quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Um sistema em resposta ao niilismo ético - RUBENS GODOY SAMPAIO

Entrevista publicada na Revista IHU-online - Revista do Instituto Humanitas UNISINOS


De acordo com Rubens Godoy Sampaio, a envergadura sistemática da obra de Lima Vaz possui estrutura triádica e tem como desafio fundamental superar o niilismo. Relações intersubjetivas são constitutivas do ser humano, e ser-com-os-outros é seu aspecto ineliminável

Por: Márcia Junges

“O seu grande desafio como filósofo e padre foi justamente elaborar um discurso filósofico coerente, sólido, fundamentado em toda a grande tradição filosófica no seio mesmo da Modernidade, cujo selo é exatamente o do niilismo. Seu grande desafio foi estabelecer um diálogo com a tradição filosófica que permitisse a elaboração de um discurso sensato que superasse o niilismo. Ou seja, a filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz é a obra de um homem de fé, que professa o cristianismo e que tem como desafio elaborar de forma estritamente racional um discurso que alcance e inclua o tema do Absoluto como fundamento mesmo do próprio discurso e como exigência da racionalidade”. A explicação é do filósofo Rubens Godoy Sampaio, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Fundamentado na categoria da Transcendência, o sistema vaziano é a resposta elaborada “de forma original e inovadora à crítica contemporânea à metafísica cuja consequência mais devastadora para a nossa civilização é sem dúvida alguma o império de um horizonte marcado indelevelmente pelo niilismo ético”. Sobre a ontologia da intersubjetividade, assinala que as relações intersubjetivas são parte do ser humano. “O discurso que o homem tece sobre si mesmo não estaria completo se prescindisse desse aspecto constitutivo e ineliminável que é ser-com-os-outros, aspecto que é marcado sobretudo pela característica da reciprocidade”.

Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo, é mestre em Filosofia pela UFMG com a dissertação A Ontologia da Intersubjetividade no pensamento de Henrique Cláudio de Lima Vaz e doutor na mesma área pela Universidade Gama Filho – UGF, com a tese Metafísica e Modernidade: método e estrutura, temas e sistema no pensamento de Henrique Cláudio de Lima Vaz (São Paulo: Loyola, 2005). De sua produção bibliográfica citamos Crise ética e advocacia (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000) e O Ser e os Outros (São Paulo: Unimarco Editora, 2001). É servidor público federal da Justiça Federal de São Paulo
Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a ontologia da intersubjetividade no pensamento de Lima Vaz? 
Rubens Godoy Sampaio – Antes de responder a essas perguntas vou desenhar uma moldura no interior da qual serão respondidas as outras questões. A primeira ideia importante a respeito do pensamento de Lima Vaz é a seguinte: o termo de toda a sua trajetória filosófica foi a elaboração de um sistema filosófico. Seu pensamento apresenta-se como uma obra de envergadura sistemática. Seu sistema caracteriza-se por uma estrutura triádica e tem como pilares sua antropologia (nos livros Antropologia filosófica I e II), sua ética (nos livros Escritos de filosofia IV e V) e sua metafísica (Escritos de filosofia VII – Raízes da Modernidade). Estes são os livros principais do seu sistema. Todavia é possível encontrar aspectos de sua antropologia, de sua ética e de sua metafísica em outros livros bem como em muitos artigos nos quais certos assuntos são aprofundados. Por exemplo, o livro Escritos de filosofia III aprofunda em alguns artigos a categoria de transcendência apresentada sistematicamente no interior da seção sobre as categorias de relação do livro publicado anteriormente, a Antropologia filosófica II. Enfim, o sistema é o estuário, é o telos de toda a sua produção filosófica.

Pois bem, o problema da ontologia da intersubjetividade é trabalhado de forma bem pontual na categoria de intersubjetividade apresentada na região categorial das relações. A antropologia vaziana é organizada em grupos de categorias. O primeiro grupo são as categorias de estrutura que incluem as categorias de corpo próprio, psiquismo e espírito. O segundo grupo são as categorias de relação: objetividade, intersubjetividade e transcendência. E finalmente as categorias de unidade: realização e pessoa. Como se vê a categoria de intersubjetividade é desenvolvida no âmbito das relações que o ser humano estabelece com o mundo (categoria de objetividade), com os outros (intersubjetividade) e com o Absoluto (transcendência). 

Assim, quando Lima Vaz apresenta o homem se afirmando como um ser de natureza intersubjetiva, ele está dizendo que as relações humanas constituem o ser humano como tal, de forma que esse aspecto do discurso que o ser humano faz sobre si mesmo é ineliminável ou irredutível a qualquer outra realidade possível. As relações intersubjetivas fazem parte do ser do homem. O discurso que o homem tece sobre si mesmo não estaria completo se prescindisse desse aspecto constitutivo e ineliminável que é ser-com-os-outros, aspecto que é marcado sobretudo pela característica da reciprocidade. Se a relação com o mundo dos objetos, da técnica, é marcada pela não reciprocidade, a relação intersubjetiva tem como principal elemento o reconhecimento e a reciprocidade constitutiva desse tipo de relação. Além do mais, é exatamente a partir da categoria de intersubjetividade que Lima Vaz realiza no plano do discurso o entrelaçamento entre antropologia e ética.

IHU On-Line – Como metafísica e Modernidade se entrelaçam na obra desse filósofo?
Rubens Godoy Sampaio – Metafísica e Modernidade são dois temas importantes que funcionam como grandes eixos organizadores de todo o pensamento de Lima Vaz. Se quisermos usar uma metáfora ou uma imagem da biologia, a hélice do DNA é um exemplo magnífico para demonstrarmos que as duas hélices, que giram dando origem àquele movimento helicoidal, no pensamento vaziano corresponderiam exatamente à metafísica de um lado, e à Modernidade, de outro. Assim, na busca de tratar do problema da afirmação do Absoluto no discurso filosófico (seja na antropologia, na ética e ou na metafísica) Lima Vaz apresenta em chave dialética, de inspiração platônica e hegeliana, a metafísica do existir de São Tomás de Aquino em confronto com todo o processo de gênese da Modernidade. Em outras palavras, a compreensão vaziana da tensão entre razão moderna e metafísica apresenta-se na forma de um sistema com uma base teórica de inspiração tomásica, fundada na metafísica do existir, e com uma base metodológica de inspiração dialética (platônico-hegeliana). 

É no interior desse diálogo entre razão metafísica e razão moderna que Lima Vaz vai ao longo de toda sua vida desenvolvendo os temas da consciência histórica, do mundo, da intersubjetivdade, da ética, da Transcendência até que, a partir dos anos 1990, ele começa a organizar todos esses assuntos de forma sistemática e metódica, o que resultará no sistema que anunciamos na primeira resposta. E o método utilizado por Lima Vaz para articular os termos e os temas de seu sistema está minuciosamente desenvolvido no capítulo Objeto e método da antropologia filosófica no livro Antropologia filosófica I. Esse capítulo inaugura a parte sistemática da antropologia filosófica e será repetidamente utilizado em todas as categorias da antropologia, da ética e da metafísica. Portanto, para se entender como Lima Vaz elabora seu discurso, passo a passo, é imprescindível a assimilação do método descrito nesse capítulo.

IHU On-Line – De que forma Lima Vaz rebate as críticas à metafísica, como aquelas empreendidas por Nietzsche  e Heidegger , por exemplo?
Rubens Godoy Sampaio – Lima Vaz é jesuíta, membro da Companhia de Jesus fundada por Inácio de Loyola  no século XVI. Sua formação é cristã e católica. Lima Vaz é um filósofo erudito que leu os gregos no original com uma formação sólida encontrada apenas nas melhores universidades do mundo. Sem dúvida alguma nosso autor, brasileiro e mineiro de Ouro Preto, Minas Gerais, está entre os maiores filósofos do século XX. O seu grande desafio como filósofo e padre foi justamente elaborar um discurso filosófico coerente, sólido, fundamentado em toda a grande tradição filosófica no seio mesmo da Modernidade, cujo selo é exatamente o do niilismo. Seu grande desafio foi estabelecer um diálogo com a tradição filosófica que permitisse a elaboração de um discurso sensato que superasse o niilismo. Ou seja, a filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz é a obra de um homem de fé, que professa o cristianismo e que tem como desafio elaborar de forma estritamente racional um discurso que alcance e inclua o tema do Absoluto como fundamento mesmo do próprio discurso e como exigência da racionalidade. Desta forma, seu sistema, cujo fundamento é a categoria de Transcendência, presente desde o início de seu discurso como fundamento e condição de possibilidade do mesmo discurso, é a resposta que Lima Vaz elaborou de forma original e inovadora à crítica contemporânea à metafísica cuja consequência mais devastadora para a nossa civilização é, sem dúvida alguma, o império de um horizonte marcado indelevelmente pelo niilismo ético. 

IHU On-Line – Quais são as maiores influências filosóficas de Lima Vaz? 
Rubens Godoy Sampaio – Lima Vaz foi um leitor e um intérprete de toda a tradição filosófica. Ele leu os grandes autores sempre no original em grego, latim, alemão ou em qualquer língua que fosse. Tal como eu já disse, Lima Vaz foi um homem de profunda e inigualável erudição. Então, em primeiro lugar é necessário saber que este homem leu e estudou o que de melhor podia ser lido e estudado a respeito da tradição filosófica do Ocidente. Ele foi um profundo conhecedor da nossa tradição filosófica e tal fato permitiu que ele dialogasse com mais de dois mil anos de produção filosófica. Mas é claro que alguns autores o marcaram de forma indelével. São eles, Platão, Aristóteles, Agostinho, São Tomás e Hegel. E a presença desses autores é explícita em toda a sua obra, seja pelo conteúdo propriamente dito, seja pelo método assimilado e utilizado, sobretudo por Platão e Hegel.

IHU On-Line – Dentro desse contexto, como podemos compreender o impacto de Hegel no pensamento vaziano? Em que aspectos Lima Vaz conserva e supera o hegelianismo? 
Rubens Godoy Sampaio – O pensamento vaziano desdobra-se em sistema por meio do método dialético de matriz platônico-hegeliana. Lima Vaz entende a dialética platônica como ontologia e método, por meio da qual Platão busca realizar a reductio ad unum mostrando que existe uma unidade do logos epistêmico quando ele descreve seu movimento de unificação dos conceitos supremos e dos primeiros princípios da Razão. Segundo o próprio Lima Vaz, o projeto hegeliano consistiu em “repensar a antiga metafísica como Lógica” e teve como lugar o terreno da subjetividade moderna ou da forma moderna de uma metafísica da imanência. Contudo este projeto não logrou restaurar o movimento ascendente em direção a uma transcendência real do ser, próprio e constitutivo do noûs ou do intellectus da tradição grega. Pois bem, quando Lima Vaz trata do tema da transcendência, ele o faz, apropriando-se do método dialético e apontando em direção a um Absoluto real, ao Ser Infinito que é ato puro de existir, ao Ipsum esse subsistens, tratado na Antropologia filosófica como categoria de Transcendência e como Pessoa Infinita, tratado na Ética como Bem e Fim, e na Metafísica como Ser e Existência, fundamento da metafísica do existir de São Tomás de Aquino. Isto é possível porque o procedimento dialético não é um simples procedimento formal no qual uma lógica qualquer é aplicada a um conteúdo que lhe é exterior. O procedimento dialético traduz a lógica intrínseca do conteúdo, o dinamismo da sua própria inteligibilidade. “Eis por que o método dialético parte do conteúdo mais elementar, ou seja, a afirmação ‘alguma coisa é’ e tem início com a suprassunção, por meio do argumento de retorsão da mais primitiva oposição, a que opõe o ser e o nada, suprassunção expressa logicamente pelo princípio de não contradição” (Raízes da Modernidade, p. 158).

IHU On-Line – Lima Vaz constatava o avanço prodigioso da razão técnica e a indigência da razão ética em nossa civilização. A partir dessa ideia, em que aspectos sua filosofia promove uma reflexão e uma crítica ao paradoxo da racionalidade ao qual estamos submetidos? 
Rubens Godoy Sampaio – A reflexão sobre a técnica está presente em vários lugares da obra vaziana. Mas alcança seu ponto de elaboração sistemática na categoria de objetividade. Esta é a primeira categoria de relação. Na sequência vem a categoria de intersubjetividade e depois a categoria de transcendência. Todas trabalhadas no segundo volume da Antropologia filosófica.

A categoria de Objetividade inaugura o segundo livro da Antropologia, e nela Lima Vaz elabora de forma discursiva, submetendo ao mesmo método do volume I, o problema da relação do ser humano com o mundo, com as coisas que estão ao seu redor, com a técnica e com a ciência. Os termos do desenvolvimento desta categoria situam-se entre os dois extremos da tecnocracia e da tecnoclastia. Para Lima Vaz o homem é um ser no mundo, mas o discurso do homem sobre si mesmo não se esgota na sua relação com a natureza, pois, pelo princípio da ilimitação tética, o discurso é lançado para níveis superiores de relação, a saber, a relação com os outros e a relação com o Absoluto. Contudo, o lugar da técnica no mundo atual tem feito com que exista uma certa predominância desta forma de compreender o mundo, explicá-lo e transformá-lo. O predomínio da razão técnica e do discurso científico não se mantém nos limites do mundo objetivo. Ao contrário, o êxito da racionalidade científica fez com a mesma modalidade de produção de conhecimento transbordasse o campo do seu objeto específico para que, por meio dela, se pretendesse compreender todas as outras dimensões da vida humana. Assim, os termos dessa pergunta, o predomínio da razão técnica e a indigência da razão ética, podem ser tratados como um desdobramento da tensão existente entre metafísica e Modernidade. Em decorrência da hipertrofia do discurso tecnocientífico, tudo aquilo que extrapolasse os lindes do hipotético-dedutivo foi tido como irracional e, portanto, incapaz de ser submetido aos cânones do discurso da racionalidade técnica. É justamente isso que Lima Vaz tenta reinventar, tornando possível um discurso racional sobre o Absoluto, sobre o Bem, sobre o Fim, sobre o Ser, partindo da metafísica do existir de Santo Tomás e utilizando-se do método dialético para a elaboração desse discurso filosófico.

IHU On-Line – Como podemos compreender os conceitos de vida vivida e vida pensada, apontados por Vaz na transição da primeira para a segunda Modernidade? E o que seriam essa primeira e segunda Modernidade a que se refere?
Rubens Godoy Sampaio – Os conceitos de vida vivida, pensada e refletida têm sua correspondência com as etapas de elaboração de cada uma das categorias antropológicas, éticas e metafísicas. Ao construir cada uma de suas categorias, Lima Vaz apresenta a pré-compreensão (a expressão natural, não elaborada conceitualmente) de cada uma delas, a compreensão explicativa (dada pela ciência) e a compreensão filosófica ou dialética, por meio da qual se dá efetivamente a construção do discurso filosófico a respeito de cada uma das categorias. 

Agora, para encerrar e apresentar o que Lima Vaz entende por Modernidade, prefiro transcrever uma página de seu livro Escritos de filosofia VII – Raízes da Modernidade, seja como forma de homenageá-lo, seja como forma de apresentar, para quem nunca o leu, o brilhantismo e a profundidade filosófica deste autor, que, como eu já disse e torno a repetir, é um dos maiores filósofos do século XX:

“A aspiração talvez mais genuína do projeto filosófico da Modernidade, cuja primeira realização histórica foi, sem dúvida, a razão cartesiana, reencontra de alguma maneira, após o declínio do pensamento medieval e da tradição renascentista, os desafios teóricos que estão na origem da filosofia antiga. Em correspondência com a crítica do mito, a filosofia moderna é, principalmente, uma crítica da tradição teológica cristã. É igualmente, a descoberta de uma nova forma de razão, capaz, por um lado, de submeter o destino aos desígnios humanos e, por outro, de interpretar a natureza para melhor dominá-la e transformá-la. Esse grandioso projeto, não obstante sua pretensão de ser a instauração radical de um novo mundo humano, tem suas raízes históricas. Pensamos identificá-las justamente na transformação medieval da razão antiga como pensamento das essências pela afirmação primeira da inteligibilidade do esse. Em virtude dessa transformação, e dela dependendo, a razão filosófica moderna se vê em face da interrogação primeira, que atinge o ser da realidade no seu núcleo mais profundo: que forma de inteligibilidade se deve pressupor ou pré-compreender no existir como tal, no simples ato de ser? Para a razão moderna, essa interrogação não pode ser evitada, tendo ela herdado das suas raízes medievais a injunção teórica incontornável de pensar a existência na sua singularidade irredutível à universalidade da essência: o esse só é pensável protologicamente, ou seja, segundo a identidade do primum ontologicum e do primum logicum: como esse absoluto.
O verdadeiro coração teórico da Modernidade é o projeto de extrema audácia, cuja execução vem transformando radicalmente a vida humana nos últimos quatro séculos, que tem em vista a plena reinscrição teórica e operacionalmente, nos códigos da razão científica, do universo, da vida, do ser humano e das suas condutas. Interpretado como projeto histórico que se justifica a si mesmo, ou seja, que encontra sua razão de ser no próprio devir imanente da história, esse projeto deixa muito longe, em radicalidade, os paradigmas da “vida na razão” (bíos theorétikós) como ideal da filosofia antiga. Mas, paradoxalmente ou mesmo contraditoriamente, trata-se de um projeto que tem por objeto a construção de um absoluto no interior do próprio devir histórico. É permitido afirmar, por conseguinte, que o desafio especulativo de pensar um absoluto que se exterioriza no movimento mesmo que o constitui é verdadeiramente, o problema matricial, o problema-fonte de todos os grandes problemas da filosofia moderna. 

Nesse ponto convém lembrar que as origens longínguas do propósito de pensar o ser como absoluto, constituindo o primeiro passo da razão teórica, remontam a Parmênides . O pensador eleata é, pois, o iniciador da ontologia como ciência do ser. No entanto, a ontologia parmenidiana se exaure na tautologia do princípio de identidade: o ser é. Como introduzir a diferença na identidade sem relativizar o ser uno e absoluto na pluralidade do múltiplo? (...) Essa situação metafísica na qual tem lugar o primeiro passo do itinerário do discurso do esse encontrou um primeiro modelo de explicação na teoria neoplatônica da processão da primeira Inteligência a partir do Uno, e, na filosofia cristã, um segundo modelo na teoria agostiniana da iluminação. Ora, tal situação reaparece, em analogia eloquente, no problema filosófico moderno da relação entre Razão e Existência. É possível reconduzir a existência, desde o simples ato de existir, aos cânones explicativos da Razão humana, entendida como geratriz de toda inteligibilidade? Em outras palavras, a Razão humana pode reivindicar os atributos do Esse subsistente? Essa interrogação é inevitável como consequência do postulado imanentista radical da filosofia moderna. Tal postulado anima o projeto de construção da “cidade do homem”, onde os problemas metafísicos terão sua solução natural ou declaradamente pós-metafísica. A carta magna da “cidade do homem” é promulgada em nome da Razão na sua modalidade de razão científica e no seu uso operacional, medido pela sua eficácia na produção de objetos. 

Ora, a razão científico-operacional é uma razão intrinsecamente ligada ao agir e ao fazer humanos.
Ela observa, estabelece normas, formula hipóteses, mede e calcula, rege a produção de objetos. Pressupõe, portanto, o estar-no-mundo do sujeito racional, o seu simples existir enquanto dado a si mesmo, em meio às coisas que igualmente lhe são dadas. Mas essa situação, que pode ser denominada situação ôntico-primária, permanece impensada pela razão científico-operacional. Como recuperar para o universo luminoso da razão o fundo obscuro do simples existir? É a essa interrogação, vinda dos começos do caminho grego do logos, que a metafísica de Tomás de Aquino respondeu com a intuição da inteligibilidade do Esse absoluto como ato de infinita perfeição. Tal intuição assume então a forma de uma pré-compreensão fundante de toda a atividade da razão. No entanto, como antes já observamos, ela contempla o Esse absoluto como fonte de toda inteligibilidade na sua objetividade transcendente. Em outras palavras, a intuição do Esse é ato de uma razão que se mostra assim capaz de elevar-se à theoria desinteressada do Ser (capax entis)” (H. C. de Lima Vaz. Escritos de filosofia VII – Raízes da Modernidade., 1ª edição, São Paulo, Loyola, 2002. p. 100)

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