HISTÓRIA DA ÉTICA E
RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL
alinhamentos, compromisso ético e
parâmetros universais
Categoria: Pós-graduação
RESUMO
Este trabalho situa o
movimento da Responsabilidade Social Empresarial (RSE) no interior de um
contexto histórico e conceitual bastante amplo, a saber, o contexto da História
da Ética enquanto saber específico, cujo objeto de estudo é o ETHOS compreendido
como comportamento humano e abrigo dos
valores das comunidades que se organizam a partir de certos referenciais
axiológicos. Na esteira deste esforço de situar a RSE no contexto da Ética o
primeiro passo é a apresentação dos preliminares semânticos e etimológicos que
estão na origem das palavras ETHOS e ÉTICA. Na seqüência este trabalho apresenta
os sentidos das palavras ÉTICA e MORAL para em seguida fazer um breve histórico
da história da ética cujo evento histórico final e de maior pujança é
exatamente este evento da RSE. Ao discutir as questões relativas à Ética e o Consenso o trabalho apresenta a relevância
do alinhamento dirigido pela ONU e
pelo Global Compact cuja repercussão
nacional é refletida e difundida (de forma muito bem alinhada) através dos Indicadores do Instituto Ethos e da Campanha Nacional pela Cidadania e
Solidariedade através no leitmotiv
NÓS PODEMOS: 8 jeitos de mudar o mundo. A relevância deste alinhamento
vertical e horizontal é aprofundada na discussão sobre Ética e Globalização e encontra
seu termo no momento final em que a RSE é apresentada como o zênite de uma
história de preocupações éticas que tem nada mais nada menos do que 2600 anos.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
A história da ética como ciência do Ethos começou a exatamente 2600 anos
atrás com o início da reflexão filosófica. O primeiro surto de reflexão ética
se deu com a grande tríade ateniense, Sócrates, Platão e Aristóteles. Desde
então toda a reflexão ética teve como locus
de produção e crescimento os espaços da
reflexão filosófica. Até muito pouco tempo atrás, falar sobre ética era uma
prerrogativa acadêmica dos filósofos que freqüentam o ambiente universitário.
No Brasil, mais especificamente, houve
um surto de reflexão que alcançou uma certa ressonância sobretudo por ocasião
do impeachement do Presidente
Fernando Collor de Mello. Neste momento vários círculos começaram a falar sobre
Ética na Política. Todavia, tratou-se
de um fenômeno conjuntural de natureza meteórica.
Hoje assiste-se a um evento histórico
absolutamente sem igual na história de toda a ética enquanto disciplina
filosófica que nasceu no berço da cultura ocidental e cresceu dentro dos
limitados círculos filosóficos da Academia,
dos Mosteiros e das Universidades. Jamais, em momento algum viu-se um tamanho
esforço para tornar princípios éticos parâmetros eficazes de ação para tanta
gente e para tantas instâncias diferentes. Princípios cujas adesões
institucionais e organizacionais têm conseguido promover resultados que trazem algum
tipo de bem-estar e melhoria para a vida da coletividade. Jamais se viu algo
parecido na história da ética e do ocidente. Nem mesmo todo o trabalho
caritativo de assistência social motivado pela religião consegue alcançar as
conquistas de um posicionamento maduro de uma grande corporação que tem
consciência de seu papel e de sua responsabilidade sociais.
Neste trabalho, pretende-se percorrer
de forma sintética as linhas gerais da história da ética para mostrar as raízes
conceptuais mais profundas de todo este esforço intelectual de pensar o futuro
do planeta a partir das matrizes do desenvolvimento sustentável e da responsabilidade
social. Em outras palavras, quer-se demonstrar as raízes éticas deste esforço descomunal que tem buscado dar
efetividade a práticas de sustentabilidade
e de responsabilidade social.
O discurso de envergadura planetária a
respeito da necessidade fundante de uma atitude responsável e sustentável está
ligado a toda uma tradição cultural e conceptual que não surgiu ex abrupto, mas que se constitui como um
dos frutos maduros de dois milênios de um ingente labor intelectual orientado
para responder à pergunta colocada por Sócrates no século V a.C. : Como devemos
viver? Ou como devemos agir?
Na tentativa de responder a estas
perguntas, os mais eminentes filósofos da história do pensamento ocidental realizaram
um esforço que se confundiu com as suas próprias vidas. O esforço de responder
a esta pergunta orientou a vida de grandes personalidades éticas da nossa
história. E o fundador da ética, Sócrates, na tentativa de ensinar aos seus co-cidadãos
o que ele julgava ser o certo e o melhor para a cidade, não vacilou e não
duvidou que o mais certo de tudo seria entregar sua própria vida como aval da
causa à qual ele abraçara: uma cidade justa, orientada pelo bem comum e pela
consciência ética dos cidadãos. Sócrates deu sua vida pela cidade, sobretudo
porque ele conseguiu perceber a importância da cidade para si mesmo. Sócrates
sabia que a cidade tinha feito por ele mais do que qualquer um podia fazer pela
cidade. Portanto, não se lhe colocava como alternativa qualquer conduta que diminuísse o valor da
cidade diante de qualquer outra situação. Com isto ele mostrou aquilo que
alguns anos à frente o próprio Aristóteles afirmaria em sua Ética a Nicômaco: a cidade é anterior ao
cidadão, o bem comum deve preceder as vontades individuais.
Não há começo mais nobre, nem menos trágico,
do que este. A certidão de nascimento da Ciência do Ethos, a Ética, foi
assinada com o sangue de seu fundador, o cidadão mais nobre, da Atenas mais
pujante: Sócrates. Desde então há um caminho de idas e vindas no campo da
reflexão filosófica que aponta exatamente para tudo que se assiste no mundo
todo e mais especificamente no mundo empresarial.
Desta forma, o escopo deste texto
desdobra-se numa tarefa de natureza reflexiva e filosófica que abordará o tema
da responsabilidade social como o tema mais atual e culminante de toda a
história da reflexão ética, cujos epígonos foram nada mais nada menos que
Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes, Spinoza, Kant,
Hegel, Marx, Bentam, Apel, MacIntire, Morin e outros tantos que se esforçaram e
ainda se esforçam por tentar ensinar (socraticamente) ao homem e aos seus
interlocutores como se deve viver ou como se deve agir. No fim da História da
Ética está o instante em que vivemos e que temos o privilégio de testemunhar através
deste trabalho hercúleo de difusão de princípios, indicadores, objetivos, metas
que servem, como uma bússola, para orientar a ação humana sobre a Terra de
forma a garantir a subsistência da própria comunidade humana no seio de um
ambiente habitável e saudável social e economicamente.
Neste sentido, a idéia central deste
texto é suprassumir no plano da reflexão filosófica (pois a reflexão ética é
uma reflexão eminentemente e historicamente de natureza filosófica) todo este
movimento de responsabilidade social que se difunde no seio das organizações e
corporações industriais, comerciais e financeiras, como o ápice de um esforço
ingente de difusão de princípios éticos, que felizmente encontrou adesão e
aderência no horizonte corporativo, vem a ser, por aqueles que são os
verdadeiros responsáveis pela entropia[1]
que pode abalar o delicado equilíbrio da película viva que cobre esta Esfera
Azul, chamada Terra, Nossa Casa.
1. Preliminares Semânticos
No início deste trabalho julga-se
necessário realizar uma apresentação do contorno semântico das palavras ETHOS e
ÉTICA em função da polissemia destas palavras e sobretudo em função da
deterioração semântica da palavra ÉTICA. Afinal é possível ouvir por aí
expressões tais como “a ética dos bandidos”, “a ética das corporações e a moral
dos colaboradores são incompatíveis entre si”, ou ainda “a ética é comunitária
e a moral é individual”.
Portanto para orientar a continuidade
deste trabalho será feito um trabalho cuidadoso de apresentação dos preliminares
semânticos da palavra ETHOS, da qual por sua vez deriva a palavra ÉTICA como
ciência do ETHOS[2], assim
como a palavra FÍSICA é ciência da PHYSIS[3].
A palavra ETHOS é de origem grega. E
sua etimologia é marcada por uma riqueza semântica determinada pelas duas
formas distintas de se escrever a palavra ETHOS na língua grega do tempo de
Platão e Aristóteles e que ainda existem nos dicionários gregos atuais.
Quem disseminou a palavra ÉTICA foi Aristóteles (ethiké - hjtikhv[4]). Ethike é um adjetivo que qualifica um tipo específico de saber, o
saber do Ethos (genitivo objetivo), o
saber que se tem sobre o Ethos. Com o
passar do tempo o adjetivo foi substantivado e passou a designar a Ciência do Ethos. Ethiké,
portanto, deriva da palavra Ethos que
em grego possui duas grafias distintas. A palavra Ethos é uma transliteração de dois vocábulos gregos homófonos, mas
não homógrafos.
A palavra grega iniciada com epsilon (e)[5]
“designa o conjunto de costumes normativos da vida de um grupo social” [6].
A palavra grega iniciada com eta (h) designa
a morada ou o abrigo do animal, ou ainda “refere-se à constância do
comportamento do indivíduo cuja vida é regida pelo ethos-costume”[7].
Significa o “comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos
atos”[8].
No mundo natural, ou no mundo da
physis - fuvsi", os eventos ocorrem segundo uma
necessidade natural o que implica uma repetição de eventos e uma
regularidade que ocorrem sempre[9]
- aeí em grego (aei): uma árvore frutífera sempre dá o mesmo fruto, os animais se
reproduzem e sempre têm filhotes da
mesma espécie. A Natureza apresenta ao homem uma regularidade ‘maiúscula’ ou
‘forte’ que torna possível a vida nas suas condições mínimas de subsistência.
Porque existe esta constância ‘maiúscula’ na natureza, o homem tem segurança de
que pode comer este alimento, de que pode beber este ou aquele líquido. Ele
sabe que se plantar esta ou aquela semente, num determinado prazo ele poderá
colher seus frutos. Sem esta ordem da natureza a vida humana seria impossível e
não haveria conhecimento algum, pois todo conhecimento é conhecimento de uma
ordem ou de uma regularidade.
O homem, enquanto parte da natureza, também está determinado por esta ordem natural das coisas: os filhotes humanos
são sempre humanos. Todos os seres humanos têm a mesma compleição física, todos
são bípedes e falantes. Não há comunidade humana que não seja bípede e falante.
Todavia, no mundo humano há certos eventos que se destacam da necessidade
natural e infringem esta regularidade da
natureza: nem todos os humanos casam, nem todos têm filhos, nem todos são
honestos, nem todos votam nos mesmos políticos, nem todos têm o mesmo padrão
estético etc. Tais eventos não ocorrem sempre
mas freqüentemente ou quase sempre (pollavkh" - pollákis)[10]. As ações humanas têm uma
regularidade, têm uma constância e por isso elas podem ser estudadas. Mas esta
regularidade não é tão dura ou tão forte quanto aquela do mundo natural.
Trata-se de uma regularidade ‘minúscula’ ou ‘fraca’, que torna a vida social
extremamente complexa. A pergunta que pode ser feita é a seguinte: se todos os
filhotes de homem e mulher, são filhotes com as mesmas características físicas,
psíquicas e se desenvolvem mais ou menos da mesma forma (9 meses de gestação; 7
meses: fase de quadrupedia; 12 meses: fase de bipedia; 18-24 meses:
desenvolvimento da fala...), por que todos não agem da mesma forma? Por que uns
são honestos e outros desonestos? Por que uns são violentos e outros tão
fleugmáticos? Por que a ordem da vida comunitária não segue a mesma rigidez das
estruturas físicas e psíquicas do ser humano? A resposta é a seguinte: o homem
é livre! Na vida humana há um gap, há
um espaço para a autodeterminação, para a liberdade. Enfim, a palavra Ethos (com epsilon) refere-se a esta regularidade (minúscula) da vida humana
na sua dimensão social e comunitária, que, todavia não é uma regularidade necessária tal como a
ordem e a regularidade própria dos eventos naturais. Trata-se de uma constância
no agir que se contrapõe ao impulso ou ao instinto.
“Essa
constância do ethos como disposição permanente é a manifestação e como que o
vinco profundo do ethos como costume,
seu fortalecimento e o relevo dado às suas peculiaridades. O modo de agir do
indivíduo, expressão da sua personalidade ética, deverá induzir, finalmente, a
articulação entre o ethos como
caráter e o ethos como hábito”[11].
É possível dizer que, num primeiro
sentido, o Ethos designa o processo
genético do hábito ou da disposição habitual para agir de uma certa maneira, de
forma a atingir o hábito como possessão estável.
A segunda acepção da palavra Ethos[12] tem sua grafia marcada
pela diferença da inicial eta - h[qo"
- e designa a morada do homem e do animal em geral, o abrigo do animal. Em
última análise significa dizer que o homem mora dentro de seu hábito, dentro de
seus costumes. Daí a grafia comum de hábito e habitat. O hábito e os costumes (o Ethos) são a morada do homem. Moramos, residimos no abrigo de nossos hábitos. Também
é possível dizer que o ser humano veste seu hábito (não obstante, o “hábito não
faça o monge”).
“É, pois,
a realidade histórico-social dos costumes e a presença no comportamento dos
indivíduos que é designada pelas duas grafias do termo ethos. Nesse seu uso, que
irá prevalecer na linguagem filosófica, ethos (eta)
é a transposição metafórica da significação original com que o vocábulo é
empregado na língua grega usual e que denota a morada, covil ou abrigo dos
animais, donde o termo moderno de
Etologia ou estudo do comportamento animal”[13].
Esta morada não é dada ao homem, mas
construída. O ser humano cria seus hábitos e costumes e vive dentro deles, pois
tal situação lhe dá segurança e estabilidade, para que não seja necessário
reinventar-se a cada amanhecer. Com isto há mais tempo para criar, inventar e
se realizar de várias outras formas possíveis.
“O homem
habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do ethos. Este sentido de um lugar de estada permanente e habitual, de
um abrigo protetor, constitui a raiz semântica que dá origem à significação do ethos como costume, esquema praxeológico
durável, estilo de vida e ação. A metáfora da morada e do abrigo indica
justamente que, a partir do ethos, o
espaço do mundo torna-se habitável para o homem. O domínio da physis (natureza) ou o reino da
necessidade é rompido pela abertura do espaço humano do ethos no qual irão inscrever-se os costumes, os hábitos, as normas
e os interditos , os valores e as ações”[14].
Este espaço do ethos nunca está construído de forma definitiva e acabada. E tal
inacabamento essencial “é o signo de uma presença a um tempo próxima e
infinitamente distante, e que Platão designou como a presença exigente do Bem,
que está além de todo ser ou para além do que se mostra acabado e completo”[15].
Na confluência dos significados destas
duas palavras e[qo" e h[qo", costume e morada,
respectivamente, se alcança a riqueza
semântica da palavra Ethos da qual
deriva a palavra ÉTICA, compreendida como substantivo que designa um tipo de
ciência, ou um tipo de conhecimento cujo objeto é o próprio Ethos. A Ética é a ciência do Ethos, compreendido como “processo
genético do hábito”, ou ainda como disposição habitual para agir de uma maneira
condizente com os princípios que tornam a vida humana (em sociedade) factível
de ser realizada na direção de um horizonte que lhe permita a possibilidade de
ser vivida em plenitude, ao lado de outros sujeitos que também compartilham da
mesma pretensão de se realizarem da forma mais plena possível.
Partindo destas considerações
etimológicas de alcance ético-filosófico é possível vislumbrar de forma muito
nítida o alinhamento conceptual existente entre o significado da palavra Ethos, a importância de uma ciência que
estude certos invariantes da conduta humana e toda a produção intelectual e
todo o resultado prático do movimento corporativo que incorpora os princípios e
os indicadores da responsabilidade social empresarial (Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio, Compact Global, Campanha Nacional pela Cidadania e
Solidariedade - Oito Jeitos de Mudar o Mundo -, Indicadores do Instituto
Ethos).
A assunção de princípios ou
indicadores que desenhem o perfil do comportamento de uma corporação diante do
seu público interno, diante da comunidade em que ela se encontra inserida,
diante do meio ambiente... faz com que esta ou aquela corporação esteja
construindo o seu ETHOS. A adesão a valores irrenunciáveis faz com que a
empresa edifique o seu abrigo, a sua morada que lhe protegerá das investidas
das intempéries da natureza ao mesmo tempo que lhe dará segurança a respeito
das opções éticas tomadas e assumidas por toda a organização.
Do ponto de vista semântico há uma
transposição metafórica que transcreve a significação stricto sensu da palavra Ethos
para o mundo humano dos costumes. Esta transposição do gênio grego revela uma
intuição profunda a respeito da natureza e das condições do agir humano, ao
qual “ficam confiadas a edificação e a preservação de nossa verdadeira
residência no mundo como seres inteligentes e livres: a morada do ethos cuja destruição significaria o fim
de todo sentido para a vida propriamente humana”.[16]
2. Ética e Moral
Nesta breve seção se deseja apenas
apresentar a sinonímia existente entre as palavras Ética e Moral, para que
se evitem certos desencontros e confusões conceptuais que tendem a diferenciar
um conceito de outro gerando mais equívocos do que soluções.
Em última análise as diferenças entre
estas duas palavras se devem unicamente às suas raízes e seus troncos lingüísticos.
A palavra ÉTICA tem sua raiz no
grego. A palavra MORAL tem sua raiz
no latim.
MORAL é tradução de moralis, cuja raiz é o substantivo mos (mores)
cujo correspondente grego é ethos. Mos (mores),
por sua vez, é a tradução latina da
palavra grega ethos. A palavra moralis tornou-se a tradução usual da
palavra grega ethiké. Portanto, a
palavra MORAL, em português, não é outra coisa senão a tradução de MORALIS (latim), que por sua vez é a
tradução de ETHIKÉ (grego). Do ponto
de vista etimológico e semântico MORAL
e ÉTICA são palavras sinônimas seja
como substantivo, seja como adjetivo.
A evolução semântica destas palavras
não indicou nenhuma diferença significativa entre as duas expressões. Ambas se
referem ao mesmo objeto: o “costume socialmente considerado ou o hábito do
indivíduo de agir segundo o costume estabelecido e legitimado socialmente”[17].
Todavia, muito recentemente surgiu uma
tendência em atribuir significados diferentes a estas palavras. A Ética passou a referir-se ao estudo do agir humano considerado na sua
perspectiva social, apontando para a
realidade histórica e social dos costumes. A Moral começou a designar o estudo do agir humano considerado a
partir da perspectiva do indivíduo,
privilegiando a subjetividade do agir. Não obstante esta recente diferenciação,
este texto utilizará a palavra Ética e
a palavra Moral como expressões sinônimas
que designam um “saber elaborado segundo regras ou segundo uma lógica peculiar”;
um saber que se constitui como Ciência do Ethos.
Portanto, o ponto fulcral do que se
coloca neste trabalho e neste exato instante é o seguinte: não obstante a ausência de uma necessidade dura e
inexorável no agir humano é possível detectar a presença de certos invariantes
e de certas constantes que indicam uma
certa regularidade no agir humano considerado socialmente (eticamente) ou
individualmente (moralmente) e que portanto permite a constituição de uma Ciência
do Ethos. Em outras palavras, o agir humano possui uma inteligibilidade
intrínseca que pode ser alcançada com o instrumento conceptual adequado. E
que em decorrência de sua cognoscibilidade permite ao próprio homem interferir
neste mesmo agir a partir da previsibilidade intrínseca a todo evento marcado
ontologicamente por uma ordem e por um grau qualquer de constância e
estabilidade. É possível compreender o agir humano seja na sua dimensão
individual (estrutura subjetiva do agir ético e da vida ética) seja na sua
dimensão social (estrutura intersubjetiva do agir ético e da vida ética). E se
é possível compreendê-lo é também possível interferir nas ações humanas de
forma previsível e racional.
3. Origens históricas da Ética
A Ética nasceu no seio de um movimento
intelectual agitado pelas intempéries da crise que subjugara a cidade mais
pujante de todas as cidades-estados da Grécia Antiga: a cidade de Atenas.
A
Ética e sua importância para uma determinada
civilização ou sociedade sempre vêm à tona em momentos de crise de
valores, de desorientação e de perplexidade dos homens que se encontram no meio
do turbilhão provocado pela crise mesma. E foi neste contexto que ela nasceu:
no coração de uma crise. A Ética, enquanto ciência do ethos,
surge na Grécia Antiga, justamente num momento de crise extrema, como se verá logo
adiante.
A Ética, enquanto ciência do ethos surgiu com Sócrates,
Platão e Aristóteles,
num entrecruzamento histórico muito bem definido e muito bem localizado no
tempo e no espaço: num momento de crise da sociedade grega quando, ao mesmo
tempo, ocorre o nascimento da filosofia através da passagem do discurso mítico
para o discurso do lógos (lovgo").
A Filosofia não nasceu em Atenas. Ela
surgiu nas colônias de Mileto e mais especificamente com o gênio de Tales de
Mileto, em Mileto. Muito cedo a Filosofia alcança a capital através de
Anaxágoras e finalmente através de Sócrates. A história denuncia que as alturas
especulativas atingidas pelos intelectuais de uma época são diretamente
proporcionais à magnitude da crise em que sua sociedade se encontra. A Atenas
de Sócrates foi a cidade de Temístocles e Péricles, os maiores generais daquela
época que levaram aquela cidade-Estado ao zênite cultural, econômico, social,
militar e político. Todavia, alcançar a maior altura possível de uma curva de
desenvolvimento (seja ele qual for) significa que o momento seguinte só pode
ser, na melhor das hipóteses de estabilidade, ou ainda que o momento ulterior
será de um declínio inexorável. Infelizmente vários fatores históricos, sociais
e políticos conduziram a cidade de Atenas a um declínio vertiginoso
testemunhado por Sócrates, Platão e Aristóteles. E estes três gigantes com o intuito de acudir Atenas neste momento
de declínio conseguiram indicar e tematizar os tópicos mais relevantes de toda
a história da Ética e da Política, sem os quais hoje não se faria a ciência da
Ética com a qualidade e com a sofisticação com que é feita. Contudo, todo o esforço intelectual realizado nestes
momentos de crise só é alcançado por uma minoria de leitores e intelectuais que
têm acesso a este tipo de conhecimento e que fazem parte do círculo de
profissionais que debatem questões desta natureza.
Não obstante Sócrates ensinasse nas
ruas e as escolas de Platão e Aristóteles fossem escolas abertas, o acesso a
este tipo de saber ainda era restrito a uma elite que sabia ler e que era
constituída apenas por cidadãos natos. As mulheres não tinham cidadania, e os
escravos, as crianças e os metecos, muito menos.
Com o correr dos séculos uma
característica da Filosofia e da Ética, enquanto conhecimento filosófico, foi
sem dúvida alguma o seu confinamento aos muros das escolas filosóficas, dos
mosteiros medievais, das catedrais e universidades modernas e das universidades
contemporâneas.
Todavia o que se vê hoje é a
transformação de uma série de ardentes questões éticas em indicadores que
servem de norte para orientar a ação das empresas, de seus stakehoders e de todas as organizações e indivíduos entrelaçados na
cadeia produtiva de uma empresa qualquer. Todo o saber que estava confinado nas torres de
cristais das universidades encontrou uma forma de escoamento que deu à reflexão
ética uma capilaridade e uma efetividade jamais testemunhadas por qualquer
filósofo que já tenha existido. E todo este escoamento e esta capilaridade
alcançada pela reflexão ética tem sido realizada através da difusão do conceito de Responsabilidade
Social Empresarial[18].
Nos fundamentos de toda esta reflexão há pressupostos epistemológicos,
filosóficos e éticos que não estão explícitos (mesmo porque não precisam ser
explicitados a todo momento), mas que permitem a realização de uma proposta
sólida que por sua vez possibilite a construção de um Ethos universal que garanta a possibilidade da permanência do homem
no interior da Biosfera.
O
retorno aos gregos[19] faz perceber que a crise ateniense foi
decorrente do confronto da cultura grega com outras civilizações, outros
costumes, outras religiões. Tal encontro provocou um relativismo de todo o
horizonte simbólico grego, e conseqüentemente uma crítica dos seus próprios
valores. O contato com povos diferentes provocou uma reflexão (retorno) sobre a própria situação e originou uma crise de
valores que encontrou na expressão de Protágoras a síntese mais clara e radical daquela crise
de valores: "o homem é medida de todas as coisas, das que são para que sejam e das que não são
para que não sejam", o que em última análise significa que tudo é
verdadeiro. A proposição de que tudo é verdadeiro, própria do âmbito
gnoseológico, encontra no espaço do agir humano, no âmbito praxeológico, sua
melhor tradução na posição de Ivan, o
Karamazóv intelectual do romance de Dostoiévsk:
Tudo é permitido.
Por
outro lado, neste mesmo momento histórico de crise política, há a eclosão de um
movimento de reflexão – a filosofia - que irá fazer a passagem do ‘discurso
mítico sobre a realidade’ para o
discurso racional, lógico, ou mais propriamente filosófico da explicação do
real, através de proposições que, em 1º lugar, prescindem do recurso a imagens
e fabulações próprias do discurso mítico, em 2º lugar que buscam a origem de
todas as coisas e, em 3º lugar, que pressupõem a unidade de tudo o que existe.
Daí a profundidade e originalidade da primeira proposição filosófica posta por
Tales de Mileto:
Tudo é água. A filosofia é inaugurada
como um discurso pretensioso e oni-abrangente que busca a compreensão da
natureza como um todo, na sua amplitude e envergadura máximas.
Todavia
a chegada de Sócrates no cenário do pensamento grego provoca na filosofia uma
inflexão antropológica que dá origem a um novo tipo de discurso filosófico
focado não mais nas questões da natureza, mas focado nas questões éticas e
políticas do mundo humano. Tal inflexão decorre da percepção socrática do abandono
dos valores tradicionais da sociedade ateniense. O filósofo está espantado com
a corrosão e a deterioração dos valores que organizavam e dirigiam a vida dos
gregos. Esta estupefação provoca a comunidade pensante a se utilizar do
instrumento da razão (a recém-nascida filosofia) para estudar o problema da
virtude e da justiça na cidade, ocorrendo pois o nascimento da Ética, como o discurso racional que se debruça sobre o
comportamento humano para estudá-lo e mostrar ao homem quais são as virtudes
que devem organizar e reger a sua vida em direção ao Bem Absoluto.
A
aula inaugural da Ética como discurso sobre o Ethos é o chamado intelectualismo
socrático. Para Sócrates o mais fundamental era que os homens soubessem o que eram as virtudes (a justiça,
a coragem, a prudência, a temperança...). Pois conhecendo-as, o homem se
tornaria virtuoso. Para Sócrates a condição necessária e suficiente para o
homem tornar-se bom era conhecer o
bem. O jovem que soubesse o que era a coragem não tinha como não se tornar
corajoso. O intelectualismo de Sócrates orienta a sua ação na cidade. E no
seu encontro com os jovens, ele busca ensiná-los a conhecer as virtudes para
que sejam bons cidadãos e para que a cidade seja um lugar onde reine a justiça
e a eqüidade.
Platão,
discípulo de Sócrates, propõe seu ideal
do Justo na sua República (Politeiva).
Mas é com Aristóteles, aluno de Platão, e no seu texto Ética a Nicômaco, que a Ética encontra a sua forma mais orgânica e
sistemática e surge e se estabelece como ciência
do ethos.
Sócrates, Platão e Aristóteles têm
pensamentos diferentes a respeito da natureza e da constituição do próprio
saber ético. Todavia, os três eram unânimes em postular a referência necessária
a uma instância transcendente na qual encontravam-se todos os fundamentos da
consciência e da ação humana: o BEM
transcendente, o Absoluto como Deus. Foi esta característica que permitiu o
casamento entre o cristianismo e a filosofia, pois ambos referiam-se a
dimensões de natureza transcendente e absolutas.
Com o advento do Cristianismo e a
apropriação que esta religião fez da Filosofia a reflexão Ética não saiu de sua
rota. Os pensadores cristãos se mantiveram firme na posição de que todo valor e
todo bem emana e se irradia do próprio Deus, fonte de existência de tudo que
existe e fonte por excelência dos valores que devem orientar a vida de cada um ser
humano[20].
No entanto, a Modernidade solapou os
pressupostos ontológicos e metafísicos do pensamento clássico greco-cristão e
deixou de assumir de forma ingênua a pressuposição de que o conhecimento de
todo e qualquer bem depende de uma fonte externa ao homem e portanto
heterônoma.
Gradualmente o eixo da reflexão ética
acompanha toda a revolução copernicana da filosofia, no sentido de que os
fundamentos da Ética deixam de estar centrados na figura do próprio Deus, para
centrar- se na capacidade humana de conhecer e construir as estruturas do seu
próprio conhecimento. Os modernos postularam que o homem não conhece as coisas
tirando da realidade um véu que encobre seus segredos. O conhecimento humano é
edificado sobre princípios epistemológicos e gnoseológicos postulados e
(insistimos) não revelados.
O evento central deste momento
histórico é a Revolução Científica que determinará de forma absoluta todo o
roteiro da filosofia e das ciências a partir da publicação do livro De Revolutionibus de Nicolau Copérnico,
em 1543. Os filósofos da natureza
(Kepler, Ticho Brahe, Galileu, Isaac Newton), os racionalistas (Descartes,
Malebranche, Spinoza e Leibniz), os empiristas (Hobbes, Locke, Berkeley e Hume)
e Kant desenharam um rumo diferente para toda a vida humana, desde os seus dias
até os anos inaugurais deste novo milênio.
E o resultado da filosofia moderna foi
a valorização do indivíduo e de sua autonomia ética que, por sua vez, rechaça,
repudia e nega toda e qualquer referência a uma instância transcendente (Deus)
como fonte de valor para a conduta humana.
A partir de então o homem tomou em
suas mãos a bússola para orientar o seu caminho. Todavia o Norte que polariza a
bússola foi negado e ignorado, pois deixamos de admitir a existência de um pólo
(externo) que “norteasse” a nossa vida. E finalmente desmagnetizamos o ponteiro
da bússola para que pudéssemos apontá-lo
para onde bem quiséssemos.
Nos dias de hoje, o maior desafio que
se coloca aos intelectuais que produzem conhecimento na área da Ética repousa
sobre o seguinte paradoxo: é a primeira vez que o homem pode dizer que ele se
encontra no interior de uma sociedade global, ou de uma civilização universal
que tende a uma certa homogeneização e ‘pasteurização’ cultural. Todavia esta é
a primeira civilização destituída de padrões éticos universais que orientem a
prática e a ação humanas. Este é o grande drama ético contemporâneo: uma
civilização universal sem valores universais!
O mais espantoso é que, mutatis mutandis, desde seu nascimento,
o desafio da Ética tem sido o mesmo: como apresentar ao ser humano a
possibilidade de que ele pode conhecer valores universais que orientem sua
prática e sua ação no mundo? Hoje este desafio atinge seu grau máximo de
dificuldade, pois ao mesmo tempo que se assiste a configuração de um mundo
global, as diferenças entre culturas apresentam seu relevo particular e não se
sentem à vontade com a universalização de certos padrões ocidentais. Afinal
tudo que possibilitou a chamada globalização foram postulados que nasceram e se
desenvolveram no seio da civilização ocidental
e que permitiram a invenção da tecnologia tal como ela existe hoje. Mas
há elementos culturais muito específicos que são refratários a certos aspectos
da globalização.
4. Ética e Consenso
Como nossa bússola está desmagnetizada
e ela não aponta mais para direção nenhuma (afinal nós passamos a execrar toda
orientação previamente instituída, extrínseca à nossa subjetividade) restou-nos
apenas duas alternativas: uma saída individual e uma saída social.
Por um lado a alternativa da saída
individual é tomada pelo sujeito mesmo no foro mais íntimo de sua
personalidade; o sujeito decide em que deve crer ou mesmo se deve não crer; ele
decide qual é a sua postura diante da vida e ele mesmo, sozinho, na ‘sozinhedão’
mais profunda de sua consciência decide
inclusive se quer crer ou não em Deus. Por outro lado há a alternativa da saída
social que não pode ser imposta (a não ser que se esteja num regime
totalitário) e se configura a partir da exigência do estabelecimento de um consenso
alcançado pela discussão livre e democrática.
Partindo desta alternativa de caráter
social, que está fundamentada na conquista do consenso através do exercício do
discurso livre e lúcido, os atores internacionais se posicionam uns diante dos
outros como pares que buscam o estabelecimento de um consenso em torno de
interesses mútuos e recíprocos. Daí que desde muito recentemente o discurso
orientado para o consenso e realizado através de sofisticadas técnicas de
negociação tem sido o instrumento utilizado pela ONU e por vários agentes e
atores internacionais que estão envolvidos nas discussões sobre as situações
críticas de interesses conflituosos que buscam, em última análise, satisfazer
interesses próprios.
Neste sentido, todo o trabalho da ONU
tem sido orientado a partir deste princípio de busca de um consenso, pois a
adesão a quaisquer princípios de ação no palno internacional, nos dias de hoje,
não há como ser imposta e sim negociada e buscada através de um discurso
orientado para a busca de consensos, de acordos e do ponto de vista formal,
tratados, declarações etc. Neste sentido, a transparência das partes envolvidas
é de caráter fundamental para a elaboração de consensos em todos os níveis
possíveis. E foi justamente em torno do estabelecimento de princípios
norteadores da nossa existência na Terra que a ONU realizou o maior de todos os
encontros jamais feitos sobre o planeta
com vistas a estabelecer metas de ação que envolvessem o maior número de
pessoas, organizações e nações do mundo inteiro.
“Em
setembro de 2000, a ONU — Organização das Nações Unidas reuniu 147 chefes de
Estado e de governo em Nova Iorque, na Cúpula do Milênio. Foi o maior encontro
de dirigentes mundiais já realizado e teve como resultado a aprovação da
Declaração do Milênio das Nações Unidas. Esse documento, referendado por todos
os 189 países membros, reflete a crescente preocupação com a sustentabilidade
do planeta e com os graves problemas que afetam a humanidade”[21].
Todo o esforço de reflexão da ONU é
realizado por seus assessores
ou por seus convidados (geralmente grandes experts em alguma área específica) que participam de grandes eventos promovidos pelos organismos da ONU e discutem sobre algum assunto de relevância planetária. O caso que interessa a este trabalho diz respeito a uma reflexão muito bem alinhada estruturalmente e conceptualmente inaugurada com a ONU e desdobrada por uma série de instituições de dimensões internacionais e nacionais.
ou por seus convidados (geralmente grandes experts em alguma área específica) que participam de grandes eventos promovidos pelos organismos da ONU e discutem sobre algum assunto de relevância planetária. O caso que interessa a este trabalho diz respeito a uma reflexão muito bem alinhada estruturalmente e conceptualmente inaugurada com a ONU e desdobrada por uma série de instituições de dimensões internacionais e nacionais.
É absolutamente admirável o
alinhamento conceptual existente entre as Metas do Milênio, elaborados na
Cúpula do Milênio em 2000, os princípios propostos pelo Pacto Global, a
Campanha Nacional pela Solidariedade e Cidadania e os Indicadores de
Responsabilidade Social do Instituto Ethos[22].
O que se vê, sobretudo a partir do
trabalho do Instituto Ethos, é um trabalho de alinhavamento entre a Cúpula do
Milênio, o Global Compact[23]
e a Campanha Nacional pela Solidariedade e Cidadania. E o resultado deste labor
é elaboração de um tecido axiológico de natureza inconsútil, que pode dar
cobertura a uma diversidade quase infinita de situações vividas por corporações
dos portes mais variados e por instituições acadêmicas, confessionais, laicas,
sindicais, patronais, e muitos outros organismos que constituem a sociedade
civil. Pois todos os princípios apresentados pelas várias instâncias[24]
envolvidas com estas propostas são
coerentes entre si, seja do ponto de vista conceptual, seja do ponto vista
praxeológico, no sentido de que são passíveis de serem realizados, produzindo,
por sua vez, resultados efetivos, seja na empresa que busca conquistar
vantagens competitivas, seja nas vidas das pessoas favorecidas pelas práticas
empresariais responsáveis socialmente, afinal estes princípios estão orientados
por metas muito precisas, que por sua vez estão apoiadas por indicadores
confiáveis.
Vale considerar que todo este esforço
tem fundamento numa visão política inspirada nos princípios democráticos que
não são outra coisa senão uma maneira formal de se tomar decisões consensuais.
O pensador italiano falecido recentemente, Norberto Bobbio refletiu argutamente
sobre as questões constitutivas do regime democrático e apontou a existência de
nove regras que funcionam como indicadores da solidez e da consistência das
instituições democráticas de uma nação. É importante que ao considerá-las como
elementos constitutivos e essenciais de uma democracia, Bobbio assinala que
estas regras não determinam o conteúdo das decisões que devem ser tomadas.
Estas regras são apenas os instrumentos necessários para decidir como as decisões devem ser tomadas, de
forma a garantir ao mesmo tempo, os anseios de uma maioria sem que a minoria
precise ser eliminada, garantindo ao mesmo tempo um mecanismo de rotatividade
que dê às minorias a possibilidade de se tornar maioria. Estas regras se configuram como regras de um
jogo ou como procedimentos universais e formais sem conteúdo, de forma análoga
aos chamados imperativos categóricos kantianos. São elas:
“1. O órgão político máximo, a quem é assinalada
a função legislativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente
eleitos pelo povo em eleições de
primeiro ou de segundo grau. 2. Junto do supremos órgão legislativo deverá haver outras instituições com dirigentes
eleitos, como os órgãos da administração
local ou o chefe de estado (tal como acontece nas repúblicas). 3. Todos os
cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião,
de censo e possivelmente de sexo, devem ser eleitores. 4. Todos os eleitores
devem ter voto igual. 5. Todos os
eleitores devem ser livres em votar segundo a própria opinião formada o mais
livremente possível, isto é, numa disputa livre de partidos políticos que lutam
pela formação de uma representação nacional. 6. Devem ser livres também no
sentido em que devem ser postos em condição de ter reais alternativas (o que
exclui como democrática qualquer eleição de lista única). 7. Tanto para as
eleições dos representantes como para as decisões do órgão político supremo
vale o princípio da maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas várias
formas de maioria segundo critérios de oportunidade não definidos de uma vez
para sempre. 8. Nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da
minoria, de um modo especial o direito de se tornar maioria, em paridade de
condições. 9. O órgão do Governo deve gozar de confiança do Parlamento ou do
chefe do executivo, por sua vez, eleito pelo povo”[25].
A elucidação e a indicação destas
regras são significativas pois são elas os instrumentos mais eficazes de construção de consensos na esfera do
Estado-nação. O que ainda fica por ser resolvido é o desafio de se estabelecer
regras equivalentes que permitam a edificação de mecanismos democráticos que
sejam efetivos e que tenham um alcance global, afinal o mundo hodierno é o
mundo da globalização, no qual as relações sociais foram intensificadas de
forma inédita na história da humanidade.
Para concluir esta sessão sobre a Ética e o Consenso é necessário apenas realçar que todo empenho
da ONU (através das Metas do Milênio e do Compact Global), do Instituto Ethos e
dos responsáveis pela Campanha Nacional pela Solidariedade e Cidadania (Nós podemos: 8 jeitos de mudar o mundo)
está muito bem alinhado com os princípios epistemológicos da chamada ética do
discurso, ou ética do consenso que por sua vez também estão alinhadas de forma
extremamente coerente com os princípios democráticos que regulam os valores
ético-políticos da civilização ocidental.
Esta coerência epistemológica garante,
ao esforço daqueles que se empenharem neste horizonte da RSE, uma prática
consistente e alinhada que não se configurará como voluntarismo de um
franco-atirador. Ao mesmo tempo que fornece uma estrutura que permite uma
convergência de ações sobre alvos bem delimitados, permitindo uma concentração
de esforços em detrimento de trabalhos pulverizados que por serem pulverizados
e não convergentes perdem força e eficácia.
A grande vantagem do consenso
democrático estabelecido em torno dos Objetivos do Milênio está na configuração
de um compromisso ético que converge ações, recursos, inteligências e experiências
que podem se entrelaçar e possibilitar parcerias que por sua vez fornecerão
mais convergência e eficácia.
5. Ética e Globalização
O objetivo fundamental de todos os
maiores pensadores da Ética não foi outra coisa senão buscar uma forma de universalização
de princípios que pudessem ser alcançados e conhecidos de alguma forma pelos
cidadãos seja através de um exercício racional alavancado pela filosofia, seja
através de uma percepção religiosa possibilitada pela revelação de Deus.
Platão formulou seu mundo das idéias,
cujo acesso se dava através da paidéia filosófica que permitiria, no termo
deste processo pedagógico, a intuição da Idéia do Bem, que por sua vez
iluminaria a mente do cidadão ou do filósofo-rei que deveriam participar da
vida citadina ou governá-la, respectivamente.
Aristóteles formula sua teoria das
formas de governo sem prescindir da idéia máxime do Bem, que por sua vez,
também deveria servir de parâmetro para todos os cidadãos.
Agostinho e Tomás de Aquino, dois
pensadores cristãos ancoram suas idéias de Bem na Divina Providência ou na
Vontade Divina do Deus Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A Idade Moderna chega e elabora a
crítica da anábasis (subida) grega e
da katábasis (descida) cristã. O
pensamento moderno provoca a chamada virada do sujeito e substitui o
teocentrismo cristão, próprio da Idade Média pelo antropocentrismo moderno,
próprio da era que se inicia com o Renascimento, com a Reforma, com as Grandes
Navegações, com o incremento do comércio nas feiras européias etc...
A partir deste momento o esforço de
universalização dos princípios éticos deve se sujeitar apenas à racionalidade
humana: daí o caráter estritamente sóbrio e econômico da moral provisória
cartesiana e o caráter geometrizante da ética spinoziana. O ápice deste momento
moderno de universalização da ética através do exercício puro da razão vem com
Kant, na sua Crítica da Razão Prática, quando o princípio universalizador do
procedimento moral ou ético deve submeter-se ao chamado IMPERATIVO CATEGÓRICO:
“age de tal forma que tua ação possa ser universalizada”. Não obstante a
clareza aparente deste princípio, os pressupostos fundantes desta posição
kantiana são de uma complexidade extrema.
Nesta seqüência o esforço hegeliano
não se torna menos complexo, sobretudo porque seu método dialético não só exige
uma compreensão do mundo circundante como também exige a capacidade de atingir
um tipo de altitude especulativa própria dos profissionais da filosofia que a
ela se dedicam com força quase exclusiva.
À medida que a história da ética
avança no tempo sua complexidade conceptual vai ficando mais e mais nítida,
sobretudo porque a exigência de universalização de princípios éticos vai
complexificando-se na mesma medida e na
mesma proporção em que a sociedade mesma se torna cada vez mais complexa. Isto
torna o saber ético privilégio daqueles que por algum motivo profissionalizaram-se
na área da filosofia e conseqüentemente possuem o ferramental técnico da área
filosófica.
Compreender os efeitos da globalização
é uma tarefa hercúlea, pois até o momento as categorias constitutivas do
conhecimento sociológico e histórico eram categorias que se organizavam em
torno do conceito de Estado-nação. Já não é possível utilizar pensar o mundo em
termos de estados-nações. Este talvez seja o maior problema dentre outras
questões epistemológicas que poderiam ser levantadas diante do desafio de
compreender a globalização. Este aspecto está sendo levantado apenas para
indicar que a dificuldade presente nesta tarefa de compreensão do fenômeno da
globalização. Dificuldade esta que será transposta para o campo da reflexão
ética, quando se impuser o desafio intelectual da reflexão sobre os valores que
deveriam organizar e orientar a vida dos habitantes de uma sociedade
globalizada.
Não obstante a magnitude do desafio
intelectual de pensar a ética para um mundo globalizado, o que se mostra como um fato de extrema
admiração e da mais ofuscante estupefação é que no momento presente,
testemunha-se um tal grau de mobilização e adesão aos princípios da Responsabilidade
Social Empresarial, absolutamente incomparável com qualquer movimento ético
jamais visto na história da humanidade.
Por mais importante que seja o papel
dos intelectuais e dos acadêmicos na vida sócio-política e econômica de um
país, eles jamais conseguiram resultados tão práticos, visíveis e mensuráveis,
tais como a prática social responsável realizada pelas corporações tem conseguido. No Brasil, mais do que na
França ou em muitos outros países da Europa os intelectuais sempre tiveram um papel
fundamental na configuração política da nação. Todavia, até mesmo esta situação
privilegiada do papel dos intelectuais brasileiros tem sido suplantada pela
relevância da RSE das organizações. Em outros termos, este movimento de difusão
dos ideais de RSE tem uma efetividade incomparável a qualquer fenômeno social
que exija dos cidadãos uma conduta ética compatível com os valores em questão.
A Academia, a universidade e os
espaços de reflexão filosófica, sociológica e jurídica e julgamos dizer que
talvez nem mesmo os movimentos religiosos, jamais conseguiram provocar o mesmo
efeito causado pelos princípios aos quais as empresas têm aderido, sobretudo porque
tais resultados têm sido acompanhados e observados de forma estritamente
profissional através dos mesmos instrumentos de avaliação de desempenho e de
resultados utilizados pelas próprias
organizações.
Outro aspecto a ser considerado é a
experiência da globalização propriamente dita. As grandes corporações vivem o
fenômeno da globalização no coração mesmo de suas empresas. Na Academia a
globalização é um tema entre outros milhares de temas. Na Corporação a
globalização é o dia-a-dia do executivo e daqueles buscam atingir metas de uma
organização de dimensões nacionais e muitas vezes planetárias. Portanto todos
os canais existentes dentro da própria organização estão constituídos para
facilitar e dar o escoamento necessário a tudo aquilo que diz respeito ao
ideário da própria empresa, inclusive aos aspectos relativos à adesão a
princípios de RSE. Isto significa que é muito mais fácil que a ONU consiga
divulgar suas Metas do Milênio através do Global Compact e sua inserção nas
empresas do que através do empenho dos professores de ética das universidades e
instituições de ensino superior de qualquer país. Sem contar que será muito
mais fácil conseguir recursos nas empresas, que geram riqueza e lucro, do que
conseguir recursos nas universidades cujos recursos, na melhor das hipóteses
está sempre voltado para a própria manutenção e para a pesquisa.
6. O papel da ONU, a Ética e RSE
A Organização das Nações Unidas constitui-se
como o fórum máximo, ou como o fórum supremo da humanidade. E não há
instituição mais autorizada do que a ONU para propor, através de seus organismos,
normas reguladoras das ações humanas e das ações corporativas, que apontem para
o desenvolvimento pleno e sustentável da humanidade. E para alcançar este sonho
a ONU não só elaborou as metas do milênio como também criou um braço voltado
para a perspectiva de atuação das organizações comerciais e financeiras através
do Global Compact, atingindo desta forma os agentes mais importantes do cenário
mundial: as empresas[26] que por um lado empregam
milhões de pessoas e lhes fornecem a chance do auto-sustento e que por outro
lado são as grandes responsáveis por provocar os maiores índices de entropia do
planeta[27].
No Brasil, as Metas do Milênio[28]
e os princípios norteadores do Global Compact[29]
encontram ressonância, respaldo e alinhamento nos indicadores propostos pelo
Instituto Ethos, que por sua vez apontam para problemas universais do mundo
corporativo, sobretudo pelo fato de que as organizações relacionam-se entre si
através de uma teia global. Toda a perspectiva apontada por estes indicadores
considera a natureza desta ecologia no interior da qual atuam as corporações. E
tais indicadores estão de tal forma articulados que conseguem detectar se a
atuação de uma determinada empresa é marcada por um caráter de responsabilidade
social ou se restringe-se apenas a um tipo de filantropia corporativa que está
mais preocupada com seus retornos para os acionistas, através de estratégias da
criação de uma imagem pública que atraia a simpatia do seu potencial consumidor.
Toda a explanação feita anteriormente
sobre o significado da palavra ETHOS teve como objetivo apresentar a natureza do comportamento ético como
resultado de um costume, como configuração de
um hábito ou ainda como construção de uma morada, no interior dos quais,
ou sob os quais o agente ético (seja ele um indivíduo ou uma corporação) age no
seio da sociedade. Portanto quando se fala de RSE não se quer saber se a
empresa doa um milhão de dólares anualmente para qualquer instituição que cuide
de velhinhos ou crianças com AIDS. Mas se quer saber se a atuação desta ou
daquela empresa é marcada por um espírito de idoneidade que respeite todo a sua
ecologia, todo o seu entorno, todo o seu ambiente no sentido mais amplo
possível: meio ambiente propriamente dito, as pessoas envolvidas nos processos
da empresa ou impactadas direta ou indiretamente.
É famoso o caso da Philip Morris que
gastou com contribuições filantrópicas US$ 75 milhões e, na esteira, lançou uma
campanha publicitária de US$ 100 milhões para divulgá-las”[30].
Ao menos a princípio, muito do
discurso da RSE está fundamentado no pressuposto de que a empresa responsável
socialmente aufere lucros desta sua postura seja no médio ou no longo prazo.
“A
filantropia pode muitas vezes ser a forma de melhor relação custo-benefício –
por vezes a única – de desenvolver o contexto competitivo, pois permite às
empresas alavancar não só seus próprios recursos como também os esforços e a
infra-estrutura de entidades sem fins lucrativos e outras instituições.
Contribuir para uma universidade, por exemplo, talvez seja um modo muito menos
oneroso de consolidar uma base local de capacitação avançada no ramo da empresa
do que desenvolver um programa interno de treinamento. Finalmente, por gerar
benefícios sociais amplos, a filantropia muitas vezes permite às empresas
estabelecer parcerias com governos e organizações sem fins lucrativos que
pensariam duas vezes antes de colaborar com esforços que revertessem em
benefícios exclusivos para uma empresa em particular”[31].
E este pressuposto tem impulsionado o
movimento de adesão a princípios de RSE. Todavia chegará o momento em que as
empresas deverão ser responsáveis simplesmente por que ser responsável é anterior
à filantropia e uma exigência da vida em sociedade.
“é importante
ressaltar que a filantropia não garante que as empresas, ao praticarem o ato
filantrópico, estejam respeitando o meio ambiente, desenvolvendo a cidadania ou
respeitando os direitos de seus empregados”[32].
Possuir uma prática social responsável
está se tornando uma prerrogativa e uma condição sine qua non para sua existência. Afinal o cidadão não pode deixar
de obedecer ao semáforo vermelho sob a condição da possibilidade de resultados.
A vida em comunidade exige que o cidadão obedeça o sinal vermelho e pronto,
pelo bem mesmo da comunidade. O cidadão que queira construir sua residência não
pode sem mais nem menos cortar a árvore que está na sua calçada, na frente do
espaço onde ele planeja fazer sua garagem. Portanto, o raciocínio é
exatamente o mesmo. Os interesses do
indivíduo e das corporações não podem ser anteriores ao bem comum. A vida em
comunidade exige das empresas uma postura ética que em primeiríssimo lugar
garanta a ausência de prejuízos a todos aqueles que serão impactados por sua
atuação e que lhe permita desta forma alcançar os resultados por ela buscados[33].
Não haverá quem consiga cortar árvores e tirar lucros desta atividade sem que
tal atividade seja feita de forma responsável e sustentável[34].
Foi esta percepção que fez de Sócrates o fundador da Ética. Depois de condenado
à morte alguns amigos incentivaram Sócrates a fugir. E do alto de sua visão
ética sobre a cidade, ele afirma que sua fuga só ocorreria em detrimento das
leis e dos costumes da cidade.
Em breve a adesão a tais princípios não
será algo de natureza simplesmente voluntária, mas uma condição para a própria
existência no mercado, assim como a adesão a princípios e a subordinação a padrões éticos mínimos são necessários para
a vida em comunidade. Há equipes brasileiras de corredores de rua que trocaram
seus tênis depois de ouvirem falar que uma certa empresa utilizava mão-de-obra
infantil (num país asiático de terceiro mundo) na confecção de seus tênis.
A penetração dos ideais da RSE e sua
necessidade tem sido tamanha que, por mais espantoso que isso possa parecer há,
até mesmo, quem proponha que “é possível criar formas de regulação capazes de
induzir mudanças na atuação das instituições financeiras no mercado de crédito,
tendo em vista o ideal de justiça social”[35].
Este estranhamento causado pelas idéias de que a empresa deve ser responsável
socialmente, ou que deve ter uma conduta moral ou ética equivale ao
estranhamento que há pouco mais de cem anos, no fim do século XIX, senhores de
escravos tinham ao se cogitar a possibilidade de que um dia talvez não houvesse
mais escravidão.
Vê-se que gradativamente a noção de
responsabilidade social está sofrendo uma evolução que ajudará as empresas a
evoluírem na mesma direção.
Não obstante a famosa, controvertida e
muito divulgada posição jurássica de Milton Friedman[36],
segundo a qual a única responsabilidade social de uma empresa seria ampliar
seus lucros (afinal a empresa é um instrumento dos acionistas e qualquer doação
da empresa faz com que seus acionistas fiquem impedidos de empregar seus
fundos)[37],
esta posição tornar-se-á insustentável afinal os lucros só serão justificáveis e
idôneos se não comprometerem as condições de dignidade de seus colaboradores,
da comunidade e de qualquer um que esteja interligado com a cadeia produtiva.
Desde quando o lucro está acima de qualquer outra coisa? Desde quando o lucro
pode ser auferido a partir da exploração predatória de gestantes, crianças,
deficientes, pobres do meio ambiente, de pessoas que trabalham 16 ou 18 horas
por dia? A posição de Friedman justifica qualquer atividade predatória.
“A
responsabilidade social corporativa surge com a mudança de valores proposta
pela sociedade pós-industrial: a valorização do ser humano, o respeito ao meio ambiente, a busca de uma
sociedade mais justa e uma organização empresarial de múltiplos objetivos. Os
novos valores pós-econômicos são também evidentes na crescente insistência
pública de que as corporações se preocupem com o desempenho social e não apenas
econômico. A sobrevivência empresarial num ambiente competitivo passou a
depender de como a estratégia de negócios lida com essas variáveis, de maneira
a se obter eficiência e lucratividade
com a preservação da imagem e da reputação das companhias no mercado e na
sociedade”[38].
Felizmente por mais importante que
seja a ONU ela não impõe suas posições de forma autoritária, o que seria
impossível pela sua própria natureza e pelo espírito democrático que rege a
cosmovisão ocidental. A ONU dissemina suas propostas de tentativa de construção
de consensos e propugna a adesão
voluntária de seus membros signatários.
A imposição de um discurso de forma totalitária não teria efetividade
alguma no plano internacional, mas ela consegue afirmar e corroborar um
discurso que tem representatividade e que está sendo elaborado numa instância
onde, mais facilmente, se pode interligar os temas deste emaranhamento de
questões que estão relacionadas ao tema da RSE.
O discurso proposto pela ONU não é
algo apenas centrífugo, unidirecional, do centro para fora de forma radial. As
Nações Unidas também são o repositório de todo um movimento centrípeto, no
sentido de que para ela convergem os resultados de inúmeras pesquisas e
estudos, levantamentos e censos de todo o mundo. O processo de elaboração dos
documentos da ONU se dá de forma
consultiva e democrática. Os intelectuais das mais variadas área são convidados
para discutir o tema em pauta com outras instâncias, sejam elas privadas ou
públicas. São elaborados documentos que são propostos para a comunidade
internacional, cujos membros têm a oportunidade de se tornarem signatários de
forma espontânea e não coercitiva.
Portanto, ainda que se possa criticar uma
série de procedimentos da ONU, sua legitimidade se sustenta pela sua
representatividade, pelo respeito ao processo democrático, e pela sua
universalidade centrípeta e centrífuga.
Julgamos pois, de uma pertinência sem
igual todo o movimento empresarial que não busca fundamentar seus próprios
critérios de sustentabilidade a partir de uma produção teórica auto-centrada,
mas que busque o diálogo com outras instâncias que podem nos fornecer uma visão
mais ampla, menos parcial e mais madura de todo o processo que o planeta vive
atualmente.
Seria simplista demais esquematizar
todos os esforços da ONU através de um desenho circular com raios que saindo de
seu centro atingem o limite de uma circunferência. Esta figura serve apenas
para exemplificar o que foi dito de forma parcial. Afinal a rede entretecida
pelas Nações Unidas, é uma rede inextrincável, com um grau de interrelacionamento
que se dá nas três dimensões e direções possíveis. Há entrelaçamentos
verticais, horizontes e em profundidade. Portanto não é possível pensar a rede
entretecida pela ONU, como uma rede simples ponto-a-ponto. Trata-se sim de uma
rede de múltiplos pontos, multi-direcional e portanto, multi-lateral e multi-cultural
no sentido de que seu esforço está na opção de fazer com que seu discurso
alcance um número cada vez maior de nações signatárias, de uma forma que seu
discurso cresça em progressão geométrica e não em escala aritmética.
E neste sentido, o alinhamento que a
ONU tem conseguido através dos seus mais variados organismos tem se
tornado a pedra fundamental, o horizonte
mais universal e o paradigma ético mais coerente e efetivo que existe hoje no
planeta. É para ela que as empresas devem olhar se quiserem encontrar critérios
de ação para ordenar eticamente a sua prática empresarial e social.
Este empreendimento ético da ONU não é
apenas uma realização a mais. Não se trata de mais um feito, mais um congresso,
mais uma declaração. Os resultados de todo este esforço influenciarão de forma
decisiva o futuro do planeta e talvez dêem a chance à humanidade dela alcançar
índices mais elevados de desenvolvimento humano, ou em outros termos, níveis
mais elevados de realização antropológica, permitindo que muitos seres humanos
vivam, senão em plenitude, ao menos de forma humanamente decente.
CONCLUSÃO
Tal como foi dito no início deste
trabalho o ETHOS é a nossa morada e os nossos costumes. Nossos costumes são
nossa residência e nosso abrigo. Se a
humanidade não pautar sua conduta e sua ação no mundo e com os outros por um
padrão ético, o ser humano ficará ao relento, sem abrigo e a vida dos grupos e
dos indivíduos estará ameaçada.
Ethos - h\qo"
(ethos com a vogal grega êta) - significa morada, costume,
entendido como o espaço construído pelo homem e portanto, espaço humano,
esquema praxeológico durável, estilo de vida e ação[39]. Ethos - e[qo" (ethos com a vogal grega epsilon) - significa comportamento resultante da repetição (pollach/')[40]
dos mesmos atos que ratifica o h\qo". Como
resultado desta síntese de significados o
e[qo" passa a designar o processo genético do hábito ou da
disposição habitual para agir de certa maneira, que atinge seu termo no hábito
individual ou social que se configura como uma conquista marcada pela
estabilidade, ou como héxis (e{xi")[41] que
aponta para o senhorio de si mesmo, o seu bem, a sua autarquéia (aujtavrceia)[42]. Entre
o processo de formação do hábito e o seu termo como disposição permanente o
ethos se desdobra como lugar privilegiado de realização do homem.
"O ethos como
costume, ou na sua realidade histórico-social, é princípio e norma dos atos que
irão plasmar o ethos como
hábito"[43].
Desta forma, têm-se a circularidade entre 3 momentos:
costume
h\qo" - ação Pra'xi" - hábito e{xi".
O costume sofrerá a passagem à condição de lei,
alcançando pois, a emergência definitiva da forma de universalidade. E a
lei constitui-se verdadeiramente como
a casa ou a morada da liberdade. Com o
surgimento da lei nasce a idéia do
ordenamento ou constituição do estado segundo leis que nascem do ethos da comunidade e, portanto, o fechamento de um círculo
que pode ser designado como o círculo semântico do ethos.
"A passagem do costume à lei assinala justamente a
emergência definitiva da forma de universalidade e, portanto, da necessidade
imanente, que será a forma por excelência do ethos, capaz de abrigar a práxis
humana como ação efetivamente livre. O ethos
como lei é, verdadeiramente, a casa
ou a morada da liberdade"[44].
O trabalho realizado pela Organização
das Nações Unidas de construir consensos em torno de princípios que protejam a
vida humana em suas mais diversas situações e condições e que protejam a
biosfera como um todo constitui-se como o trabalho mais importante realizado
sobre a superfície deste planeta, pois em outros termos este empenho da ONU não
é outra coisa senão a edificação de um horizonte de princípios cuja função é
exatamente ser o abrigo de toda a humanidade. Aquilo que um dia foi
prerrogativa das religiões tornou-se uma prerrogativa universal de um organismo
internacional. A diversidade de religiões não permite em hipótese que qualquer
credo seja o detentor da palavra final sobre como o homem deve agir. Por outro
lado a humanidade precisa de critérios diretivos, frutos do consenso
democrático que sirvam de parâmetros para a atividade humana sobre o planeta.
A ONU sugere princípios universais e
de envergadura planetária não porque tais princípios lhe tenham sido revelados
por Deus aos seus Secretários Gerais. Eles não são Sumo Sacerdotes. Estes
princípios e indicadores são o resultado de um trabalho lento e demorado de
consulta, de pesquisa séria, de eventos em todos os continentes do planeta onde
seus assessores se fazem presentes, discutem, participam, escutam, redigem suas
cartas, declarações e tratados. Não há revelação. Há construção. Todavia a
argamassa desta construção, a matéria prima que fornece a aderência a toda esta
estrutura esboçada pela ONU e cujos contornos são ratificados por outras
instâncias internacionais e nacionais é a LEI, é o DIREITO das nações. Todos
sabemos das fragilidades do Direito Internacional, visto que os tribunais
internacionais ainda possuem um poder coercitivo irrisório. Portanto a
aderência efetiva destes princípios às práticas corporativas não pode depender
apenas de uma adesão voluntária é preciso que haja mecanismos legais de coerção
e punição para que certos procedimentos sejam respeitados e tornados realidade.
Esta preocupação ética da ONU
atravessa todos os seus organismos. Em exemplo disto é o papel da Comissão Mundial para o
Conhecimento Científico e Tecnológico da UNESCO (COMEST) que realizou sua
terceira reunião mundial no Rio de Janeiro e convidou professores de filosofia e
ética de todo o Brasil e de todos os continentes para discutirem o ensino da
ética nas universidades. Muita discussão e muita experiência compartilhada para
incrementar a reflexão sobre o papel dos professores de ética, os programas de
pós-graduação em ética... A Unesco pretende criar uma universidade
latino-americana destinada exclusivamente ao ensino da ética e suas aplicações
nas mais variadas atividades humanas: do conhecimento científico à atividade
empresarial.
Portanto os marcos dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio que encontram sua tradução no Pacto Global, na
campanha brasileira dos 8 Jeitos de Mudar o Mundo e nos Indicadores do
Instituto Ethos são, até hoje, o constructo mais bem elaborado, mais coerente e
mais sólido, jamais visto na História da Ética, com um grau de facilidade e
simplicidade de compreensão, eficácia, e
praticidade incomparáveis a qualquer aula magna de Filosofia Moral ministrada
na mais solene das Universidades ou se comparado com o melhor livro de Ética
que possa ser escrito na história. Além do mais o poder de disseminação destes
parâmetros éticos ou destas metas do milênio está sendo alavancado por toda a
estrutura de logística e difusão que as grandes empresas signatárias do Global
Compact ou participantes da campanha nacional já possuem. Basta ir ao Pão de
Açúcar para receber as sacolinhas plásticas (que em breve serão substituídas
por outro tipo de embalagem mais adequada) nas quais estão estampados os 8
Jeitos de Mudar o Mundo.
A motivação para que as empresas dêem
sua adesão a este movimento de RSE ainda é marcado por uma série de interesses
próprios e heterônomos (como diria Kant). Afinal na maioria dos textos que podem
ser estudados sobre este tema, a idéia fundamental explicitada para que se
possa dissuadir o empresário a ser responsável socialmente é a seguinte:
“senhor empresário, ser socialmente, ambientalmente e/ou economicamente
responsável fará da sua empresa uma organização mais lucrativa, pois dará a ela
uma vantagem competitiva significativa com relação às suas concorrentes”.
Todavia, hoje é absolutamente
insustentável que uma empresa, que tem o direito de existir para auferir
lucros a partir de sua atividade, possa
fazê-lo em detrimento de qualquer aspecto social, econômico, ambiental ou
relativo aos direitos humanos dos seus colaboradores. Em verdade a ética e o
direito só existem para regular os direitos dos sujeitos que vivem no seio de
uma comunidade; e para que as partes não fiquem prejudicadas e existam de forma
minimamente satisfatória sem que o prazer e o conforto de uma parte ocorra como
causa do desprazer e do desconforto da outra parte, de forma direta ou indireta.
Gradualmente a mensagem deverá
constituir-se de uma outra forma: “senhor empresário, o senhor tem todo o
direito de realizar suas atividades comerciais desde que estes princípios
éticos e legais sejam respeitados integralmente”.
Em síntese, o que queremos dizer e
esperamos que aconteça no médio ou no longo prazo é que a RSE algum dia deixará
de ser um dos temas novos e mais importantes a ser discutido para tornar-se
condição sine qua non da própria
condição existencial da empresa. Entretanto alcançar este resultado significa
atingir um grau de qualidade e desenvolvimento moral que alguns atores
nacionais e internacionais ainda não possuem. Daí a pertinência de todo este
esforço global em torno dos objetivos do milênio que, no Brasil,
particularmente, pode significar não só a melhoria de condições de vida de
muitas pessoas, mas mais que tudo pode significar o resgate da dignidade de
muitos brasileiros e a salvação das vidas de outros tantos.
BIBLIOGRAFIA
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In Werthein, Jorge. Investimentos em educação, ciência e tecnologia: o que
pensam os empresários / Jorge Werthein e Célio da Cunha – Brasília: UNESCO
Brasil, 2004. Textos retirados do site da FIEMG:
[1] . A responsabilidade social e a segunda lei da termodinâmica:
Uma abordagem mais dura a respeito do tema da responsabilidade social poderia
ser feita a partir de uma perspectiva mais distante das questões ético-filosóficas,
e portanto mais próxima de uma compreensão determinista de caráter fisicista,
se se considerar a relevância das leis da termodinâmica para a compreensão do
empenho de energia que ocorre no planeta em vista da produção de mais ordem e
consequentemente se se considerar a devida entropia provocada e produzida na
forma de maior desorganização e produção de energia dissipada e inútil. As leis
da termodinâmica fornecem a compreensão mais adequada a respeito do
comportamento da energia. A combinação das duas primeiras leis indicam que o
conteúdo total de energia no universo é
constante, e a entropia total do universo está aumentando continuamente. Isto
significa que gradualmente toda a energia disponível no planeta, utilizada para
gerar outras formas de organização e de ordem está tornando-se mais e mais
indisponível. Isto significa de forma muito simples que a queima de um pedaço
de carvão para a produção de qualquer bem existente, implica que houve um
processo de transformação de energia, todavia a energia que saiu do carvão
dissipou-se de uma forma tal que ela não pode ser novamente aproveitada em toda
a quantidade previamente utilizada. É algo parecido com a bolinha de ping-pong
que ao ser deixada cair no chão jamais alcançará novamente a mesma altura da
qual foi lançada. Por tanto, se se considerar todo o problema da produção de
bens e serviços a partir da perspectiva da segunda lei da termodinâmica sabe-se
que o procedimento sustentável e responsável não pode ser apenas uma opção do
plano estratégico de uma empresa mas deve ser um pressuposto organizacional que
se estabeleça como condição sine qua non para sua existência e para sua pretensão de auferir lucros mediante
a sua atividade. Portanto seria possível e muito interessante fazer toda uma
abordagem que relacionasse a responsabilidade social e a segunda lei da
termodinâmica. Todavia a opção deste texto será por tratar este assunto de uma
forma, também abrangente, mas a partir de sua contextualização no seio e no
vértice da Histórica da Ética.
[2] . ATENÇÃO:
Nesta seção serão utilizados caracteres GREGOS para que se possa explicar a
etimologia da palavra ETHOS. Para que o grego possa ser visualizado o arquivo
foi salvo utilizando-se a opção de fontes TRUE TYPES que incorporam os
caracteres ao arquivo e permitem sua leitura em qualquer computador que não
tenha estas fontes. Todavia para não correr o risco de que os caracteres gregos
fiquem estranhos e ilegíveis o autor deste texto enviou juntamente com o
arquivo a fonte utilizada para a redação em grego (GRAECA TRUE TYPE) que pode
ser instalada em qualquer computador apenas clicando no arquivo.
[3] .fuvsi", ew" s.f. (fuvw) || natureza ou maneira de ser de uma coisa || forma do corpo, natureza da alma ||
disposição natural, condição natural || força produtora || substância das
coisas || ser animado. O dicionário Grego-Português utilizado para
indicar as expressões será o Dicionário
Grego-Português e Português-Grego de
ISIDRO PEREIRA SJ, Braga, Livraria Apostolado da Imprensa, 1990, 7ª ed., 1054p.
Este texto será indicado sob a abreviatura DGP.
[6] . LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia IV –
Introdução à Ética Filosófica 1, Coleção
Filosofia - 47, São Paulo: Edições
Loyola, 1999, p. 13.
[7] . LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia IV –
Introdução à Ética Filosófica 1, Coleção
Filosofia - 47, São Paulo: Edições
Loyola, 1999, p. 13.
[8] . LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia II -
Ética e
Cultura, Coleção
Filosofia - 8, São Paulo: Edições
Loyola, 1988, p. 14.
[9] . Para não complicar esta questão não estamos
considerando os eventos que ocorrem no nível da microfísica, pois sabemos que
os eventos quânticos são marcados por um grau de indeterminação e incerteza que
faz de seus enunciados científicos proposições mais complexas do que aquelas da
física tradicional.
[11] . LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia IV –
Introdução à Ética Filosófica 1, Coleção
Filosofia - 47, São Paulo: Edições
Loyola, 1999, p. 13.
[12] . h\qo", eo", ou ou" s.n. || morada, estância, residência || falando de animais; estrebaria, curral
|| uso costumes || maneiras de ser, caráter. DGP.
[13] . LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia IV –
Introdução à Ética Filosófica 1, Coleção
Filosofia - 47, São Paulo: Edições
Loyola, 1999, p. 13.
[14] . LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia IV –
Introdução à Ética Filosófica 1, Coleção
Filosofia - 47, São Paulo: Edições
Loyola, 1999, p. 13.
[15] . Ver
PLATÃO, República, VI, 509b. LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia II -
Ética e
Cultura, Coleção
Filosofia - 8, São Paulo: Edições
Loyola, 1988, p. 14.
[16] . LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia IV –
Introdução à Ética Filosófica 1, Coleção
Filosofia - 47, São Paulo: Edições
Loyola, 1999, p. 13.
[17] . LIMA VAZ, H. C. de, Escritos de Filosofia IV –
Introdução à Ética Filosófica 1, Coleção
Filosofia - 47, São Paulo: Edições
Loyola, 1999, p. 14.
[18] . Para
saber quais são as Metas do Milênio não é necessário ler a Ética a Nicômaco em
grego clássico, nem ler algum livro de Ética filosófica em francês ou alemão.
As METAS DO MILÊNIO estão nas caixas
de produtos da Natura, nas sacolinhas do Pão de Açúcar, na conta telefônica de
algumas concessionárias, na Internet e em centenas de outros lugares. As METAS
DO MILÊNIO servem até para determinar a forma do trote que será dado nos
calouros, em algumas universidades que estão conscientes dos Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio das Nações Unidas.
[19] . O
retorno aos gregos sempre é profícuo, pois como disse Guimarães Rosa, “Ah, os
gregos. Estes disseram tudo”.
[20] . Muitas
coisas começaram com a religião. O cuidado com os mortos era uma prerrogativa
religiosa. Hoje o cuidado com os corpos humanos sem vida é previsto no direito.
A solidariedade inaugurou seu maior surto de desenvolvimento com a mensagem de Jesus de Nazaré, um judeu,
oriental, cujo ensinamento difundiu-se rapidamente pelo Império Romano e pelo
mundo helenístico. Esta mensagem forjou todas as noções de alteridade,
caridade, amor oblativo, solidariedade e respeito recíproco entre os seres
humanos que habitam no hemisfério ocidental. Depois de uma crise das religiões,
há quem fale que o cristianismo foi a “religião de saída das religiões”,
sobretudo pelos aspectos metafísicos que orientaram e determinaram a
conformação do solo sob o qual cresceram as raízes da modernidade. Hoje a
adesão a qualquer religião não pode ser uma exigência pública e coletiva. Uma
empresa não pode exigir de seu público interno que todos sejam cristãos,
budistas, ateus, gnósticos...Ela também não pode afirmar que apenas comprará de
fornecedores de uma certa denominação religiosa e venderá para clientes da mesma denominação religiosa (há
casos muito específicos onde o empreendedor encontra um nicho muito restrito
que é determinado exatamente por suas características religiosas, mas esta é a
exceção). Mas a empresa pode exigir que todos sejam honestos, incorruptíveis,
solidários. É interessante que as exigências para a salvação da alma se
tornaram “exigências para a salvação da carne”. Um colaborador, um funcionário
que esteja fora deste perfil não terá o seu dia
de sal (seu salário) e não poderá
salgar sua carne, não poderá levar para casa a proteína necessária para o
sustento de sua prole. Não obstante vivamos numa cultura cuja mundividência, do
ponto de vista formal e jurídico é uma mundividência laica, as empresas estão
cobrando de si mesmas e de seus stakeholders
aquilo que, antes, apenas as religiões cobravam de seus fiéis. Isto não é uma
crítica. Ao contrário, a história da humanidade mostra que muitas das
exigências sociais para a manutenção da estabilidade de uma comunidade eram
postas inicialmente pelas religiões. O Ocidente recebeu da cultura
hebraico-cristã a tradição dos DEZ MANDAMENTOS, que não obstante se trate de
mandamentos religiosos, são antes de tudo um pequeno ordenamento jurídico
sancionado por uma instância transcendente, que tinha como função máxime,
amalgamar a sociedade à qual tais mandamentos se dirigiam. Não é o escopo deste
texto discutir se as religiões que exigiam a solidariedade se tornarão
dispensáveis depois de uma adesão unânime aos princípios de RSE, de todas as
empresas do planeta. A questão que interessa para este trabalho diz respeito
apenas ao grau de inteligibilidade que se pode alcançar fazendo tais
considerações que vêem a matriz da RSE na Ciência do Ethos, a Ética inaugurada
com os gregos e na religião cristã inaugurada 5 séculos depois com Jesus de
Nazaré e seus seguidores, que O tinham como sendo o Cristo, Filho de Deus. Em síntese, muitas das exigências sociais
que normatizam e regulam o relacionamento
intersubjetivo e intercomunitário foram, em seus primórdios comandos éticos de
matriz religiosa. Aos poucos estes valores vão se laicizando e sendo
incorporados ao corpo social de forma gradual através de vários mecanismos: a
lei, os hábitos e costumes da própria população, as exigências do mercado, a
preservação da espécie...
[21] . VEIGA,
João Paulo Cândia, O Compromisso das
Empresas com as Metas do Milênio, São Paulo: Instituto ETHOS de Empresas e
Responsabilidade Social, 2004, p. 3.
[22] . Seria
possível pontuar como momento mais importante e decisivo o evento de 1992 –
ECO92. Mas também seria possível indicar, se quiséssemos o dia 10 de dezembro de 1948 – Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Todavia a opção por indicar a Cúpula do Milênio
como o momento germinal de todo este surto de RSE no Brasil decorre do
alinhamento explícito entre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, o
Global Compact, a Campanha Nacional pela Cidadania e Solidariedade e os
Indicadores do Instituto Ethos.
[23] .
Orientações sobre o Global Compact. Ver o MANUAL
DO GLOBAL COMPACT - Entendimento Prático da Visão e dos Princípios: “O Secretário-Geral das Nações Unidas Kofi
Annan propôs primeiramente o Global Compact no Fórum Econômico Mundial em 31 de
janeiro de 1999. Em meio a um cenário de crescente preocupação sobre os efeitos
da globalização, o Secretário-Geral convocou lideranças empresariais a se
unirem a uma iniciativa internacional – o Global Compact – que aproximaria as
empresas das agências das Nações Unidas, organizações do trabalho, organizações
não governamentais e outros atores da sociedade civil, para a promoção de ações
e parcerias na busca de uma visão desafiadora: uma economia global mais
sustentável e inclusiva. O Secretário-Geral entendeu que enquanto a cidadania
empresarial - também denominada de “responsabilidade empresarial”,
“desenvolvimento sustentável” e “resultado triplo”, entre outros termos –
estava emergindo como uma tendência no mundo dos negócios, não existia
estrutura internacional para assistir as empresas no desenvolvimento e na
promoção da gestão global com base em valores. Mediante a consolidação do
Global Compact em princípios aceitos internacionalmente, os participantes
poderiam se sentir seguros de que suas ações estariam sendo guiadas por valores
universalmente sustentados e endossados. A fase operacional do Global Compact
foi lançada em um evento de alto nível na Sede das Nações Unidas em Nova
Iorque, em 26 de julho de 2000. A reunião, presidida pelo Secretário-Geral,
reuniu executivos sêniores de 50 grandes empresas e líderes de organizações não
governamentais atuantes em direitos do trabalho, direitos humanos, meio
ambiente e em desenvolvimento sustentável. A partir do lançamento do Global
Compact, centenas de empresas e de organizações se engajaram na iniciativa. Os
participantes do setor privado representam virtualmente todos os setores
industriais, comerciais e de serviços, de cada continente. O Global Compact é
uma iniciativa voluntária de cidadania empresarial, e como tal, não é um
instrumento regulador – não “policia” nem gera obrigações de comportamento ou
de ações das empresas. Ao invés disso, o Global Compact confia no interesse
próprio e esclarecido das empresas, das entidades do trabalho e da sociedade
civil, para iniciar e compartilhar uma ação substantiva na busca dos princípios
nos quais se baseia o Global Compact. O Global Compact procura oferecer uma
estrutura contextual para encorajar a inovação, as soluções criativas e as boas
práticas entre os participantes. O Global Compact não substitui estruturas
reguladoras ou outros códigos. De fato, o Global Compact acredita que as
iniciativas voluntárias e os sistemas reguladores se complementam, e quando
combinados, fornecem um grande incentivo à ampla adoção da cidadania
empresarial responsável. A ênfase foi dada em fazer surgir a mudança
empresarial pelo uso de uma abordagem
de aprendizagem que facilita a discussão entre os vários grupos e
constrói novas relações para futuros projetos. Ao adotar tal abordagem ao invés
da clássica abordagem reguladora, o Global Compact entrou em “território não
regulamentado”, resultando em críticas daqueles que gostariam que o mesmo
tivesse “garras mais afiadas” através do monitoramento e da inspeção.
Entretanto, conforme afirmado, estas não são áreas do âmbito do Global Compact.
O Global Compact baseia-se em nove princípios nas áreas de direitos humanos,
direitos do trabalho e proteção ambiental. Estes princípios decorrem de
consenso universal que se baseia na: 1. Declaração Universal de Direitos
Humanos; 2. Declaração da Organização Internacional de Trabalho sobre os
Princípios Fundamentais e Direitos no Trabalho; 3. Declaração do Rio sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento. O Global Compact solicita que as empresas integrem
estes princípios em suas principais operações, e adotem projetos e atividades
empresariais que favoreçam os princípios e ampliem os objetivos das Nações
Unidas. Um dos objetivos principais é incorporar os princípios, e portanto, a
boa cidadania empresarial, na estratégia e na gestão empresariais, e na tomada
de decisões. Com respeito aos projetos, o Global Compact está encorajando
iniciativas e programas com ênfase no cumprimento dos 8 Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas. É importante destacar que o
Global Compact não é uma agência tradicional das Nações Unidas, mas uma rede que existe para promover uma
iniciativa. No centro dessa rede está o Escritório do Global Compact, com
quatro agências das Nações Unidas – o Escritório de Alto Comissariado de
Direitos Humanos (OHCHR), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Programa
de Meio Ambiente das Nações Unidas e o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD). Além das Nações Unidas, que atua como convocadora e
facilitadora, todos os atores sociais relevantes estão representados na rede do
Global Compact: üempresas, cujas ações busca influenciar, ü trabalhadores,
onde ocorre o processo efetivo da produção global, ü organizações
da sociedade civil, representando a mais ampla comunidade de
participantes, e ü
governos, que definiram os
princípios em que se baseia a iniciativa”.
[25] . BOBBIO,
Norberto. Dicionário de Política, vol I. Brasília, UnB, 1983.
[26] . Michael
E. PORTER e Mark R. KRAMER. A vantagem
competitiva da filantropia corporativa, in RODRIGUEZ Y RODRIGUEZ, M.V.
(org), Ética e Responsabilidade Social
nas Empresas,Harvard Business Review, São Paulo: Ed. Campus, 2005, p. 139. “Hoje em dia, a competitividade
depende da produtividade que a empresa é capaz de extrair de força de trabalho, capital e recursos
naturais para produzir bens e serviços de alta qualidade. A produtividade depende de funcionários capacitados que
disponham de segurança, saúde e moradia decente e sejam movidos pelo senso de oportunidade.
Preservar o meio ambiente é benéfico não só para a sociedade mas também para a
empresa, pois a redução da poluição e dos resíduos pode redundar num uso mais
produtivo dos recursos e contribuir para a produção de bens valorizados pelos
consumidores. Melhorar as condições sociais e econômicas de países em
desenvolvimento pode gerar ambientes mais produtivos para as operações da
empresa, além de novos mercados para seus produtos. A rigor, o que estamos constatando é que, muitas vezes, o método mais
eficaz para enfrentar muitos dos problemas mais prementes do mundo é mobilizar o setor empresarial de forma a
beneficiar a um tempo a sociedade e as empresas”. O grifo é nosso.
[27] . Tal como
já se disse em uma das primeiras notas deste texto, a entropia diz respeito à
segunda lei da termodinâmica, segundo a qual a dissipação de energia do
universo está aumentando constantemente. O universo é muito grande. O que nos
interessa é o planeta Terra que se constitui como um sistema fechado e só
recebe energia do Sol e de nenhum outro lugar além do Sol. Portanto, toda a
forma de energia cujas fontes estejam no próprio planeta podem se esgotar, caso
a energia dissipada destas fontes terrestres não sejam utilizadas de forma
otimizada, diminuindo resíduos sólidos, líquidos, gasosos e resíduos sociais, econômicos
e humanos. Afinal toda a pobreza existente é de alguma maneira uma espécie de
resíduo desta forma de organização social que se estruturou em função das
matrizes energéticas disponíveis neste momento histórico. O ser humano é um
organismo, algo organizado que para existir arranca energia dos frutos que come
e depois lança os resíduos destes frutos na forma de dejetos, bagaços. Ele bebe
água potável, mas depois lança líquidos poluentes no solo e nos rios. Para um
ser organizado existir é necessário arrancar energia de outros seres e
conseqüentemente desorganizar estes seres, diminuindo por tanto a quantidade de
energia contida na fonte de recursos. Todo ser organizado existe desorganizando
outros seres. Todo ser organizado existe em detrimento da organização de outros
seres. Portanto, quanto mais organizamos nossa vida social geramos outros tipos
de desorganização no ambiente que nos cerca. Como resolver isto? Trata-se de
uma lei da física. Como diminuir a entropia do planeta. Para andarmos de carro
desorganizamos a atmosfera. Para melhorar a atmosfera vamos precisar
desorganizar outras realidades, vamos dispender outros tipos de energia.
Portanto o ideal é atacar no começo do ciclo. Produzir carros movidos a
hidrogênio será algo responsável pois a entropia provocada na Terra será menor.
O homem não terá como fugir deste tipo de consideração. E as empresas muito
menos. Ver RIFKIN, J. A Economia do
Hidrogênio – a criação de uma nova fonte de energia e a redistribuição do
poder na Terra. São Paulo: M.Books, 2003. 300p.
[28] . As Oito Metas
do Milênio, ou os chamados ODM – Objetivos de Desenvolvimento do Milênio são os
seguintes:
1.
Erradicar a pobreza extrema e a fome
1.1.
Reduzir pela metade a proporção de pessoas
que vivem com menos de um dólar por dia
1.2.
Reduzir pela metade a proporção de
pessoas que sofrem de fome
2.
Atingir a educação básica universal
2.1.
Assegurar que todos os meninos e meninas
concluam o curso completo da escola fundamental
3.
Promover a igualdade de gênero e o
empoderamento das mulheres
3.1.
Eliminar a disparidade de gênero na educação
fundamental e na secundária, preferencialmente até 2005, e em todos os níveis
até 2015
4.
Reduzir a mortalidade infantil
4.1.
Reduzir em até dois terços o índice de
mortalidade entre as crianças com menos de cinco anos
5.
Melhorar a saúde materna
5.1.
Reduzir em até três quartos o índice de
mortalidade das mães
6.
Combater o HIV/AIDS, a malária e outras
doenças
6.1.
Parar e começar a reverter o crescimento do
HIV/AIDS
6.2.
Parar e começar a reverter a incidência da
malária e de outras doenças importantes
7.
Assegurar a sustentabilidade ambiental
7.1.
Integrar os princípios de desenvolvimento
sustentável em políticas e programas nacionais; reverter a perda de recursos
ambientais
7.2.
Reduzir pela
metade a proporção de pessoas sem acesso sustentável à água potável
7.3.
Alcançar uma melhoria significativa nas vidas
de pelo menos 100 milhões de moradores de favelas até 2020
8.
Desenvolver uma parceria global para o
desenvolvimento
8.1.
Desenvolver ainda um sistema comercial e
financeiro aberto com base em normas, previsível e não discriminatório.
8.2.
Inclui um compromisso para uma boa
governança, desenvolvimento e redução da pobreza – nacional e
internacionalmente
8.3.
Tratar das necessidades especiais dos países
menos desenvolvidos. Isto inclui o acesso à isenção de tarifas e quotas em suas
exportações; aumentar o perdão da dívida
para os países pobres com dívida substancial; cancelamento da dívida
bilateral oficial e assistência oficial mais generosa para o desenvolvimento de
países comprometidos com a diminuição da pobreza
8.4.
Tratar das necessidades especiais dos Estados
cercados e pequenas ilhas em desenvolvimento
8.5.
Tratar de forma abrangente os problemas da
dívida de países em desenvolvimento por meio de medidas nacionais e
internacionais para tornar a dívida sustentável a longo prazo
8.6.
Em cooperação com os países em
desenvolvimento, desenvolver trabalho produtivo e decente para os jovens
8.7.
Em cooperação com as indústrias
farmacêuticas, fornecer acesso aos remédios essenciais disponíveis nos países
em desenvolvimento
8.8.
Em cooperação com o setor privado, disponibilizar
os benefícios de tecnologias novas – especialmente tecnologias de informação e
comunicações.
[29] . Ver o MANUAL DO GLOBAL COMPACT - Entendimento
Prático da Visão e dos Princípios: Os nove Princípios do Global Compact
são: 1. Apoiar e respeitar a proteção dos direitos humanos proclamados
internacionalmente; 2. Evitar a cumplicidade nos abusos dos direitos humanos.
3. Defender a liberdade de associação e o reconhecimento efetivo do direito à
negociação coletiva. 4. Eliminar todas as formas de trabalho forçado ou
compulsório. 5. Erradicar efetivamente o trabalho infantil. 6. Eliminar a
discriminação no emprego e na ocupação. 7. Apoiar uma abordagem preventiva para
os desafios ambientais. 8. Promover uma maior responsabilidade ambiental, e 9.
Encorajar o desenvolvimento e a difusão das tecnologias ambientalmente
sustentáveis. Há um décimo princípio em vias de incorporação ao Global Compact,
relativo ao tema corrupção nas empresas.
Este princípio “trata da recusa, por parte das empresas, de envolvimento
corporativo com a corrupção, sob todas as suas formas”.
[30] . Michael E. PORTER e Mark R. KRAMER. A vantagem
competitiva da filantropia corporativa, in RODRIGUEZ Y RODRIGUEZ, M.V. (org), Ética e Responsabilidade Social nas
Empresas,Harvard Business Review, São Paulo: Ed. Campus, 2005, p. 134.
[31] . Michael E. PORTER e Mark R. KRAMER. A vantagem
competitiva da filantropia corporativa, in RODRIGUEZ Y RODRIGUEZ, M.V. (org), Ética e Responsabilidade Social nas
Empresas,Harvard Business Review, São Paulo: Ed. Campus, 2005, p. 142.
[32] . TENÓRIO, Fernando Guilherme (Organizador), Responsabilidade Social Empresarial –
Teoria e Prática, Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004, p. 29.
[33] . Talvez
valha a pena ressaltar que a concorrência sempre será impactada pela atuação
das ações de organizações do mesmo setor. E o impacto pode ser prejudicial e,
neste caso, este tipo de prejuízo pode ser legítimo desde que não haja
procedimentos desonestos e corruptos.
[34] . Em
certos mercados de madeiras já é possível encontrar grandes empresas que só
vendem madeiras certificadas pela ONG Forest Stewardship Council que
garante que aquela madeira não foi retirada de área preservada e que no
trabalho de extração não houve participação de trabalho infantil nem de
trabalho escravo. Ora, o que há de mais nisto? É óbvio que o trabalho escravo e
o trabalho infantil é algo absolutamente execrado pela comunidade ocidental!! E
se a área é de proteção e dela se retira madeira, isto também é crime!! Tal
situação pode parecer exagerada, mas infelizmente se encontra trabalho escravo,
infantil e a exploração predatória de áreas preservadas. E uma empresa que transgride estes princípios
básicos deveria simplesmente deixar de existir. A madeira certificada é um plus que garante a inexistência de
atividades predatórias e violentas, quando tal situação, na verdade, deveria
ser condição básica para o exercício das atividades comerciais, simplesmente
pelo fato de que explorar o trabalho infantil além de imoral é crime. E o mesmo
se pode dizer do trabalho escravo e da exploração de áreas de preservação.
[35] .
FLORENZANO, Vincenzo D., Sistema
Financeiro e Responsabilidade Social – uma proposta de regulação fundada na
teoria da justiça e na análise econômica do direito. São Paulo: Texto Novo
Editora, 2004, p. 15.
[36] . FRIEDMAN,
M. Capitalismo e Liberdade. 2.ed. São Paulo; Nova Cultural, 1985.
[37] . Michael E. PORTER e Mark R. KRAMER. A vantagem
competitiva da filantropia corporativa, in RODRIGUEZ Y RODRIGUEZ, M.V. (org), Ética e Responsabilidade Social nas
Empresas,Harvard Business Review, São Paulo: Ed. Campus, 2005, p. 135.
[38] . TENÓRIO, Fernando Guilherme (Organizador), Responsabilidade Social Empresarial –
Teoria e Prática, Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004, p.45.
[39] . EF II p. 13.
[41] . e{xi", ew" s.f. (e[xw) || boa constituição do corpo || estado de alma, hábito ||
capacidade, faculdade || experiência. DGP.
[43] . EF II p. 15.
[44] . EF II p. 16.
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