sua abertura é perfeitamente possível (senão necessário) dirigir o olhar para aquilo que diga o que significa ser um ‘ser humano’.
E para seguir neste desafio o mundo jurídico ocidental apontou sua visão para a Antropologia Filosófica. E mais especificamente para as antropologias filosóficas de matriz personalista, que são aquelas oriundas da reflexão filosófica e teológica das academias cristãs.
No panorama da Filosofia contemporânea, há uma fragmentação do saber[59], do saber filosófico, do saber jurídico e como não podia deixar de ser há também uma fragmentação das próprias antropologias: dentre as várias que podemos enumerar vale destacar as antropologias existenciais, as antropologias materialistas, a concepção do homem como ser pluriversal (Paul Ricouer e André Jacob) e finalmente as antropologias personalistas.
A reflexão jusfilosófica vem insistindo na relevância da noção de dignidade da pessoa humana. E não há como discutir que tal conceito é oriundo da matriz antropológica personalista, que por sua vez, indiscutivelmente procede das discussões teológicas sobre as Pessoas Divinas da Trindade Cristã.
Numa síntese absolutamente simplista, a famosa frase de que o homem é feito “à imagem e semelhança de Deus”, decorre, conceitualmente do fato de que Deus é Pessoa (Infinita, Transcendente), e o ser humano, à semelhança de Deus também é pessoa (Finita) que participa da ‘pessoalidade’ divina, pelo fato de partilhar com o próprio Deus o atributo da pessoalidade. E tal participação é dom concedido gratuitamente pelo próprio Deus.
Sendo assim, o ser humano é portador de uma dignidade decorrente de uma certa participação da própria natureza da divindade. O atributo por excelência compartilhado pela Pessoa Divina e pelas pessoas finitas é a autoconsciência. Para as antropologias personalista, tanto Deus, quanto o ser humano existem e sabem que existem, e  por isto sabem que são autoconscientes. Em decorrência disto, o ser que sabe que existe (e é marcado por esta reflexividade ontológica) se entende como sendo um ser LIVRE E INTELIGENTE, ou ainda, em outras palavras, RESPONSÁVEL E CONSCIENTE.
Estas antropologias personalistas compreendem a liberdade e a inteligência como prerrogativas de seres autoconscientes, e como tais só há o ser humano e o próprio de Deus, que seria a inteligência máxima e a liberdade absoluta, que do alto de sua magnanimidade compartilhou com seres finitos e precários aqueles atributos que seriam próprios de sua transcendência infinita.
Em decorrência da presença da autoconsciência, e por conseqüência, das prerrogativas da liberdade e da racionalidade, o ser humano se autocompreende como pessoa, à imagem e semelhança de um deus que também é compreendido como pessoa.
Portanto, o ser humano é detentor de uma dignidade que procede do próprio Criador, e que não pode ser violada pelo arbítrio de outra pessoa finita qualquer, seja tal pessoa compreendida, agora em termos jurídicos, como pessoa física, pessoa jurídica ou mesmo pessoa de direito público.
Como já se disse, é muito difícil desvencilhar a noção de dignidade da pessoa humana da reflexão teológico-cristã, isto significaria  desvencilhar-se de uma tradição duas vezes milenar a partir da qual se erigiu todo o Ocidente.
Então, pode-se considerar que há uma certa coerência no fato de que o Direito tenha tomado como fundamento para a sua sistematização a noção de dignidade da pessoa humana, não obstante tal construção possa ter sido realizada sem que os pressupostos assumidos, fossem tomados de forma totalmente consciente.
E com isto, ao arrepio de muitos juspositivistas, fica muito fácil afirmar que todo o movimento principialista, do pós-positivismo tem um viés jusnaturalista bastante acentuado, não obstante pareça discreto e quase abscôndito.
Contudo, na tentativa de se mitigar o conflito entre positivismo e direito natural, apresentamos a idéia de sistema a partir da teoria dos sistemas e aqueles dois roteiros de leitura do sistema: via compositionis e via resolutionis.
Do alto da categoria antropológica de pessoa, ou até se quisermos, do ápice da categoria de Transcendência (ou categoria teológica de Pessoa Divina), da qual procede a noção antropológica de pessoa finita que por sua vez, vive em sociedade e para tanto cria uma Constituição, Leis Complementares, Leis ordinárias e outros tantos dispositivos... se pode afirmar que o  que vige sem sombra de dúvida, na ordem jurídica atual é uma noção jusnaturalista do Direito.
Mas da mesma forma, é possível perceber a natureza positivista do ordenamento brasileiro (ou dos ordenamentos de matriz romano-germânica) se seguirmos o roteiro da via compositionis que parte da constatação prática de que, de onde há pessoas surge a necessidade de se criar normas simples de convívio social, e em seguida, numa razão diretamente proporcional à complexidade do agrupamento humano, se criam mecanismos jurídicos mais e mais complexos, até que um determinado povo consegue elaborar uma Constituição, e põe no núcleo hermenêutico desta Carta a noção  de Pessoa, portadora de uma dignidade absoluta, porque ser Pessoa é uma atribuição, antes de tudo, do Absoluto.
Da via resolutionis se vê o edifício construído a partir de seu lugar mais alto, e muitas vezes se perde a perspectiva histórica de que todo aquele aparato jurídico levou dezenas, centenas e às vezes milhares de anos para alcançar sua atual configuração.
E da via compositionis, se vê apenas as etapas de construção do edifício e muitas vezes não se alcança a percepção que o valor do edifício está no seu acabamento, no seu topo, de onde se pode ver todo o ordenamento construído.
No fim das contas, estas duas vias se entrecruzam no ponto de partida de uma que é, ao mesmo tempo, o ponto de chegada da outra; e permitem a compreensão de que  o valor da pessoa  decorre antes de tudo, de um ato volitivo daqueles que assim quiseram e optaram por instituir um sistema jurídico com este ou aquele núcleo axiomático.
E por isto o ordenamento jurídico deve ser compreendido a partir de seu núcleo de inteligibilidade que é a categoria de Pessoa, independentemente até mesmo das provas da existência de Deus, e ainda que o ordenamento tenha sido construído a partir de pressupostos teológicos (sempre criados e postos pelos próprios seres humanos criadores prolíficos de tentativas de explicações possíveis sobre do mundo e suas mais variadas e distintas dimensões).
Isto permite a dessacralização dos fundamentos jusnaturalistas do Sistema, vem a ser, uma desteologização do Sistema, para mantê-lo edificado simplesmente sobre pressupostos antropológicos, sem contudo desnaturar seu viés jusnaturalista.
E de forma muito simples, quase prosaica, se poderá dizer que o sistema está amarrado na categoria de pessoa, porque o ser humano quis que assim fosse; porque é fruto de um consenso político que assim seja; é fruto de uma consciência histórica nascida com o Iluminismo do século XVII  e XVIII, de que o homem é autônomo e o centro de inteligibilidade de sua própria realidade.
E desta forma, ousamos, pretensiosamente, afirmar que é possível um entrecruzamento entre as noções de jusnaturalismo e juspositivismo no interior de um sistema jurídico articulado ao redor de um núcleo axiomático de natureza antropológica que pode ser conceitualmente construído como categoria de pessoa. Na forma de se compor o sistema jurídico é possível detectar uma espécie de quiasmo conceitual entre jusnaturalismo e juspositivismo, ao invés de se percebê-los de forma maniqueísta e antagônica.
Para finalizar, em síntese, é possível visualizar um paralelismo fundante e fundamental entre os caminhos percorridos pela filosofia e os caminhos traçados pelo direito.
No seio de qualquer campo do conhecimento há uma fragmentação notória e uma dificuldade tremenda em se tratar qualquer conhecimento que seja elaborado de forma coerente, vem a ser, de forma sistemática. Não obstante tal dificuldade, o anelo humano e a obsessão humana pela coerência, pela ordem e pela simetria fazem com que alguns teóricos tenham o profundo anseio de ter diante de si uma visão orgânica (e não mais mecânica e cartesiana) da realidade e do Direito.
Em vista disto, se tentou com este trabalho analisar o trajeto realizado pelos teóricos do Direito que buscaram superar o positivismo jurídico pela adoção de uma teoria do sistema que tornasse possível a compreensão do sistema como um artefacto conceitual aberto, que não expurguasse a realidade como tal, em sua riqueza mais profícua para que ele, o próprio sistema, possa funcionar abstratamente.  E tal opção teórica desembocou na articulação do pensamento jurídico com a noção de pessoa, gestada pela reflexão clássica e milenar da tradição cristã.
A adoção de sistemas fechados, recentemente inventados, infelizmente justificou episódios históricos lamentáveis, pois  o nazismo e o comunismo soviético tiveram como suporte teórico sistemas conceituais fechados que não permitiam a manifestação da subjetividade e geraram contradições históricas lamentáveis. É lógico que além deste aspecto havia questões de ordem histórica, sociológica, política e econômica que confluíram para o derradeiro resultado assistido pelo breve século XX: a Segunda Guerra Mundial e a queda do Muro de Berlim. E a face jurídica destes dois grandes eventos, certamente foi um positivismo jurídico distorcido, porque levado até suas últimas conseqüências. Sobretudo porque um sistema fechado, unívoco, é perfeito para a justificação de qualquer regime totalitário que não suporte dentro de si idéias complexas e conflituosas. Pretendemos deixar claro que o positivismo jurídico não foi a causa destes eventos históricos. O positivismo foi apenas  a visão jurídica que se acoplou a tais opções políticas, tornando-as possíveis juntamente com todas as outras variantes históricas, políticas, sociais, econômicas, etc. Diante de tal inconveniência e inoportunidade, os teóricos correram atrás de novos modelos que superassem o positivismo e que fossem menos suscetíveis do mesmo tipo de distorção histórica. Como num movimento pendular, os teóricos voltaram para um jusnaturalismo, bem tradicional, e muito bem elaborado, mas não muito explícito. E na tentativa de explicitar tais pressupostos, pensamos que a apresentação do sistema a partir das duas vias, possa de alguma forma mitigar o dualismo entre jusnaturalismo e juspositivismo ao tentar reduzir tal conflito ao problema da falta de percepção de que juspositivistas e jusnaturalistas têm das chamadas via compositionis e via resolutionis, denunciando que ambos estão falando da mesma coisa  a partir de óticas distintas, a partir de lugares diferentes na topologia do sistema jurídico, uma vez que, considerando a idéia filosófica do retorno, tal como a apresentamos acima, o ponto de partida de uma posição no sistema, pode ser o ponto de chegada no mesmo sistema, desde que não se crie a imagem precisamente circular, do eterno retorno, mas que seja possível perceber que o retorno se dá de forma enriquecida pela conquista de um sistema coerente, lógico, eficaz, aberto, com envergadura suficiente para alcançar o máximo da realidade humana, em suas aventuras e em suas vicissitudes.



Monografia exigida para a conclusão do
Curso de Pós-graduação
Lato Sensu
em Direito Público

  
São Paulo
Abril de 2009




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Os textos com asteriscos foram os textos principais utilizados neste trabalho

BOBBIO, N. Thomas Hobbes, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1991, p.31.
BONAVIDES, P. Cursos de Direito Constitucional, São Paulo, Ed. Malheiros, 2006, pp 255-295.
*GIRALDO-RESTREPO, G. Verbete Système (théorie des –s), in Encyclopédie Philosophique Universelle, Les Notions Philosophiques, Dictionnaire, Vol. II, T. II, p.2536. Paris: Press Universitaire de France. 1990. 3300 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Antropologia Filosófica I, Coleção Filosofia – 15, São Paulo: Edições Loyola, 1991, 304 pp.
*LIMA VAZ, H. C. de, Antropologia Filosófica II, Coleção Filosofia – 22, São Paulo: Edições Loyola, 1992, 261 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia I – Problemas de Fronteira, Coleção Filosofia – 3, São Paulo: Edições Loyola, 1986,   310 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia II – Ética e Cultura, Coleção Filosofia – 8,  São Paulo: Edições Loyola, 1988,  295 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia III – Filosofia e Cultura, Coleção Filosofia – 42,  São Paulo: Edições Loyola, 1997,  376 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1, Coleção Filosofia – 47,  São Paulo: Edições Loyola, 1999,  484 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia V – Introdução à Ética Filosófica 2, Coleção Filosofia – 50,  São Paulo: Edições Loyola, 2000,  246 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia VI – Ontologia e História, Coleção Filosofia – 52,  São Paulo: Edições Loyola, 2001,  284 pp. (reedição do Ontologia e História)
LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia VII – Raízes da Modernidade, Coleção Filosofia – 55,  São Paulo: Edições Loyola, 2002,  292 pp.
*LIMA VAZ, H. C. de, Ética e Direito .  Organização e introdução de Cláudia Toledo e Luiz Moreira.  São Paulo: Loyola, 2002,  366 pp.
LIMA VAZ, H. C. de, Experiência Mística e Filosofia na Tradição Ocidental, Coleção CES – 6,  São Paulo: Edições Loyola, 2000,  92 pp.
*LIMA VAZ, H.C. de. Democracia e Dignidade Humana – Revista Síntese Nova Fase, v.15, n.44, Belo Horizonte:  CES / Edições Loyola,1988,  pp.11-25.(artigo)
*LIMA VAZ, H.C. de. Método e Dialética, In: BRITO, Emidio Fontenele de; CHANG, Luiz Harding, (Org.). Filosofia e método. Coleção CES n. 15 – São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 9-17.
LIMA VAZ, H.C. de. Ontologia e  História,   São Paulo:  Duas Cidades,  1968, 340 pp.
*SAMPAIO, Rubens Godoy.  O ser e os outros: um estudo de teoria da intersubjetividade.  São Paulo: UNIMARCO, 2001.  211 p.
*SAMPAIO, Rubens Godoy.  Metafísica e Modernidade: Método e Estrutura, Temas e Sistemas no pensamento de Henrique Cláudio de Lima Vaz. São Paulo: Loyola, 2006.  341 p.




[1] . G.W.F. Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas, §14, v. I, A Ciência da Lógica, São Paulo: Loyola, 1995, p.55. Tradução de Paulo Meneses e José Machado.
[2] . Em breve o Direito será desafiado por problemas, que ainda estão na esfera da mais pura ficção científica, mas que em logo sairão da mais assustadora perplexidade para o horizonte da mais calma das normalidades. Em breve memórias pessoais, íntimas poderão ser registradas em mídia eletrônica e compartilhadas e até mesmo comercializadas. Quem sabe até mesmo poderão ser utilizadas como provas judiciais. O mais renomado neurocientista brasileiro, Miguel Nicolélis já conseguiu gravar os registros cerebrais de um homem andando e conseguiu fazer com que um robô reproduzisse os mesmos movimentos, tal como no filme Matrix.

[3]. Portanto, assim como a geometria é uma construção, também a Ética, o Direito e a Política o são. O exemplo mais claro disto está em Hobbes que elabora uma distinção entre as ciências demonstrativas a priori e as ciências não demonstrativas. As ciências demonstrativas são aquelas “cujos objetos são criados pelo arbítrio do homem. Ora, a geometria é demonstrável porque nós mesmos criamos as figuras, ao passo que a física não é demonstrável, ‘já que as causas das coisas naturais não estão em nosso poder, mas sim da vontade divina’. Como a geometria, também são demonstráveis a Ética e a Política, ‘na medida em que os princípios graças aos quais se conhece o que são o justo e o equânime, e ao inverso, o injusto e o iníquo, ou seja, as causas da justiça, e precisamente a lei e os pactos, foram feitos por nós’(De Homine X, 5)” BOBBIO, N. Thomas Hobbes, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1991, p.31.
[4] . EF V, p.118.
Os textos Antropologia Filosófica I e Antropologia Filosófica II serão  indicados nas notas de rodapé pelas abreviaturas AF I e AF II.  AF I - LIMA VAZ, H. C. de, Antropologia Filosófica I, Coleção Filosofia – 15, São Paulo: Edições Loyola, 1991, 304 pp. AF II - LIMA VAZ, H. C. de, Antropologia Filosófica II, Coleção Filosofia – 22, São Paulo: Edições Loyola, 1992, 261 pp. --- O texto Escritos de Filosofia III – Filosofia e Cultura será indicado  nas notas de rodapé pela abreviatura EF III. EF III - LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia III – Filosofia e Cultura, Coleção Filosofia – 42,  São Paulo: Edições Loyola, 1997,  376 pp. ---Os textos Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1 e Escritos de Filosofia V – Introdução à Ética Filosófica 2 serão indicados   notas de rodapé pelas abreviaturas EF IV e EF V. EF IV – LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1, Coleção Filosofia – 47,  São Paulo: Edições Loyola, 1999,  484 pp. EF V – LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia V – Introdução à Ética Filosófica 2, Coleção Filosofia – 50,  São Paulo: Edições Loyola, 2000,  246 pp.--- O texto Escritos de Filosofia VII – Raízes da Modernidade será indicado nas notas de rodapé pela abreviatura EF VII.  EF VII – LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia VII – Raízes da Modernidade, Coleção Filosofia – 55,  São Paulo: Edições Loyola, 2002,  292 pp.
[5] . EF II, p.147.
[6] . EF II, p.140.
[7] . EF II, p.147.
[8] . EF II, p.148.
[9] . EF II, p.148.
[10] . EF II, p.149.
[11] . EF II, p.148.
[12] . EF II, p.162.
[13] . Os textos Antropologia Filosófica I e Antropologia Filosófica II serão  indicados nas notas de rodapé pelas abreviaturas AF I e AF II.  AF I - LIMA VAZ, H. C. de, Antropologia Filosófica I, Coleção Filosofia – 15, São Paulo: Edições Loyola, 1991, 304 pp. AF II - LIMA VAZ, H. C. de, Antropologia Filosófica II, Coleção Filosofia – 22, São Paulo: Edições Loyola, 1992, 261 pp. --- O texto Escritos de Filosofia III – Filosofia e Cultura será indicado  nas notas de rodapé pela abreviatura EF III. EF III - LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia III – Filosofia e Cultura, Coleção Filosofia – 42,  São Paulo: Edições Loyola, 1997,  376 pp. ---Os textos Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1 e Escritos de Filosofia V – Introdução à Ética Filosófica 2 serão indicados   notas de rodapé pelas abreviaturas EF IV e EF V. EF IV – LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1, Coleção Filosofia – 47,  São Paulo: Edições Loyola, 1999,  484 pp. EF V – LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia V – Introdução à Ética Filosófica 2, Coleção Filosofia – 50,  São Paulo: Edições Loyola, 2000,  246 pp.--- O texto Escritos de Filosofia VII – Raízes da Modernidade será indicado nas notas de rodapé pela abreviatura EF VII.  EF VII – LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia VII – Raízes da Modernidade, Coleção Filosofia – 55,  São Paulo: Edições Loyola, 2002,  292 pp.
[14] . EF II, p.162.
[15] . EF II, p.163.
[16] . EF II, p.163.
[17] . EF II, p.164.
[18] . EF II, p.165.
[19] . EF II, p.171.
[20] . EF II, p.171.
[21] . EF II, p.174.
[22] . EF II, p.178.
[23] . EF II, p.147.
[24] . EF II, p.180.
[25] . Os números no interior das células do quadro indicam as páginas do livro EF II.
[26] . A figura de Einchman inspirou Hannah Arendt a elaborar suas categorias de ‘vazio de pensamento’ e ‘banalidade do mal’ e seu livro Einchman em Jerusalém.  Além disto há dois filmes inspirados na história do mesmo oficial nazista: o primeiro (Einchman in my hands) mais antigo retrata a vida comum de pai de família que Einchman levava em Buenos Aires enquanto os judeus tentavam descobrir onde ele se encontrava e tramavam sua prisão. Este filme termina com a captura de Einchman. O segundo filme, novo e recentemente lançado, chama-se “Solução Final”, pois este era o nome dado à operação de extermínio da comunidade judaica. Esta película começa onde o outro filme terminou: com  a sua prisão. Além disto retrata basicamente os sete meses de inter-rogatórios, nos quais o prisioneiro alegava que não se lembrava dos vários fatos dos quais era acusado, ou mesmo negava tais fatos, sempre protegido pela declaração de que estava cumprindo a lei. Não bastasse tais evidências, ele só pôde ser  efetivamente condenado após certos documentos terem sido encontrados. E tais documentos efetivamente comprovavam a ocorrência de atos de desobediência a ordens de Heinrich Himmler e a realização de crimes por conta própria sem o comando superior. Por incrível que pareça, o próprio julgamento de Einchman seguiu a mesma lógica que possibilitou a sua conduta, pois, enquanto se configurava que ele apenas cumpria ordens, matando milhões de pessoas, não parecia possível condená-lo, por respeito à devida coerência do sistema. No entanto, o julgamento e a condenação só foram possíveis quando foram encontrados documentos que comprovaram uma conduta desobediente de Einchman, que por sua vez, levou à morte algumas centenas de pessoas. Como ele matou pessoas, desobedecendo ordens superiores de Heinrich Himmler, se entendeu que por esta conduta, causa destas mortes, ele deveria responder., por estprocedimento era de sua responsabilidade.
[27] . Sunivsth'mi - Sunístêmi , I tr. – Colocar de pé ao mesmo tempo || constituir, instituir || coligar, congregar (para uma guerra comum || pôr em relação com || compor, criar, produzir || contrair, dobrar, enrugar || fazer compacto, consistente. II intr || manter-se juntos || vir às mãos || fig. Dsputar || ter relações (de família: ser esposo; de amizade, como discípulo, etc) || comprometer-se com, pôr-se de acordo, conjurar-se com || constituir-se, formar-se (pela reunião de muitos), organizar-se || nascer, formar-se || ser consistente, sólido || permanecer, durar || contrair-se, reduzir-se || coagular.

Susthma, ato" - s.n. (sunivsth'mi) || conjunto, total || multidão || corpo de tropas, companhia || conjunto de doutrinas, sistema filosófico.
[28]. GIRALDO-RESTREPO, G. Verbete Système (théorie des –s), in Encyclopédie Philosophique Universelle, Les Notions Philosophiques, Dictionnaire, , Vol. II, T. II, p.2536. Paris.: Press Universitaire de France. 1990. 3300 pp.
[29] . O ser vivo retira sua nutrição do meio ambiente. E no mesmo ambiente ele deposita seus dejetos e detritos.
[30]. GIRALDO-RESTREPO, G. Verbete Système (théorie des –s), in Encyclopédie Philosophique Universelle, Les Notions Philosophiques, Dictionnaire, , Vol. II, T. II, p.2536. Paris.: Press Universitaire de France. 1990. 3300 pp.
[31]. GIRALDO-RESTREPO, G. Verbete Système (théorie des –s), in Encyclopédie Philosophique Universelle, Les Notions Philosophiques, Dictionnaire, , Vol. II, T. II, p.2536. Paris.: Press Universitaire de France. 1990. 3300 pp.
[32] . É possível utilizar a mesma estrutura metafísica utilizada por Aristóteles para explicar a relação do seu Motor imóvel, que move sem ser movido, para explicar a topologia de uma Constituição. Na Metafísica aristotélica, o Motor Imóvel move sem ser movido porque ele atrai todo o universo. Da mesma forma, é possível dizer que a Constituição atrai para si, de forma radial todo o ordenamento jurídico, constituindo-se como o centro gravitacional do sistema, que dá unidade, coerência e concretude a toda a construção jurídica de um estado, porque todo o seu aparato legal deve estar orientado e validado segundo a lógica da Constituição vigente.
[33] . “A essa distinção gnosiológica corresponde o princípio ontológico de origem platônica (ver, por exemplo, República VI, 504 c) que S. Tomás assim enuncia:  perfecta sunt naturaliter imperfectis priora (Summa Theol., Ia, q. 77, a. 4c.)”. AF I, 237, nota 105.   S. Tomás diz que “ A dependência  de uma potência de outra pode-se entender de duas maneiras: primeiro, segundo a ordem da natureza, enquanto as coisas perfeitas são naturalmente anteriores às imperfeitas. Depois, segundo a ordem da geração e do tempo, enquanto o que é imperfeito  evolui para o perfeito”.
[34] . AF I, p.224.
[35] . LIMA VAZ, Escritos de Filosofia VI – Ontologia e História, cap. I – A Dialética das Idéias no Sofista. São Paulo: Loyola. 2001.  p. 40.
[36] . OH, p.40.
[37] . AF I, p.225.
[38] . AF I, p.246.
[39] . Marco Túlio Cícero: “de onde principiou, aí termine o nosso discurso”. Pro M. Marcello Oratio, 9, 11.
[40] . EF V, p.209. Ver as notas 2, 3 e 4 desta mesma página. G.W.F. Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1830), § 15, pp.55-56. São Paulo: Loyola, 1995. Tradução de Paulo Meneses e José Machado. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.IIae., q.2 5 ad 3m.
[41] . HEGEL,  G.W.F., Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1830), § 15, pp.55-56. São Paulo: Loyola, 1995. Tradução de Paulo Meneses e José Machado.
[42] . EF VII, p.95.
[43] . EF VII, p.95. Nota 1.
[44] . AF II, p.190.
[45] . AF II.
[46] . EF VII, p.208. “Ordem e finalidade são noções correlativas. Toda disposição segundo uma determinada ordem tem em vista um  fim, seja estático, como estar disposto em ordem, seja  dinâmico, quando a ordem é condição para a obtenção de um fim”.
[47] . EF VII, p.209.
[48] . SAMPAIO, Rubens Godoy.  O ser e os outros: um estudo de teoria da intersubjetividade.  São Paulo: UNIMARCO, 2001.  211 p.

[49] . AF II, p.226.
[50] . AF II, p.226.
[51] . AF II, p.226.
[52]. AF II, p.227.
[53] . EF V, p.239.
[54] . EF V, p.241.
[55] . EF V, p.242.
[56] . EF III, p.332. Nota 140.
[57] . A ciência do século XIX foi a Física Clássica e seu paradigma impôs-se como o paradigma hegemônico e praticamente todos os ramos do conhecimento nela se inspiraram. No século XX a Biologia tornou-se a Big Science, e seu modelo epistemológico começou a inspirar outras ciências que pretendiam se desvencilhar do esquema duro da Física. No Século XXI, o grande esforço dos epistemólogos há de ser o empenho por resolver um grande dilema no campo das ciências: como criar um paradigma epistemológico próprio para as ciências humanas que ao mesmo tempo consiga superar a profunda fragmentação do campo científico, de modo que os conceitos produzidos não sejam infungíveis ou incomensuráveis entre si. E dentro deste desafio está o problema de se estabelecer um modelo cognitivo que permita abordar a ciência jurídica como ciência sistemática e coerentemente articulada com aqueles domínios epistemológicos de onde ela tira seu fundamento, vem a ser a Filosofia e a Antropologia.
[58][58] . Aliás, um sistema jurídico tal como o kelseniana se erige como o ambiente perfeito para o desenvolvimento e para o crescimento  das famosas categorias apresentadas por Hannah Arendt: a banalidade do mal e o vazio de pensamento.
[59] . AF I, capítulo V.